O humorista Jimmy Kimmel regressou aos ecrãs dos Estados Unidos a falar num "manto intimidatório" que estará instalado no país. “O Governo federal não pode policiar o discurso público”, disse o artista no seu retorno, após ter tido o seu programa Jimmy Kimmel Live!, na emissora ABC desde 2003, suspenso, entre outros motivos, por pressão do presidente Donald Trump.Trump e a sua administração têm ameaçado e aberto processos judiciais para tentar exercer um maior controlo sobre a indústria dos media, naquilo que o próprio presidente define como uma tentativa de 'libertar' os Estados Unidos.Mas, afinal, o que é ser livre? Qual é a liberdade à qual se referem Trump e outros políticos nos seus discursos?A 'liberdade' é daqueles conceitos que poderá ter uma definição diferente consoante o indivíduo a quem perguntarmos a sua definição. No entanto, na origem de tudo estão as antigas civilizações e refletir sobre aquele tempo também pode ser útil, especialmente para quem, como nós, vive os dias de hoje.Os primeiros registos do termo grego antigo eleutheria (liberdade) são datados entre o final do século VI a.C., início do século V a.C. O termo aparece nas Odes de Píndaro, nos epigramas de Simónides e nas tragédias de Ésquilo, obras que trazem o conceito atrelado "principalmente à liberdade coletiva", explica ao DN a investigadora Helen-Melina Tamiolaki, da Universidade de Creta.Naquela altura, a perceção do que era ser livre estava associada "à democracia, à liberdade de expressão, à igualdade perante as leis, à oposição à tirania, à obediência às leis e ao poder imperialista. Liberdade era também uma palavra de ordem, frequentemente utilizada em contextos retóricos e apropriada pelos partidos opositores (por exemplo, democratas, oligarcas, etc.), cada um atribuindo-lhe um conteúdo diferente", completa a professora.Também especializado no estudo das antigas civilizações, o professor Lothar Willms, da Universidade Humboldt de Berlim, reforça que "para os atenienses, a liberdade era um elemento básico da democracia, o que significava estar livre de qualquer restrição e ter determinados direitos, como a liberdade de expressão. Sim, a liberdade de expressão fazia parte desse conceito. E não sofrer com interferências do Estado", diz ao DN."Na Roma Antiga, o conceito de libertas referia-se principalmente aos direitos e obrigações legais dos cidadãos, o que parece mais próximo da nossa percepção moderna dos direitos individuais", acrescenta Tamiolaki..Da perceção coletiva inicial, o conceito de liberdade foi transformado por dois grandes acontecimentos na Antiguidade. "Um foi o discurso filosófico, que se apropriou da ideia de liberdade e a transferiu para a liberdade da mente, a liberdade interior. E isto foi posteriormente adotado ou transformado pelo cristianismo, que entende que a liberdade significa ser livre por Cristo e existe uma dialética da servidão", explica Willms."No entanto, o facto de novos aspctos da liberdade terem surgido ou sido enfatizados ao longo do tempo não significa que dimensões mais antigas deste conceito tenham sido eliminadas. Talvez fosse mais preciso dizer que a liberdade, enquanto conceito multifacetado, emergiu e se desdobrou em muitas direções diferentes, desde a Antiguidade até aos tempos modernos", pontua Helen-Melina Tamiolaki.AtualidadeOs dois investigadores conversam com o DN à luz da Celtic Conference in Classics, uma das maiores conferências internacionais dedicadas aos Estudos Clássicos, organizada pelo Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que, este ano, dedicou um painel ao conceito de liberdade e refletir sobre os desafios contemporâneos, numa era em que polarizações políticas são constantes, liberdade de expressão tornou-se tópico em conversas nos mais diversos níveis e ameaças aos valores democráticos são vistas em vários países."De um modo geral, o estudo da noção grega antiga de liberdade pode tornar-nos mais atentos aos desafios modernos, por exemplo, melhorando a nossa clareza conceptual, cultivando o nosso sentido de detalhe, encorajando uma comparação entre as percepções antigas e modernas de liberdade e aumentando a nossa consciência sobre os usos e abusos ideológicos da liberdade", afirma Tamiolaki.Para Lothar Willms, há algo sobre 'responsabilidade' que o conceito da antiguidade traz que, hoje em dia "as pessoas parecem esquecer"."Muitas pessoas, quando falam de liberdade, dizem que é fazer o que quiserem e obter tudo de graça. O que ocorre hoje, não apenas com as pessoas que são rotuladas como populistas, mas também, diria eu, com muitas pessoas que são de partidos de centro, é infelizmente, esta ideia de liberdade populista, que significa que não se tem obrigações, nem deveres, apenas se tem direitos. E na antiguidade era diferente. Os cidadãos assumiam a responsabilidade pela sua cidade", destaca o professor.Os dois investigadores destacam que o conceito de liberdade está no cerne das civilizações modernas. Tamiolaki explica que textos constitucionais ou hinos nacionais são exemplos "fundamentais" do conceito de liberdade aplicado nestas civilizações. "Este é o aspeto teórico da proeminência da liberdade na política moderna. Na prática, porém, sinto que os políticos modernos não falam muito sobre liberdade: talvez porque a consideram garantida? Ou, e isto talvez seja mais provocador, porque não querem que as pessoas sejam livres?", questiona."Na minha opinião, a liberdade individual, enquanto liberdade de pensamento e liberdade de escolha, é um grande desafio no mundo moderno. Por exemplo, quão livres somos quando as notícias falsas correm mais rápido do que nunca e quando as nossas escolhas, mesmo as políticas, são predeterminadas ou ditadas por ferramentas e sistemas de IA? É por isso que a educação tem um papel crucial a desempenhar na formação de cidadãos responsáveis e realmente livres na era moderna. E, claro, uma educação nas civilizações clássicas pode contribuir muito nesse sentido", finaliza a investigadora..O risco de escolher um vice gay e a "deslealdade" a Biden: revelações do livro de Kamala Harris.“Para alguns leitores americanos, um livro sobre Pieds-Noirs da Argélia é como uma coisa do séc. XII”