"Os senhores tiraram a vida a uma pessoa e arruinaram as vossas"

Catorze meses depois da morte do imigrante ucraniano três inspetores do SEF foram condenados a penas de sete a nove anos de cadeia. O Tribunal entendeu ainda que a conduta de outros inspetores e seguranças merece "reparo" e mandou abrir novos inquéritos.
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A responsabilização sobre a morte do ucraniano Ihor Homemiuk está longe de ter terminado esta segunda-feira com a condenação dos três inspetores do SEF. O acórdão lido pelo presidente do coletivo de juízes, Rui Coelho, deu um tiro de partida para novos processos contra outros intervenientes que, como já concluíra a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) no seu inquérito disciplinar a esta morte, "por ação ou omissão" contribuíram para a morte agonizante de Ihor.

Duarte Laja e Luís Silva foram condenados a nove anos de prisão e Bruno Sousa a sete pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, agravada pelo resultado (a morte), mas o tribunal entende que "há um conjunto de pessoas cuja atuação não fica isenta de reparos", como é o caso de vigilantes e de outros inspetores.

O juiz presidente anunciou que iria extrair as respetivas certidões do processo e remetê-las ao Ministério Público (MP) para a instauração de inquéritos-crime - como, aliás, o DN tinha aventado.

Ao que o DN apurou, estas novas investigações vão juntar-se a outras relacionadas com este caso. Neste momento, recorde-se, o MP, coadjuvado pela PJ, tem dois outros inquéritos em investigação em curso.

Um sobre o eventual encobrimento de outros inspetores ao crime (o SEF informou o MP que se tratara de morte natural e só deu conhecimento à IGAI do caso seis dias depois), inquérito aberto por extração de certidão logo a seguir à dedução da acusação em setembro do ano passado e em relação ao qual não são conhecidos quaisquer desenvolvimentos.

Outro sobre a alegada atividade ilegal de segurança privada naquele EECIT, um processo que foi instaurado na PSP (tem competências de fiscalização deste setor) com base numa queixa do Sindicato da Carreira de Inspeção e Fiscalização do SEF, que representa os inspetores.

"Todas estas testemunhas têm consciência que poderão, ainda, ser sujeitas a investigação, caso venha a ser entendido que também poderão ser, de alguma forma, responsáveis", é escrito no acórdão. Inspetores que interagiram com Ihor depois deste ter sido agredido pelos três arguidos, bem como vigilantes que o ataram com fita adesiva nos pés e nas mãos "como se fosse uma embalagem", no entender do coletivo de juízes "enquadram-se claramente neste lote".

Um dos exemplos dados pelo tribunal é o próprio ex-diretor de Fronteiras de Lisboa Sérgio Henriques - um dos 13 inspetores alvo de processos disciplinares. "O Inspector-Coordenador António Sérgio Henriques, à data Diretor de Fronteira, descreveu as suas ações, levando a que tenha pedido, via rádio, que fosse enviado alguém ao EECIT por causa da queixa apresentada pelo comportamento de Ihor Homeniuk. Não concretiza qual o resultado pretendido a não ser que era preciso falar com o passageiro. Escudado na delegação de competências e na distância para a execução técnica da intervenção, relata que, ao ser informado pelo Inspector-Coordenador João Agostinho de que o problema estava resolvido, não se preocupou mais com o assunto. Como tal, o seu depoimento, circunstanciando a ação de terceiros, não contribuiu para aferir das condutas dos arguidos", sublinha o acórdão.

Maria Manuel Candal , advogada de Luís Silva (o inspetor que as câmaras de videovigilância filmaram a entrar com um bastão na sala onde estava Ihor), elencou, nas suas alegações finais, um total de 19 pessoas que, no seu entender, deviam ter sido constituídas arguidas - todos os outros inspetores que estiveram com Ihor, incluindo superiores hierárquicos, seguranças, enfermeiros, socorristas.

A responsabilidade criminal que atribui a todos aqueles que, entre a chegada de Ihor Homeniuk ao nosso país, pelas 10h25 do dia 10 de março de 2020 e o seu óbito, pelas 18h40 do dia 12 de março de 2020, com o mesmo interagiram, é vasta: homicídio por omissão, sequestro, omissão de auxílio, ofensas à integridade física simples, qualificadas e por negligência, omissão de denúncia, demissão do exercício de funções "contribuindo decisivamente para o resultado da morte".

Destaque para dois dos seguranças da Prestibel - empresa contratada pelo SEF para fazer a gestão quotidiana dos centros de detenção de estrangeiros desta polícia, que a acusação descreveu terem, "sem autorização e competência para tal", algemado Ihor "com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços".

Estes dois seguranças, Manuel Correia e Paulo Marcelo, admitiram perante o tribunal ter manietado o cidadão ucraniano com fita adesiva, e duas outras, colegas destes (Cátia Branco e Ana Sofia Lobo), tê-los assistido nessa ação.

O tribunal deu como provado que os três inspetores do SEF mataram Ihor, pois a morte deste foi consequência direta da sua ação. "Os senhores ao agirem como agiram tiraram a vida a uma pessoa e arruinaram as vossas", disse o juiz presidente, olhos nos olhos com os arguidos presentes na sala.

O magistrado considerou que os três inspetores tiveram "culpa elevada "na morte de Ihor Homeniuk". O tribunal destacou como "um dos momentos determinantes para a valoração da prova" aquele que ocorreu na manhã de 12 de março, pelas oito horas, antes da chegada dos três arguidos.

"Nessa altura, tal como observado por mais do que uma testemunha, a vítima estava apaziguada, não obstante as condições inadequadas nas quais era mantida. Com o vigilante Manuel Correia sentado à porta, assegurando uma "guarda à vista", ainda que preso nas pernas com fita adesiva, Ihor Homeniuk não estava a causar distúrbios, agressões ou a por em causa a sua própria integridade física. Era, contudo, uma situação insustentável para o funcionamento do EECIT, dependente de apenas de quatro vigilantes".

Por isso, salienta o Tribunal, "tudo é montado, desde a participação dos vigilantes, à cadeia de ordens difundida pela hierarquia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, para fazer crer que a vítima era um indivíduo perigoso que se punha em risco a si próprio e aos outros".

É convicção do coletivo de juízes que "os três arguidos vão à procura de um cenário grave de violência que não encontram. Pelo contrário. Ihor Homeniuk está com as pernas amarradas com fita adesiva".

Para o Tribunal "é fácil entender que a vítima, se então não estava, se torne agitada, e reaja àquilo que se torna aparente: três homens, sem falar uma palavra da sua língua, entram na sala para o confrontar".

Passados cerca de 15 minutos "os arguidos ausentam-se". A partir daqui, assinala o acórdão, "Ihor Homeniuk está sossegado. Não grita. Não se mexe. Deixou de "causar problemas". Está "sossegado". Que artes terão sido usadas para obter tal resultado? Estar algemado é uma das evidentes diferenças. Algemado com as mãos atrás das costas. E, sabemo-lo por força da autópsia, tem dores porque sofre de fraturas ósseas e das lesões musculares derivadas de fenómenos contundentes. Antes da entrada dos arguidos a vítima não estava assim. Porque se estivesse, necessariamente, os arguidos não o teriam algemado e teriam reportado o estado daquele cidadão, à guarda do SEF, apresentando a queixa devida dos vigilantes que o tivessem espancado. Porém, depois da sua saída, ficou a vítima prostrada, inativa, em sofrimento. Os Arguidos abandonaram Ihor Homeniuk ao seu sofrimento, algemado com as mãos atrás das costas".

O tribunal considerou provado que os três arguidos "agiram com o propósito de bater e causar dor, para que a vítima ficasse quieta sem perturbar o funcionamento do EECIT e sem se preocuparem com as consequências ".

Ficou provado que esta conduta resultou nas lesões descritas na autópsia - cuja nulidade foi pedida pela defesa e indeferida pelo Tribunal - que causaram a morte de Ihor Homeniuk por asfixia mecânica.

"Independentemente dos tratos inadequados que lhe foram infligidos durante a noite (dos quais a imobilização com fita adesiva é o mais gritante), na altura da mudança de turno dos vigilantes, Ihor Homeniuk não evidenciava qualquer debilidade compatível com a causa da morte. Note-se, causa emergente da concorrência de duas ações mecânicas: as pancadas contundentes que provocaram as lesões, conjugadas com a longa imobilização numa posição de sofrimento com as mãos algemadas nas costas. E Ihor Homeniuk, que ao longo da véspera fora pródigo em reclamações, gritos, tentativas de reagir ao que lhe estava acontecer, acaba inerte, sem reação a tamanha provação que, a final, foi a causa da sua morte. Este é o cerne da presente decisão de facto", salienta o acórdão.

Mas não ficou provado que o tivessem feito com intenção de matar. "Se a intenção fosse matar tê-lo-iam feito de imediato ", justificou o juiz. Por isso, acrescentou, "não podem ser condenados por homicídio". No entanto, assinalou, "quiseram magoar, causar dor".

O magistrado sublinhou ainda que a utilização sem controlo das algemas, como sucedeu, "pode ter sido tão ou mais graves do que as lesões nas costelas". Ihor esteve cerca de oito horas, depois de ter sido agredido, deitado no chão e algemado atrás das costas.

"Foi um processo longo e agonizante", concluiu o tribunal.

Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva chegaram a este julgamento acusados pelo crime de homicídio qualificado, com uma moldura penal que podia ir aos 25 anos de cadeia, tendo Bruno Sousa e Luís Silva sido ainda acusados por posse de arma ilegal (bastões cuja legalidade do porte deixou dúvidas), de que foram absolvidos.

Já nas alegações finais e perante os testemunhos e a prova produzida em julgamento, o Ministério Público (MP) recuou e pediu a condenação dos três inspetores apenas "por ofensas integridade física qualificadas agravadas pelo resultado", com penas entre 8 e 16 anos - não inferior a 13 para Duarte Laja e Luís Silva e não menos de oito anos para Bruno Sousa.

Numa investigação da PJ, numa acusação do MP e num julgamento em que nem sequer foram ouvidos nenhum dos 112 cidadãos estrangeiros que estavam no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do SEF no aeroporto ao mesmo tempo que Ihor e terão testemunhado violência, conforme lembrou José Gaspar Schwalbach, advogado da família de Ihor, com destaque para Letícia Calil, que falou ao DN, sob anonimato em novembro, e depois assumindo a sua identidade a 26 de fevereiro, disponibilizando-se para testemunhar (requerimento que o tribunal indeferiu), ficou a clara desde início a suspeita de que a responsabilidade por esta morte não se terá resumido ao momento da intervenção destes três arguidos.

A "ilegalidade, incúria, mentira e desumanidade" no SEF do aeroporto revelada pela morte de Ihor Homeniuk, conforme o DN descreveu em novembro passado, desvendaram muitas falhas no tratamento dos imigrantes, com uma IGAI sem meios para fiscalizar, um SEF a desvalorizar queixas; uma PSP alheada das suas competências, uma ambulância que é impedida de entrar na pista do aeroporto e atrasa o socorro a Ihor, e uma desresponsabilização ao mais alto nível, como a da ex-diretora do SEF que só foi demitida em dezembro, nove meses depois da morte, assumindo que se estava perante uma situação de "tortura evidente".

Paralelamente à investigação criminal, a IGAI tem a decorrer processos disciplinares sobre 13 inspetores e uma funcionária administrativa do SEF que, no entender deste organismo que fiscaliza a atividade policial, "por ação ou omissão" contribuíram também para a morte de Ihor.

Entre eles está o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa e o seu número dois, responsáveis pelo SEF do aeroporto Humberto Delgado, demitidos no dia 30 de março quando foram detidos Bruno Sousa, Duarte Laja e Luís Silva.

Nas alegações finais, a procuradora do MP salientou a "falta de misericórdia" e a "omissão de solidariedade" manifestada pelos acusados, num contexto em que o objetivo era manter Ihor Homeniuk algemado e imobilizado para que "custe o que custasse" embarcasse de avião em 12 de marco, de regresso à Turquia, ponto de paragem da sua viagem desde a Ucrânia.

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