Como o Movimento Zero capturou o protesto dos sindicatos de polícias
Pacíficos e determinados, os manifestantes com as t-shirts do Movimento Zero foram dominantes no protesto organizado pelos dois maiores sindicatos da PSP e da GNR. A sua palavra de ordem - "Zero! Zero!" - foi a que mais se ouviu na caminhada entre o Marquês de Pombal e a Assembleia da República e, aqui, foram as mesmas palavras que mais alto soaram, num protesto em que os polícias começaram a desmobilizar pouco antes das 18.00, depois de terem cantado o hino nacional de costas voltadas para a casa da democracia.
Ficou clara a cumplicidade e a proximidade entre o Movimento Zero e o partido populista de extrema-direita Chega. Vestido com uma t-shirt do movimento de polícias anónimos, André Ventura foi o único político a subir ao carro de som da organização da manifestação - alegadamente sem ter pedido aos dirigentes dos sindicatos - e a discursar. "Hoje vocês mostraram que a polícia unida jamais será vencida", gritou, seguido de uma chuva de aplausos e de gritos sonoros "Ventura! Ventura!".
Outra marca da manifestação foi também a consolidação do gesto adotado como símbolo do Movimento Zero - polegar e indicador juntos a formar um zero e os outros três dedos levantados - um gesto também utilizado por supremacistas brancos e organizações de extrema-direita.
Nos EUA, a Liga Antidifamação, uma organização que denuncia e combate o racismo e o antissemitismo, juntou este gesto à sua lista de símbolos de ódio, ao lado de outros utilizados por grupos racistas e xenófobos, como a cruz suástica. O atirador extremista de direita da Nova Zelândia, Brenton Tarrant, que matou 49 pessoas numa mesquita, fez também esse gesto quando entrou no tribunal.
Confrontados pelo DN, alguns dos apoiantes que faziam o gesto garantiram desconhecer esse significado. "Para nós é zero, ponto final. Não temos nada a ver com a extrema-direita", sublinha, visivelmente irritado um agente principal da PSP que veio do Porto.
Questionado pelo DN sobre o porquê de o líder do Chega ter sido autorizado a discursar, Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical de Profissionais de Polícia (ASPP), um dos organizadores, respondeu laconicamente: "Pediu ao pessoal do carro e eles deixaram. Enfim."
O desconforto era evidente, tendo em conta que a organização tinha apelado previamente, em comunicado, aos partidos ou aos deputados que mantivessem esse apoio "exclusivamente nos debates e na pressão política dentro da Assembleia da República e das autoridades responsáveis".
No entanto, o Movimento Zero ignorou a orientação e, numa atitude de claro desafio, dirigiu um convite direto aos partidos com representação parlamentar "para participar na manifestação organizada pelas forças de segurança", juntando-se a ela, junto às escadarias da Assembleia. Possivelmente já a preparar a receção a André Ventura.
Quando, ainda no Marquês de Pombal, já era notória a maioria de t-shirts do Movimento Zero, César Nogueira, o presidente da Associação Profissional da Guarda (APG), a outra organizadora do protesto, confessou que não o "incomodava" que a manifestação fosse capturada pelo Movimento Zero. "Há muitos que são nossos associados. Partilham as mesmas preocupações e reivindicações", afiançou.
O agente da PSP Basílio Monteiro disse ao DN que é associado da ASPP, mas que a t-shirt que ia vestir seria a do Movimento Zero. "Estamos todos indignados e revoltados. Sou polícia e bombeiro voluntário e o Estado não faz nada por mim. Ainda quer que eu trabalhe mais anos, até aos 59 ou 60."
Um grupo de polícias com t-shirts do Movimento Zero, que pediu, claro, o anonimato, descreve o rol de queixas. Vieram de Vila Franca de Xira e de Castelo Branco. "O descontentamento é muito grande mesmo. Estão a levar-nos ao limite. As pessoas não fazem ideia das condições em que trabalhamos, subjugados como escravos pelos senhores oficiais do alto dos seus tranquilos tronos. E ainda nos dizem 'vá, vão lá fazer barulho, mas não muito'. É hora de dizer chega, basta", assevera um deles.
"Faço patrulhas há 12 anos, nunca quis fazer mais nada na vida, e nunca como agora senti tantas vezes vontade de desistir. Andamos arrasados. Mas depois vem sempre aquele sentido do dever. Quando há alguma ocorrência não consigo ficar parado. Os que não têm culpa precisam de nós. E é por isso que tudo continua a correr bem, porque fazemos sempre o nosso trabalho. Depois o governo vangloria-se e dá-nos pontapés. Sinto-me muito revoltado", sublinha um agente mais velho.
Num outro grupo de apoiantes do Movimento Zero estão militares da GNR. Vieram do norte do país, Viseu e Tondela. A sua descrição dos postos é quase inacreditável. Riem-se quando olham para os números de investimento apresentados pelo ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. "Até 2019 foram investidos mais de 15 milhões de euros na aquisição de cerca de 4000 armas, 4000 coletes balísticos e 29 mil fatos e outros equipamentos de proteção (como luvas, capacetes, bastões, etc.), a par de cerca de 18 mil equipamentos de apoio à atividade operacional e para funções especializadas (como radares, equipamentos para investigação de acidentes rodoviários, de investigação criminal, inativação de explosivos, etc.)", adiantou o ministério.
"No meu posto somos 21 e há quatro coletes à prova de bala e dois estão fora do prazo de validade", conta um dos militares. "No meu somos 24 e há um par de algemas para todos, duas embalagens de gás pimenta fora de prazo e só três fatos impermeáveis para a a chuva - sendo certo que um é para o chefe do posto, claro", acrescenta outro.
Explicam que o anonimato dos membros do Movimento Zero é para "evitar perseguições da hierarquia" que já testemunharam. "O Movimento Zero não pode ter um rosto, porque o rosto é o de todos nós", afiança o militar de Viseu. Garante que o Movimento está "muito bem organizado" e que todos "funcionam na rede Telegram", onde quem entra "tem de ser polícia e é previamente escrutinado". E "o melhor de tudo é que conseguiu unir os militares da GNR e os polícias da PSP. Juntos somos mais fortes", assinala ainda.
Fazendo um balanço final, Paulo Rodrigues avança com cerca de "entre 12 e 13 mil participantes", muito longe dos 17 mil de há seis anos, quando aconteceu a invasão da escadaria da Assembleia da República.
A PSP blindou todo o perímetro do edifício do Parlamento, cercando-o lateralmente com carros-patrulha e carrinhas da polícia. A zona da escadaria foi blindada com grades e blocos de cimento. Na sede da PSP, a manifestação foi sendo acompanhada com imagens em direto no Centro de Comando e Controlo Estratégico, sintonizado com o Centro de Comando Operacional de Lisboa e com o Posto de Controlo Tático, instalado numa carrinha junto à Assembleia. Um oficial que acompanhou as operações garantiu ao DN que "não houve momentos de tensão, tudo foi tranquilo".
Mas, com a ASPP e a APG a garantir que, caso o governo não responda às reivindicações, será realizada uma nova manifestação no dia 21 de janeiro, este oficial, que tem conhecimento de terreno do descontentamento das bases, advinha que "os protestos não vão parar enquanto não houver um sinal claro do governo". "A maioria do Movimento Zero é constituída por homens e mulheres que passam dificuldades por terem salários baixos e não se reveem nos sindicatos. Se não mexerem na questão salarial, vamos continuar a ter problemas e instabilidade", sublinha ainda.
Entre as reivindicações que motivaram o protesto, e além dos aumentos salariais, está também a atualização dos suplementos remuneratórios, que "há mais de dez anos que não são revistos", o pagamento de um subsídio de risco e mais e melhor equipamento de proteção pessoal. Os polícias exigem também uma fiscalização das condições de higiene, saúde e segurança no trabalho e que seja cumprido o estatuto na parte referente à pré-aposentação aos 55 anos.