Este livro foi em parte inspirado num documento que o seu avô escreveu para si e para a sua irmã, para que conhecessem a história dele. Como é que esse documento, esse livro de memórias, se tornou no seu livro?Bem, o documento do meu avô é um livro próprio, inédito. Manuscrito, em muitos ficheiros, muitas páginas com fotografias e coisas coladas com fita cola, que agora, passados muitos anos, já não cola tão bem, por isso é preciso ter cuidado. Mas é um presente incrível em tantos aspetos. O meu avô escreveu aquilo quando se reformou. Terminou-o em 1975. E ele dirige-nos a mensagem e diz: “Provavelmente não o vão ler durante 35 anos”. Demorei um pouco mais, até, mas é maravilhoso que ele estivesse a escrever para nós no futuro. Para nós adultas, quando na altura éramos crianças. As pessoas perguntam-me se alguma vez pensei escrever uma autobiografia. Isso não me interessa. Ou uma espécie de publicação de partes dos textos do meu avô, porque na íntegra seria demasiado longo. Eu pensei sobre todas estas coisas, mas, no final, acho que o que me interessava mesmo era a interioridade das pessoas. E isso é sempre inventado, certo? A não ser que eu estivesse a publicar estritamente as palavras dele com algum tipo de anotação. Eu estava interessada nas personagens e depois tornou-se ficção. O texto dele abrange o período de 1928 a 1946, mas tornou-se claro que o que eu queria fazer era começar em 1940 e ir até 2010. Portanto, a primeira parte e parte da história de fundo que aparece no romance são, de certa forma, inspiradas no texto dele. Mas, na verdade, fiz muitas outras pesquisas e havia outra correspondência familiar e outros materiais não relacionados com a família que eu estava a ler. Portanto, foi um ponto de partidaPensou neste romance durante muito tempo, uns 20 anos. E disse em entrevistas que não o poderia ter escrito enquanto os seus pais, e outros protagonistas, fossem vivos. Porquê? Era demasiado sensível para eles? Receou não ser fiel à sua história? A irmã do meu pai não casou. A minha mãe era filha única. Na família mais próxima, só tenho a minha irmã, somos muito próximas e ela leu o livro. Se ela não tivesse gostado do manuscrito, teria de pensar com bastante cuidado se publicava ou não. Mas… dizem sempre que é uma maldição ter um escritor na família. É que as pessoas são reservadas. E no livro também há muita coisa que é inventada. Há incidentes que são inventados, há eventos… Quando falo com outros escritores de ficção eles dizem-me: “Sabes, começas com alguns factos e depois evolui...” Penso nisso como uma espécie de papier mâché. É embrulhar as coisas e elas tornam-se algo diferente. As personagens tornam-se alguém diferente. Mas se formos a pessoa que se consegue reconhecer, eu acho que ninguém quer isso. Quer dizer, talvez algumas pessoas raras o queiram, mas a maioria não quer. Não se sentem confortáveis. Ser uma personagem é estranho.Escreve no epílogo do livro que este é em parte ficção. Até que ponto?Em percentagem? Não sei dizer. Simplesmente evoluiu. Mas por exemplo, na secção dos anos 50, a personagem Gaston, que é o patriarca, está a ir para um poço de petróleo. E o meu avô, o verdadeiro, trabalhou num poço de petróleo que era exploratório e não estava a correr muito bem. Mas eu, na minha pesquisa, vi notícias de jornais sobre um poço de petróleo na primavera de 1953, que não era o poço em que ele trabalhava. Era uma reportagem entusiasta para o povo francês sobre a forma como tinha sido descoberto petróleo. Quando ninguém descobriu uma quantidade significativa de petróleo até alguns anos mais tarde. Então inventei aquela cena.A visita dos jornalistas ao poço de petróleo?Sim, então isso foi um bocado inventado. E na parte da Denise, um amigo perguntou-me se ela não devia ter mais consciência política. Ora sei através de cartas, e também pela cronologia dos acontecimentos, que ela estudou com Zohra Drif, que se tornou uma das figuras mais importantes do movimento independentista na Argélia. Estudaram juntas dos 12 anos até à universidade. A minha tia não mencionou isso. Ela nunca falou sobre isso, mas é um facto. E sei que a minha tia teve essa experiência, escreveu uma carta sobre ter sido atropelada por um carro que vinha de uma curva e a atingiu. E, então, tomei uma decisão narrativa de sobrepor esses factos. Porque, narrativamente falando, é quase como se ela, que não tem conhecimento do que se passa no país à sua volta, fosse como que atingida na cabeça por isso. .Esta Estranha e Acidentada HistóriaClaire MessudEdições ASA 500 páginas .Cronologicamente, a história, não o livro, mas a história começa na Argélia Francesa, passa por EUA, Canadá, por Buenos Aires na Argentina, pela Austrália, por Toulon em França, enfim, muitos lugares. Mas aquelas personagens, sobretudo François, passam a vida inteira à procura de pertença. A conclusão é que a família é o lugar onde se pertence?Bem, é isso que diz a personagem Gaston. E, eu acho que sim, de certa forma. Mas também há a piada ou o ditado de que a família são as pessoas que têm obrigação de nos acolher quando não temos para onde ir. Não têm de gostar de nós, é um dever. Portanto, acho que cada pessoa terá uma resposta diferente para esta pergunta. Porque o que significa pertença pode ter muitos significados. Eu por exemplo, há pouco tive o privilégio de estar num festival e de conversar com Kaouther Adimi, uma escritora franco-argelina. O seu novo livro, que é autobiográfico, é sobre o facto de, quando ela era criança, a família ter vivido em França e os pais os terem levado de volta para a Argélia. Estávamos nos anos 90, foi uma altura em que as coisas na Argélia estavam bastante assustadoras [devido ao terrorismo] e muito stressantes para toda a família. E ela, anos mais tarde, perguntou ao pai porque é que ele fez aquilo? Ele respondeu-lhe: “eu queria oferecer-te um país.” Porque se tivessem ficado em França, nunca se teriam sentido em casa. Ele era muito apaixonado, era da geração que lutou pela independência. Então, a Argélia era muito preciosa para ele, e é para ela. Mas era uma espécie de paradoxo que agora ela se pudesse sentir em casa nos dois sítios. A preocupação dele era que ela não se sentisse em casa em nenhum dos dois. No caso do meu pai, acho que ele queria que não tivéssemos de carregar a história daquele conflito argelino, que não sentíssemos que isso nos pesava. E acho que em França essa história ainda está muito presente. Como resultado, crescemos sem saber praticamente nada sobre o assunto. Só aprendi quando já era adulta.O seu pai não costumava falar sobre isso, sobre o seu passado na Argélia, sobre ser Pied-Noir?Ele estava cercado por pessoas, por amigos, que não tinham qualquer compreensão do que eram os franceses da Argélia. Estamos a falar da Argélia Francesa, da independência, dos Pieds-Noirs, dos harkis (argelinos que combateram ao lado da França na guerra). Para os leitores americanos é difícil de compreender?Para a maioria dos leitores americanos, é quase como se a história se passasse no século XII. Acho que há pessoas que conhecem a história. Há pessoas que conhecem um bocadinho da história e conseguem, de certa forma, ir complementando a leitura do livro. E acho que, para muitas pessoas, é apenas contexto. É um pano de fundo. Mas espero que haja uma ressonância, porque há tantas experiências diferentes de deslocação. Quer se tenha escolhido ir ou se tenha sido forçado a ir. Os EUA têm milhões de pessoas a viver lá para quem existe uma versão disso. Elas podem identificar-se. Espero que se identifiquem. A língua também é importante no seu livro. Sentimos a tensão entre a parte canadiana e a parte francesa da família - a avó canadiana e os avós franceses nem se entendem. A língua é um símbolo de todas as diferenças entre estas pessoas: religiosas, culturais, etc?Bem, a linguagem é tão fascinante. E eu não sou linguista. Não sou uma pessoa de linguística, mas até as gramáticas são diferentes. O inglês é agora uma espécie de língua mestiça, que rouba coisas de outras línguas e que transforma - verbos em substantivos ou verbos em advérbios. Já o francês, que tem um calão muito vivo que muda bastante depressa, mas tem o francês clássico, da Académie Française, que é bastante rigoroso nas mudanças que permite. E isso transparece na forma como as pessoas pensam. Eu adoro França e os franceses. Mas eu não conseguiria escrever em francês. No entanto, grande parte do livro é sobre pessoas que pensavam e falavam em francês.O livro do seu avô era em francês...Sim, mas aquele era o francês que eu conhecia. Um francês um pouco obsoleto, uma espécie de français désuet, esse é o meu francês..A Claire tem três nacionalidades - americana, canadiana e francesa. Alguma combina mais consigo?Essa é uma pergunta muito boa. Eu vivo nos EUA há muito tempo. E, de certa forma, essa seria a resposta natural. Mas as outras duas nacionalidades são muito preciosas para mim, fazem parte do meu sentido de identidade. Portanto, eu responderia a isso sem responder e dizendo que não se pode simplesmente preencher um monte de caixas e ter uma ideia de quem alguém é. Eu sou as três. E numa combinação única, outra pessoa que também tenha estas três nacionalidades será uma mistura diferente de todas elas. E, de uma forma humanista antiquada, acho que sinto que cada pessoa é diferente e cada pessoa é diferente em diferentes momentos da vida.Uma pergunta sobre o título. Em português é Esta Estranha e Acidentada História, tradução do inglês This Strange and Eventful Life. A Claire inspirou-se num monólogo da peça As You Like It, de Shakespeare. Porquê? O título do livro do seu avô era diferente Sim, era Tudo Aquilo em que Acreditávamos. Adoro este título, mas era o título dele, do livro dele. Usá-lo, sinto que teria parecido roubo. Então, há uma epígrafe no livro de Elias Canetti sobre este homem no século XX que não lutou numa guerra, que não foi um rei ou um líder, que não fez de facto nada de qualquer importância no mundo, mas simplesmente por viver o século XX já deu dimensão à sua vida. Portanto, o arco do romance é a vida de François, essas sete décadas, as sete idades do homem. Para mim, é sobre a história dele e da sua família. Ele é uma espécie de homem comum, ele é o que foi o século XX. É apenas um exemplo do arco do século XX. É por isso que eu pensei nesta frase de Canetti e neste monólogo de Shakespeare sobre o mundo ser um palco e as sete idades do homem.Como americana, de uma família que viveu em muitos países, ora imigrantes por opção própria, ora nem tanto. Como vê a forma como os EUA estão a lidar com a imigração atualmente? Sabe, é um momento muito difícil para os EUA, um momento desafiante. Nas conversas que tive, tanto em França como aqui, é claro que há aspetos do que está a acontecer nos EUA que estão a acontecer aqui também. Há uma espécie de rejeição da imigração. Sabemos que no Brexit a votação foi sobre isso. Como disse a várias pessoas nos últimos dias, este livro é, em parte, sobre uma visão do mundo com a qual cresci e que percebi que os meus filhos não conhecem. É a visão de 1989, o Muro de Berlim a cair, vários muros a cair. As pessoas iam viver num mundo globalizado, otimista, híbrido, compassivo, tolerante. Esse era o sonho. E não é isso que está a acontecer agora. Nem na América nem em vários outros países. Então, eu tento na minha cabeça ser como um drone que flutua no alto e tenta ver o panorama geral e dizer: “Ok, este é um pêndulo da história que se move e que se vai mover novamente”. Sinto que precisamos de ter esta visão, otimismo e dar esperança à geração mais nova, como a dos meus filhos. Quantos anos têm?21 e 24. É preciso dar-lhes a noção de que o pêndulo oscila e que há outras possibilidades para além do que está a acontecer agora. O seu pai escolheu viver nos EUA em busca de liberdade. Esse sonho americano ainda vive na nova geração? Sabe, alguém me dizia há dias que o que se passa nos EUA é terrível para nós porque a América tem sido um farol. E eu disse, a sério? Ao longo dos anos, os EUA estiveram envolvidos em várias guerras, Vietname, Coreias, Médio Oriente, etc. Portanto, a América como farol da liberdade? Nem por isso. Mas acho que há duas coisas diferentes, que são o mito e a realidade. E o mito é algo muito poderoso. Espero que o mito ainda esteja vivo e que possamos olhar para esse ideal. .“D. Manuel I acabou por ser o primeiro soberano com poder à escala global”.Delfim Sardo: "A única coisa que tenho pena de não ter feito no CCB é um centro de estudos avançados em arte"