“Não há lugar nas forças de segurança para quem seja racista ou xenófobo”
Desde que se começou a atribuir a nacionalidade portuguesa a toda a merda que cá entra, só podia dar merda”. “O amigo Mário Machado tratava disso se o deixassem”. “Só me faltava mais essa, um chamuça [o então primeiro-ministro, António Costa] vir pedir-me uma missão.” Estes comentários foram publicados em redes sociais abertas por membros das forças de segurança portuguesas, a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Segurança Pública (PSP.)
Os mesmos comentários foram lidos pela inspetora-geral da Administração Interna, Anabela Cabral Ferreira, numa sessão de formação para profissionais de segurança, a qual o DN acompanhou. O uso destes exemplos foi para mostrar alguns dos comportamentos que não são tolerados e que a IGAI está atenta em combater.
A “polícia dos polícias” viajou até Braga - entre outras sedes de distrito por todo o país e ilhas - para levar pessoalmente a mensagem: não há espaço nas forças de segurança para o discurso de ódio. Sem meias-palavras, a inspetora-geral disse-o diante dos olhares atentos de dezenas de profissionais: “Digo-vos de uma forma absolutamente frontal, clara e explícita: quem acha que uma pessoa, pela sua cor de pele, é merecedora de menos respeito, de menos dignidade, não tem lugar nas forças de segurança. Quem acha que alguém que seja homossexual é recebedor de menos dignidade ou menos respeito, não tem lugar nas forças de segurança. Quem acha que alguém que veio de um país que não é o nosso é recebedor de menos dignidade ou menos respeito, também não tem lugar nas forças de segurança.”
A inspetora-geral acrescentou que tais pessoas “poderão servir para outra coisa”, mas não para ser polícia. Não houve reação negativa do público - cerca de 30 profissionais, a maior parte deles em funções de comando. Além do encontro em Braga, a mesma mensagem foi levada a outros centenas de agentes e guardas nos últimos meses em cidades por todo o país. O esforço faz parte do Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, lançado em março de 2021.
Na altura, a justificação para a criação da iniciativa era a preocupação “com a influência que determinadas orientações ideológicas aparentam assumir de modo inorgânico em setores das forças, os quais, ainda que residuais e circunscritos, beneficiam de visibilidade considerável”.
O documento não tenta minimizar a questão, mas assume a necessidade de a enfrentar. “A negação do problema ou a sua desvalorização não constituem caminhos viáveis: num Estado de direito democrático, qualquer ameaça à sua estrutura ou aos seus fundamentos deve ser considerada.”
O plano não foi imposto aos polícias. Segundo Anabela Cabral Ferreira, foi construído de maneira colaborativa pelos próprios, uma das razões para o nível de aceitação observado. “A recetividade foi extremamente positiva, até confesso que mais positiva do que aquilo que eu, a dada altura, receava”, explica ao DN. O componente das formações é visto por Anabela como um dos mais importantes, por atuar na prevenção e tocar em pontos da agenda do dia, como a discriminação e o discurso de ódio.
Cumprir a Constituição
Ao referir aos polícias que não há lugar para profissionais que discriminam os cidadãos, a inspetora-geral deu uma explicação que considera simples. “Os senhores, quando escolheram esta carreira, juraram cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. A Constituição da República Portuguesa não é um conjunto de princípios que lá estão escritos para não se negar. Logo no primeiro artigo diz que Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”, disse.
Os olhares continuaram atentos. “Nós não podemos esperar que cumpram e façam cumprir a Constituição quando depois são os primeiros a violarem essa Constituição. Se a Constituição exige o tratamento com dignidade, nós não podemos permitir que alguém que seja membro de uma força de segurança viole essa dignidade, quer sendo racista, quer sendo homofóbico, quer sendo xenófobo ou qualquer outro tipo de discriminação”, complementou.
Além das formações, já existe uma espécie de “filtragem” na seleção dos polícias. Segundo a operacional, uma das questões a serem respondidas pelos recrutas é sobre o grau de adesão ao Estado democrático de direito. “Não nos interessa só aquele que tenha uma boa condição física, até podem ser academicamente melhores, mas depois, se não tiverem estes princípios, não servem”, vincou.
Estas declarações fizeram parte da primeira etapa da formação, onde Anabela Cabral Ferreira dialoga diretamente com os polícias. Fala de forma entusiasmada, entre algumas frases engraçadas que arrancaram risos da plateia e perguntas aleatórias aos participantes. É também enfática e assertiva nas mensagens que passou, sem deixar de mostrar respeito e consideração para com os profissionais.
Depois, sem a presença da inspetora-geral, são formados grupos para discussão conjunta de exemplos práticos, selecionados por oficiais de direitos humanos e psicólogas das forças de segurança. Os casos apresentados - todos reais - não são óbvios, como a famosa frase “volta para a tua terra”. A equipa multidisciplinar busca exemplos de discriminações “menos óbvios” e os profissionais dialogam sobre como agir.
Para cada encontro os temas também são personalizados, tendo em conta a realidade de cada região. Até agora, falta apenas a região do Algarve receber a formação. A IGAI e a equipa já foram até à Madeira e aos Açores, com sessões em Angra do Heroísmo e Ponta Delgada. “O que queremos é promover muito a proximidade, não queremos que isto seja visto como um enorme sacrifício, mas sim promover a discussão e a proximidade. E realmente a ideia de que tudo começa e acaba em Lisboa penso que vai sendo ultrapassada”, explica ao DN.
O perigo da generalização
Num dos exercícios, a inspetora pediu que os polícias respondessem o que lhes viesse à cabeça ao ouvirem a palavra “islão” - mas que o fizessem de forma sincera, sem julgamentos. Responderam “religião” e “diferentes culturas”. Mas não eram estas as respostas que a “polícia dos polícias” esperava. Até que um deles disse “terrorista”. Depois, perguntou o que lhes ia na cabeça ao ouvirem a palavra “padre”. A resposta foi mais rápida: pedofilia. O exercício era, portanto, debater sobre as generalizações. “Isto é extremamente perigoso. Há terroristas muçulmanos? Claro que sim, basta vermos o 11 de Setembro. Há padres pedófilos? O próprio Papa Francisco já pediu desculpa por isso. Mas nem todos os muçulmanos são terroristas nem todos os padres são pedófilos. Veem o perigo que é generalizar?”, questionou.
Outro assunto que nunca fica de fora, não importa o local da formação, é o uso das redes sociais. Como citado no início deste artigo, são mostrados exemplos de comentários que não são tolerados e que podem ser alvo de inquéritos. De acordo com Anabela Cabral Ferreira - que construiu carreira como juíza antes de comandar a IGAI -, é preciso não confundir os comentários de ódio com liberdade de expressão.
“Não se pode ir ali despejar estados de alma. Se o fizerem, colocam em causa a imagem de toda a instituição. Não vão apontar que foi um PSP ou um GNR, vai manchar o nome da própria instituição.” Quando uma reportagem da SIC denunciou quase 600 casos de comentários de ódio nas redes sociais, a IGAI realizou uma investigação e abriu 13 inquéritos disciplinares. Na altura, tanto a PSP como a GNR já tinham manuais de boas práticas para os profissionais das corporações. O extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) também possuía um documento semelhante.
Mónica Girão, ex-oficial de direitos humanos do SEF, agora inspetora na IGAI, refere a importância dos manuais. “São temas ainda muito recentes, e os próprios trabalhadores ainda estão a apalpar terreno, ainda estão a ver como é que se podem posicionar neste novo mundo”, explica. A profissional, formada em Direito e com pós-graduação em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, ajudou a elaborar o plano de prevenção que agora aplica. “Tem sido extremamente gratificante e muito importante, nós também sentimos que do outro lado tem havido esse reconhecimento”, avalia.
Além do comportamento nas redes sociais, outro tema na formação é a própria atuação no terreno. Diferente de há 20 anos, é comum que hoje as ações sejam filmadas e publicadas nas redes sociais. “Os senhores são os primeiros a querer passar a imagem de que a vossa corporação seja favorável”, argumenta.
Mais do que a imagem pública, a inspetora-geral alerta para o dever de respeitar todas as pessoas. “Ponham-se no lugar daquele que ouve uma frase discriminatória. A pessoa vai sentir-se humilhada e não queremos que humilhem as pessoas.” Também do ponto de vista tático, analisa que alguns tipos de abordagens podem ter uma “reação musculada e escalar”, e não é isso que a polícia quer.
Os polícias falam
Nas sessões, os profissionais são encorajados a falar e a comentar situações que achem pertinentes. Tanto a avaliação de Anabela Cabral Ferreira quanto a de Mónica Girão é que os polícias são participativos e abertos às reflexões.
Em Braga, um dos profissionais sugeriu que fossem dadas formações específicas sobre como tratar das questões LGBTQIA+. “Não é uma questão de preconceito, às vezes não sabemos como chamar corretamente no caso das pessoas trans, por exemplo”, disse um deles.
A inspetora-geral acolheu a sugestão e explicou que o tema era realmente importante. Ao DN disse depois que este exemplo demonstra como os polícias estão interessados em evoluir e adaptar-se aos novos tempos. “Eles não veem a formação como um fardo. Isso é algo que me deixa particularmente feliz, é conseguir trazê-los, captar a sua atenção. Portanto, não temos pessoas nos telemóveis, não temos pessoas com um olhar vago a pensar quando é que isto acaba. Fazem perguntas com frequência, colocam questões de uma forma muito à vontade e é isso que nós pretendemos. Porque isso significa que estão ali efetivamente, não estão por obrigação, estão a ouvir e a prestar atenção”, sublinha.
Mónica Girão faz a mesma análise. “Eles sentem-se tranquilos porque nós indicamos logo que não há avaliações. Quando vem a IGAI, há sempre um certo receio, e nós estávamos com alguma apreensão sobre se isso tivesse algum impacto. Este modelo transmite-lhes um grande à vontade, que era o que pretendíamos, para dar a sua opinião, dar a sua opinião tranquilamente, não se sentirem condicionados”, afirma.
Outra diretriz do plano que está em prática é promover a diversidade nos próprios polícias. Nas comunicações oficiais das redes sociais tanto a PSP quanto a GNR publicam fotos em que mostram mulheres e profissionais com diversos tons de pele. Nas redes sociais os comentários muitos vezes demonstram que portugueses racistas e machistas existem.
Numa foto publicada a 24 de março no X (antigo Twitter), em que aparece um polícia negro e duas mulheres, vários comentários são discriminatórios. “Agenda woke na PSP é triste”, escreveu uma senhora. Outro foi mais direto: “Esta imagem não representa a PSP. Nojo e vergonha.” “Essa foto foi tirada onde? Em Moçambique?”, questiona outro internauta. “Mulheres e um preto? Quem gere esta página deveria ser preso”, criticou outro. “Fo**-**, pretalhada na PSP?”, mais outro. Estes são apenas exemplos de uma publicação.
No mesmo post, outros comentários vão na mesma linha, assim como diversas fotos semelhantes. De acordo com a inspetora-geral, não se trata da alegada “agenda woke”, mas sim de mostrar à comunidade que a polícia representa a população portuguesa. “Não somos os mesmos de há 20 anos. Queremos uma polícia diversa e também taxas mais altas de feminização”, disse aos formandos.
Polícias também são alvos de discriminação
Além dos comentários nas redes sociais, os polícias também são alvo de discriminação por parte da sociedade. Nos protestos, são comuns frases contra os agentes - que estão lá para manter a segurança dos manifestantes. Uma foto tornou-se viral há alguns anos onde se mostra um manifestante a cuspir na cara de um polícia.
“Não podemos achar que todos os militares e todas as polícias são corruptos ou estão radicalizados. Eles queixam-se bastante e tenho ouvido isso recorrentemente nas ações de formação, naquilo que eles percecionam como alguma injustiça de tratamento, nomeadamente jornalístico, no que diz respeito à atividade deles”, explica a inspetora-geral. E recorda que a sociedade precisa ter em mente que os polícias também são seres humanos. “A atividade deles é extremamente difícil, é extremamente dura. São confrontados diariamente com aquilo que nós, cidadãos comuns, não somos, que é com a necessidade de repor a ordem, com a necessidade de usar a força, às vezes com a necessidade de usar armas”, argumenta.
Além da prevenção de comportamentos discriminatórios, PSP, GNR e IGAI apostam em programas e ações que preservem a saúde mental dos polícias. O objetivo é não só ajudá-los a lidarem com as intensas situações que vivem todos os dias, principalmente no terreno, mas também com um dos pilares para o desempenho de um bom trabalho e que não escale para a violência.
Na formação em Braga, mais de uma vez a inspetora-geral referiu a importância de procurarem ajuda quando sentirem necessidade, sem vergonha ou julgamentos. “O que é problemático é se chegarem à noite e não conseguirem dormir. E se não vos apetecer levantar da cama? Se não vos apetecer tomar banho? Se não vos apetecer viver? Isto é algo que pode acontecer a qualquer de nós. A mim, a um dos meus comandantes, às minhas psicólogas, a qualquer um de entre nós”, alertou.
Anabela Cabral Ferreira pediu que o sentido de cuidado mútuo seja amplificado entre os camaradas. “O que quero pedir a todos pela responsabilidade que têm enquanto comandantes? Olhem uns pelos outros. Encarem as vossas funções de comando como as refeririam numa família”, pediu.
Vergonha em pedir ajuda?
O major José Cardoso, chefe do Departamento de Psicologia da Unidade de Saúde da GNR (Centro Clínico), comanda uma série de programas que visam cuidar da saúde mental dos militares e seus familiares. Ao DN afasta a ideia de que seja generalizado o tabu em procurar ajuda psicológica. “Esse tabu é cada vez menor por determinadas razões. Uma é a confiança no nosso trabalho, confidencialidade e ética. Também não há aqui interferência da cadeia de comando”, explica. Se ainda há alguma resistência, é quebrada com base na camaradagem e respeito pelos militares, e existe ainda um grande sentimento de pertença, um aspeto forte na GNR. “Às vezes um utente não quer vir aos serviços clínicos, pelo que acabamos por ser nós a fazer o primeiro contacto onde a pessoa se sente mais confortável”, explica.
Outra situação comum é que sejam os comandantes e os pares a referenciarem os militares à Unidade de Saúde. “Mostra que estão atentos aos comportamentos dos camaradas e que se preocupam”, avalia. É esse tipo de consciência que o psicólogo tem vindo a tentar desenvolver no terreno.
Uma das iniciativas são os “grupos de partilha”, geralmente depois de missões, em que cada um se sente à vontade para relatar um problema. “Eles identificam-se e têm coragem em partilhar, principalmente quando veem que é um militar de patente mais alta a partilhar algo no grupo. Expressamos as emoções, choramos, fazemos uma espécie de momento de reflexão e purga, e isso ajuda muito.”
O major, inscrito na Ordem dos Psicólogos, assumiu o cargo em 2017, depois de anos de carreira na área operacional. E fala com entusiasmo e paixão das diversas iniciativas do departamento, desde a linha de apoio 24 horas à avaliação de risco realizada a cada GNR, programas de prevenção ao suicídio, grupos de apoio para militares e suas famílias e as ações de formação mensais, onde contam com médicos, enfermeiros e psicólogos.
O sucesso é tanto que o departamento já recebeu - e receberá de novo este ano - o prémio Healthy Workplaces Award (Locais de Trabalho Saudáveis). Para o major, a prevenção da saúde mental também está na base do combate à discriminação. “Temos muitas formações onde abordamos a temática da promoção da saúde, em que incluímos temas variados, como a igualdade na diferença”, conta.
Para o militar, a sociedade hoje vive uma “crise de valores”, em que “se perdeu, de certa forma, o respeito pela pessoa humana”. Nas formações, o psicólogo usa uma série de exemplos para mostrar que não importa a orientação sexual, etnia ou nacionalidade das pessoas: todas merecem dignidade e o melhor atendimento possível. Na PSP a estratégia é semelhante. O cuidado em ambas as forças de segurança é redobrado pelo fácil acesso com que podem cometer suicídio por meio de arma de fogo.
O psicólogo Jorge Silva trabalha na PSP há duas décadas. Com a experiência, consegue ver a diferença. “Em 20 anos muda o paradigma na saúde mental de um país e, consequentemente, nas forças de segurança. Mudou para melhor, porque há um menor estigma em procurar apoio para a saúde mental, que é vista cada vez menos como um sinal de fraqueza”, argumenta.
“Nas formações falamos sempre na necessidade de ajudar os colegas e identificar sinais de risco”, continua a explicar. Sobre a radicalização, o profissional expressa que nunca atendeu um caso específico, mas que “todas as pessoas possuem capacidade de mudar”.
Global Imagens | Global Imagens
“As forças de segurança não são racistas”
A inspetora-geral vinca ter a certeza de que “as forças de segurança de Portugal não são racistas” e que o problema existe, mas não é endémico nem transversal. Para ela, os polícias são “confiáveis, merecedores de respeito e consideração”. A inspetora Mónica Girão concorda. “São casos pontuais, que precisam ser punidos, isso é inquestionável”, pontua.
Em 2023, a IGAI condenou um polícia em processo disciplinar por factos discriminatórios. Outros 13 inquéritos pelo mesmo motivo estão em andamento.
Ao longo do ano passado também foram aplicadas penas como suspensões por casos semelhantes, como o de um agente que partilhou um texto intitulado “O GNR cigano”, acompanhado de fotografias do cidadão visado, na sua página pessoal e num grupo nas redes sociais. Também já aconteceram casos de expulsão da GNR, como o de André Ribeiro, condenado a prisão efetiva por violação de domicílio, sequestro e agressões a imigrantes em Odemira, no ano de 2018.
“O dia em que, como inspetora-geral, me irei sentir mais gratificada vai ser o dia em que chegue à Inspeção-Geral e me digam que há zero processos disciplinares. Irá ser o dia em que sinto que tudo tem valido muito a pena”, finaliza.
amanda.lima@globalmediagroup.pt