O DCIAP e as escutas com António Costa. Os factos e as dúvidas por esclarecer
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O DCIAP e as escutas com António Costa. Os factos e as dúvidas por esclarecer

Estão em causa interceções telefónicas aos arguidos do processo Influencer, nas quais foram registadas conversas com o antigo primeiro-ministro que não foram validadas a seu tempo junto ao STJ.
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Factos

1 - As 22 interceções são novas

O número de 22 interceções está referido no despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) enviado na quinta-feira, dia 20 de novembro de 2025, aos advogados dos nove arguidos do inquérito designado “Influencer”, instaurado em 2019, que investiga indícios de corrupção e tráfico de influências em projetos de investimento, incluindo um data center em Sines, cujo primeiro de cinco previstos foi inaugurado em abril passado.

Conforme o DN noticiou, estas sessões decorreram em 2020, 2021 e 2022, envolvendo António Costa e três visados na investigação -- João Pedro Matos Fernandes, João Galamba e Diogo Lacerda Machado, estes dois últimos arguidos -- e foram submetidas pelo DCIAP em outubro passado, primeiro ao STJ e depois ao TCIC para validação.

De acordo com o despacho do TCIC que cita o requerimento do DCIAP, “as 22 sessões em causa, intercetadas entre 24.12.2020 e 24.12.2022, foram agora recuperadas porque, de acordo com um determinado entendimento, concretamente, o do Ministério Público, impunha-se a tomada de conhecimento das mesmas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça”.

Ao dizer que “foram agora recuperadas” indica que ainda não tinham sido e, portanto, são novas. Aliás, o DCIAP citado no despacho do tribunal, sublinhou que estas sessões não tinham sido previamente “identificadas” e submetidas ao STJ, como obriga a lei quando está em causa um chefe de Governo, “por motivos que não descortinámos”.

Em conclusão, a promoção do MP não deixa dúvidas. Foi o MP quem veio pedir em Outubro de 2025 que estas 22 escutas fossem enviadas agora (por não terem sido enviadas antes) ao STJ.

2 - Os argumentos do DCIAP para justificar esta demora: “Motivos que não descortinámos” e “razões técnicas diversas”

A justificação do DCIAP teve, até agora, dois momentos:

- No despacho do TCIC, quando cita o requerimento que este fez para a validação das sessões: “Da análise do acervo probatório em curso nos presentes autos, designadamente das interceções de comunicações que visaram João Galamba, Diogo Lacerda Machado e João Pedro Matos Fernandes, resultou a identificação de um conjunto de sessões em que António Costa, primeiro-ministro dos XXII e XXII Governos Constitucionais, interagiu com aqueles alvos por meio de chamadas de voz e de SMS. (…) Constatámos que todas essas sessões se encontram enquadradas nos Relatórios de Interceção de Comunicações constantes dos autos, embora, por motivos que não descortinámos, algumas delas não tenham sido identificadas para efeitos do previsto no artigo 11.º, n.º 2, b) do CPP”, argumentam os procuradores do MP.

- No comunicado do DCIAP divulgado nesta sexta-feira, dia 21: “No decurso de nova análise a todas as escutas realizadas, vieram a ser identificadas 7 outras (sendo que, dessas, 6 são apenas tentativas de contacto) em que também era interveniente o primeiro-ministro António Costa, facto que, por razões técnicas diversas, não havia sido detetado inicialmente”.

3 - António Costa não é arguido nem esteve sob escuta

“António Costa nunca foi diretamente objeto de escutas telefónicas nem de vigilâncias (nem quando era primeiro-ministro, nem quando deixou de o ser)”, garante o DCIAP no seu comunicado.

O antigo primeiro-ministro foi visado, em novembro de 2023, num comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre as buscas e detenções realizadas (entre as quais ao gabinete do seu chefe de gabinete, Vítor Escária) no qual informava que “no decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção” e que “tais referências” iriam ser “autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça”. Esta nota levou à sua demissão e à queda do Governo de maioria socialista.

Em maio de 2024, António Costa foi ouvido no DCIAP, na condição de “declarante”, na sequência de um requerimento por si apresentado.

Entretanto, o Expresso avançou que o atual presidente do Conselho Europeu pediu quatro vezes, no último ano, para consultar o processo, o que lhe tem sido negado pelo Ministério Público sob justificação de estar em segredo de justiça.

4 - Os advogados foram notificados da decisão do TCIC sobre as 22 novas escutas

Foram notificados todos os advogados dos arguidos Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária, Rui Oliveira Neves, João Tiago Silveira, Afonso Salema, João Galamba, Nuno Mascarenhas e da empresa Start Campus.

Rui Cardoso é o diretor do DCIAP
Rui Cardoso é o diretor do DCIAPGerardo Santos

Dúvidas

1 - Porque diz o DCIAP que são sete escutas e não 22?

Esta é uma dúvida que só pode ficar cabalmente esclarecida quando for possível aceder ao processo onde está o requerimento do DCIAP. Isto porque, segundo o despacho do TCIC que chegou aos advogados, são 22 e não sete que foram submetidas para validação, conforme foi explicado acima.

Das duas uma, ou o TCIC se enganou no número de sessões no despacho que fez, ou o DCIAP entendeu agora que são apenas sete e não as 22 que tinha submetido em outubro.

Em resumo, o DCIAP diz uma coisa; o juiz, no despacho, faz constar outra; a Justiça tem meios para esclarecer a verdade. Os advogados podem consultar o processo nesta fase.

2 - Afinal quantas escutas foram identificadas com António Costa como interlocutor e validadas pelo STJ?

De acordo com o que foi noticiado anteriormente e, nesta altura, sendo conhecido este novo desenvolvimento, podem ser mais de quatro dezenas de sessões a envolver conversas, SMS ou tentativas de chamada entre arguidos sob escuta e o antigo primeiro-ministro.

Em oito de novembro de 2023, um dia após as buscas realizadas no âmbito da investigação, o Observador noticiou que “mais de 20 escutas telefónicas envolvem PM e estão nos autos do processo do lítio”, acrescentando que tinham sido “validadas por dois presidentes do Supremo”.

Estas, segundo o Observador, decorreram entre 11 de novembro de 2020 e 2023, inclusive.

As novas 22, que decorreram entre 24 de dezembro de 2020 e 24 de dezembro de 2022, não foram validadas, segundo o TCIC.

Se há ou não duplicação, quantas exatamente são novas, só se poderá saber com a consulta do processo e o cruzamento da informação.

Todas as escutas neste processo foram sendo validadas pelo juiz de 1.ª instância no tempo previsto legalmente. Segundo o Código de Processo Penal (CPP) o órgão de polícia criminal que estiver a fazer as escutas -- neste caso a PSP -- deve fazer um relatório com as passagens relevantes para a prova, assinalando a sua importância para a “descoberta da verdade”. Depois, de 15 em 15 dias a partir do início da primeira interceção apresenta-as ao MP, com os respetivos suportes técnicos, o qual tem de os apresentar ao juiz num prazo máximo de 48 horas.

Caso houvesse indicação de que intervinha o primeiro-ministro, tinham necessariamente de ser remetidas ao STJ, para o presidente tomar conhecimento e, se fosse o caso, mandar destruir.

3 - O que pode acontecer com estas 22 escutas?

Sobre estas 22 escutas cuja validação o DCIAP promoveu em outubro, o presidente do STJ disse que não tinha competência para as conhecer porque o António Costa não é PM no momento em que as escutas lhe foram apresentadas.

O juiz do TCIC limitou-se depois a dizer, no despacho, que entendendo o STJ não tomar conhecimento destas novas 22 escutas, não tinha nada mais a fazer para além daquele controlo que na altura o juiz de 1.ª instância fez tempestivamente.

Estas 22 escutas foram interceptadas em períodos temporais de várias outras que não envolviam o PM e foram sendo enviadas para controlo pelo juiz de 1.ª instância.

A grande questão processual que agora se coloca é esta: qual é a consequência de estas 22 escutas em que intervinha o PM não terem sido levadas ao conhecimento do Presidente do STJ em tempo?

E o controlo que foi sendo feito pelo juiz de 1.ª instância foi suficiente? Parece não ter sido.

Adicionalmente, pode ainda questionar-se: a que título o MP tem em seu poder, durante cinco, quatro e três anos, escutas que envolvem o primeiro-ministro sem das mesmas dar conhecimento ao STJ?

Os juristas consultados pelo DN admitem que estas sessões podem vir a ser consideradas prova proibida, por não terem sido levadas ao presidente do STJ logo após a intereceção.

4 - Estas escutas são realmente importantes para a investigação?

À partida, se o DCIAP entendeu que as devia extrair e submeter ao tribunal para validação, é porque as considerou relevantes para provar a intervenção de António Costa no processo. Mesmo as tentativas de contacto podem ser consideradas pela investigação como uma forma de comunicação (um "toque").

Pode-se colocar a questão se estas escutas só surgiram agora porque o MP encontrou alguma que possa ter interesse para a investigação? Ou ainda, se não havendo esse interesse, mesmo sendo descobertas agora, será que não iriam permanecer “esquecidas”? Finalmente, foi intencional ou mera incompetência de quem estava a verificar as escutas?

Só mesmo conhecendo o respetivo conteúdo é possível tirar conclusões rigorosas.

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