“Traidores”: membros da extrema-direita voltam-se contra a PSP
"Não estão do nosso lado.” “Esquerdalhos.” Estas foram algumas das definições descritas por integrantes e apoiantes do grupo 1143 e do Ergue-te após as manifestações do passado 25 de Abril. A atuação da Polícia de Segurança Pública (PSP) foi motivo de inúmeras conversas em chats do Signal e do Telegram, aos quais o DN teve acesso. Além disso, houve ainda lugar a diretos nas redes sociais, em que os polícias foram também criticados.
Esta mudança na forma como a PSP é percepcionada entre os ativistas da extrema-direita não passou despercebida pelas autoridades policiais, apurou o DN. A fazer fé nestes comentários online, os grupos de extrema-direita sentiram-se “traídos” pela PSP ao verem três dos seus integrantes detidos, além da carga policial de que foram alvo por desobediência. Foi ainda divulgada uma fotografia do oficial da PSP Iuri Rodrigues, comandante da 1.ª Divisão Policial do Comando Metropolitano da PSP de Lisboa, com emblema da bandeira portuguesa e a palavra “traidor” escrita a vermelho. Teorias da conspiração também não faltaram.
“O Comissário só pode ser esquerdalha, afinal de contas PSP de Moscavide… Moscavide também é dominado por ‘monhés’”, escreveu um membro do 1143 que se autointitula HerrHitller. Outro indignou-se pelo facto de a PSP se ter voltado contra “cidadãos pacíficos que estão no seu próprio país” e diz que “não entende nada desta parcialidade”; enquanto outro disse que os polícias deviam ser brasileiros - mas todos os agentes em serviço naquela tarde eram portugueses.
Os extremistas consideraram uma forma de apoio as declarações do presidente do Chega, André Ventura, e da deputada Rita Matias. “O que aconteceu foi motivado, talvez, pela hostilidade com que estes membros foram recebidos”, disse em direto na CNN Portugal a deputada Rita Maria Matias. A declaração foi repetida em todos os grupos, com a publicação do vídeo no perfil do X “A Voz do Povo”, em que mensagens xenófobas são frequentes. Por seu lado, André Ventura, criticando a “violência na política” e Carlos Moedas, por não ter garantido a segurança dos manifestantes, não condenou na altura as agressões aos polícias. “Entendemos é que a Câmara de Lisboa não esteve bem, esteve mal e, como digo, expôs todos a um risco desnecessário de violência”, asseverou.
Mas por que pensam que a PSP deve ser simpática com grupos extremistas e não cumprir o seu dever constitucional? Para Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) - o maior sindicato das forças de segurança - o pensamento destes grupos está errado. “Isso é um rótulo, é um rótulo errado. A Polícia de Segurança Pública, as polícias estão aos serviços do cidadão. Estão ao serviço do cidadão e daquilo que é a democracia”, diz ao DN. O profissional defende que as regras sejam cumpridas e que a PSP deve estar ao lado da democracia. “Esses rótulos, que foram feitos no passado, foram feitos erradamente. Nós temos de estar ao lado das populações, temos de estar integrados num sistema com regras, temos de estar do lado do humanismo, da tolerância e daquilo que são os princípios democráticos e da liberdade”, explica o dirigente sindical e polícia. Para Paulo Santos, a PSP só existe “pelos princípios democráticos e tudo o que seja interpretado de forma diferente está errado”, argumenta o líder sindical.
Bruno Pereira, presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia, também fala em rótulos. “A comunicação social e alguns interlocutores ou comentadores têm alimentado essa ideia mas, na minha visão, não é verdade que haja, efetivamente, uma penetração da extrema-direita não só na polícia, como em vários outros setores da sociedade, e em particular na Administração Pública”, explica. Pode acontecer, admite, mas afasta que seja um comportamento generalizado. “É verdade que, tendencialmente, de uma forma inclinada, nós costumamos ver nas forças da ordem um filão de recrutamento maior do que em qualquer outro setor. Eu tenho imensas reservas, conhecendo a polícia como eu conheço, e as forças de segurança, de que seja totalmente verdade”, assinala ao DN. De acordo com o líder sindical, não existem provas sobre uma cooptação da extrema-direita nas fileiras da PSP. “Não vejo, em momento algum, uma sustentação factual que seja suficientemente forte. Não estou a dizer que não haja indícios, nem que não haja casos. Mas daí até podermos extrapolar ou exorbitar e precipitarmo-nos numa conclusão que crie uma ideia de sistema de contaminação sistémica, acho que é totalmente errado”, salienta.
Segundo Paulo Santos, ao mesmo tempo, os polícias são pessoas e cidadãos com direitos. “Os polícias são cidadãos em uniforme, mas não deixam de perder a sua qualidade de cidadão. E aquilo que o polícia faz, aquilo que defende, aquilo que é a sua ideologia, o seu clube, a sua religião, são da esfera pessoal. Não nos podemos esquecer, no entanto, de que são polícias e que estão ao serviço do Estado e que têm uma posição, têm uma implicação e uma proporção bastante relevante do ponto de vista social. Ainda assim, são livres de fazerem as suas escolhas pessoais”, argumenta o presidente da ASPP/ PSP.
Já Bruno Pereira realça que o comportamento de um indivíduo não pode prejudicar a imagem da PSP no seu todo. “Não podemos, em momento algum, admitir que haja qualquer tipo de comportamento individual que ponha em crise aquilo que é a visão e a perceção das pessoas quanto à confiabilidade destas instituições”, ressalta.
No caso do ex-juiz Rui da Fonseca e Castro, a rixa com a PSP remonta à época da pandemia. Após ser detido, na segunda-feira, o líder do Ergue-te e ex-magistrado enviou um documento ao Ministério Público (MP) com as razões para não apresentar-se à justiça voluntariamente. Um dos motivos apresentados é que “um dos elementos da PSP que se encontrava a elaborar o expediente” do caso, “encontrava-se com uma aparência física e odor incompatíveis com o exercício das suas funções”, nomeadamente “o seu cabelo apresentava um brilho e aparência de gordura, revelando falta de lavagem” e “o seu hálito exalava um forte cheiro a álcool, fazendo suspeitar embriaguez”.
Rui da Fonseca e Castro quer que seja instaurado um procedimento criminal contra o polícia, cujo nome divulgou num documento público e revelou novamente num direto nas redes sociais, na tarde da última quarta-feira, onde voltou a criticar a atuação das forças de segurança.
Rótulo sob duas óticas
O “rótulo” que ambos os experientes polícias entrevistados nesta peça mencionaram pode ser visto por outra ótica. Se a antipatia da extrema-direita pela PSP é nova, entre grupos antifascistas ou de extrema-esquerda a situação é recorrente. Alguns destes integrantes usam o jargão “bófias” para se referirem a membros da polícia, por entenderem que os agentes são de extrema-direita e duvidarem de que os possam proteger em determinadas situações.
Alguns episódios ajudam a sustentar esta ideia. O chamado “Movimento Zero” já esteve colado ao Chega em diversas ocasiões. Um dos próprios detidos pela PSP na passada sexta-feira trabalha na área de segurança. João Vaz é guarda prisional e já foi condenado por agressões, tendo sido dos arguidos num processo que investigou vários skinheads, grupo abertamente neonazi e de caráter violento.
Em novembro de 2022, uma investigação realizada por um consórcio de jornalistas denunciou 591 perfis de polícias (295 de militares da GNR e 296 de agentes da PSP) que propagavam mensagens “contrárias ao Estado de Direito, apelos à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos, simpatia pelo Chega e por outros movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista”. Em 2023, a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) condenou um polícia em processo disciplinar por factos discriminatórios. Outros 13 inquéritos pelo mesmo motivo estão em andamento. Já em 2024 a mesma instituição instaurou quatro processos disciplinares a agentes da PSP por comportamentos discriminatórios.
Em março do ano passado, a PSP publicou no Instagram a fotografia da operação de segurança numa ação de rua do grupo 1143 com a frase “A nossa missão é garantir a sua segurança”. O registo foi a manifestação “Contra a Islamização da Europa”, em que os membros do 1143 marcharam por Lisboa com tochas, faixas e a fazer saudações nazi. O post teve repercussão negativa e foi apagado. Na altura, a direção nacional do órgão explicou ao DN que a decisão de apagar a foto “teve por objetivo não continuar a alimentar qualquer polémica”. Naquela noite foram registados confrontos com grupos antifascistas, ficando dois jornalistas, em exercício de funções, feridos por agentes da PSP.
No ano passado, o DN acompanhou com exclusividade uma sessão da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) de formação sobre prevenção de comportamentos xenófobos e racistas a polícias e guardas republicanos. Sem meias-palavras, a inspetora-geral disse diante dos olhares atentos de dezenas de profissionais: “Digo-vos de uma forma absolutamente frontal, clara e explícita: quem acha que uma pessoa, pela sua cor de pele, é merecedora de menos respeito, de menos dignidade, não tem lugar nas forças de segurança. Quem acha que alguém que seja homossexual é recebedor de menos dignidade ou menos respeito, não tem lugar nas forças de segurança. Quem acha que alguém que veio de um país que não é o nosso é recebedor de menos dignidade ou menos respeito, também não tem lugar nas forças de segurança”, sublinhou a então inspetora-geral da instituição, Anabela Cabral Ferreira.
Num episódio ainda mais recente, o Governo decidiu retirar do Relatório Anual da Segurança Interna (RASI) excertos relacionados com a extrema-direita - e que dialogam exatamente com os últimos acontecimentos, como a participação de um adolescente de 13 anos na manifestação, o recrutamento online e o risco de violência. Segundo a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna, responsável pelo RASI, a decisão de retirar da versão final do relatório um capítulo de cinco páginas sobre “Ameaças Híbridas e Extremismos”, da autoria da Polícia Judiciária (PJ) terá sido debatida e aprovada por todos os membros do Gabinete Coordenador de Segurança numa reunião, dia 21 de março, onde foi apresentada a “versão de trabalho”, na presença das ministras da Administração Interna e da Justiça, como o DN escreveu no mês passado.
Caiu a máscara?
Uma fonte da PSP disse ao DN que esta revolta da extrema-direita contra a PSP exemplifica que nem sempre estes apoiantes, de facto, apoiam o trabalho da polícia ou acatam as normas legais. “Caiu a máscara”, resumiu. Esta é uma “falsa amizade com os polícias”.
Para o sindicalista Paulo Santos, uma lição que fica é que os polícias precisam de estar cada vez mais preparados e apoiados para estas manifestações, em que os profissionais também estão expostos. “Nós temos dito várias vezes que o papel dos polícias está cada vez mais difícil, mais complexo e mais arriscado. Isto é fruto daquilo que são as dinâmicas sociais da nossa realidade atual.” É importante “que a polícia esteja mais valorizada para poder dar respostas a estes fenómenos, a estas dinâmicas, sempre em nome da paz, da tranquilidade pública, da tolerância e ao serviço do cidadão”, analisa. Na passada sexta-feira dois polícias ficaram feridos, facto lamentado pela direção nacional da PSP.
Já em tempos de polarização e em plena campanha eleitoral, Bruno Pereira reafirma que a PSP não está ao serviço de nenhum partido ou grupo. “Se existe aqui uma solidariedade viciada ou podre, eu dispenso, dispenso totalmente. Se, por outro lado, for verdadeiramente positiva, venha ela de que ala, grupo ou universo for, recebo de braços abertos.”
amanda.lima@dn.pt