Em Uivar à Lua - Escritos sobre Artistas Delfim Sardo reúne em livro textos escritos para catálogos de exposições, a convite de artistas e curadores, entre 2013 e 2025, dando continuidade à obra Visão em Apneia, publicada em 2012. Escrever sobre arte é uma “tentativa própria de compreensão do trabalho dos artistas”, diz. Um exercício que admite “fútil porque a escrita sobre a arte não afeta a obra de arte”.Sobre o CCB, de cuja administração Delfim Sardo saiu em maio deste ano, afirma que há neste momento consenso de que é necessário alterar os estatutos da instituição no sentido da sua maior autonomia. Mais do que isso, diz que o Estado deve "empoderar" as instituições culturais com "reforço orçamental e investimento nas equipas". Quando escreve estes textos para os catálogos e para as exposições fá-lo a pensar em quem? No artista, nos curadores, no público em geral? Essa é uma pergunta muito difícil de responder, porque nós sabemos que os textos dos catálogos são mais lidos pelos artistas e pelos pares do que propriamente pelo público em geral. E, muitas vezes, os textos ficam até depois muito perdidos nos catálogos. Estão todos dispersos. E foi a motivação que me levou a reuni-los num livro, como já tinha feito no passado com um outro que se chamava Visão em Apneia. Claro que eu, quando estou a escrever, tento que a minha escrita seja legível por qualquer pessoa interessada, não necessariamente pelos meus pares ou pelos artistas. Tento que a escrita tenha uma clareza.Embora este exercício de escrever sobre arte é sempre um exercício, em primeiro lugar, de tentativa própria de compreensão do trabalho dos artistas. Ou seja, as palavras, como dizia o Michel Foucault, dão-se mal com as imagens. É uma relação conflituosa. E, muitas vezes, aquilo que nós vemos numa obra não é facilmente convertível em discurso. E eu acho que isso se nota na maneira como eu escrevo. Porque há muitos textos que têm aproximações sucessivas ao mesmo objeto. E essa tentativa de aproximação tem em primeiro lugar uma missão que é eu sentir que estou a compreender melhor o que estou a ver.Diz que “escrever sobre arte é como uivar à lua, porque é inútil e até mesmo fútil”... É fútil porque a escrita sobre a arte não afeta a obra de arte. A obra de arte lá está e continuará a estar e continuará a ser interpretada das maneiras mais variadas, independentemente daquilo que eu ou qualquer outra pessoa escreve sobre ela. Aquilo que eu e os outros que escrevem sobre arte tentam fazer é estabelecer um diálogo com aquela obra. E nesse processo há uma primeira tarefa que eu acho que é fundamental, que é a pessoa poder descrever efetivamente o que está a ver. O que não é evidente. E é preciso conhecer o artista? No caso destes textos, conheceu os artistas pessoalmente?Menos um, que é o Gordon Matta-Clarke, que faleceu ainda eu não escrevia sobre a arte. Há artistas aqui com quem eu tive uma grande continuidade de trabalho. O caso do Julião Sarmento, do José Pedro Croft, são artistas com quem eu trabalho amiúde, e tenho oportunidade de continuar essa conversa ao vivo com eles. Eu gosto de conhecer os artistas. E não estou a fazer crítica de imprensa, é diferente. É um exercício de ensaio, não é nem um trabalho jornalístico, nem um trabalho de crítica, é uma ensaística sobre a arte. E acho que é interessante o conhecimento que se tem dos artistas, e mesmo de alguma intimidade em relação à forma como eles estão no ateliê. Isto não quer dizer que o meu ponto de vista sobre a obra dos artistas seja necessariamente o mesmo ponto de vista que eles têm. Há textos aqui publicados que eu acho que os artistas não concordam com o meu ponto de vista sobre o seu trabalho.Alguns dos artistas já não estão vivos.Sim, este texto do Julião Sarmento foi feito já quando o Julião tinha falecido, o do Michael Biberstein, da Lourdes Castro, o da Helena Almeida... Esses textos têm um lado particularmente ingrato, são uma espécie de carta sem resposta.Normalmente, quando escrevo um texto para um artista, a primeira pessoa a quem mando o texto é ao artista, até para poder aferir se há algum tipo de imprecisão factual. Por mais que a opinião seja diferente, a precisão factual é fundamental. E quando mando o texto ao artista, espero que ele leia o texto, se confronte com ele, me dê um feedback. Nesse caso, os textos que foram escritos para artistas que já não estavam entre nós, há sempre uma sensação de carta escrita sem resposta a isso. Então quando se têm relações muito próximas de amizade, como no caso do Biberstein, da Helena Almeida e do Julião, é penoso. Há uma espécie de luto que é feito também nesse texto.Os artistas têm dificuldade em falar sobre o trabalho que fazem? Já aconteceu usarem as suas palavras?Há de tudo. Há artistas que não gostam de falar da sua obra. Há artistas que não só gostam, como falam com uma grande competência sobre o seu trabalho. Há artistas com uma grande erudição e que falam do seu trabalho a partir de uma miríade de referências, portanto, há todas as possibilidades. Se utilizam ou não o meu texto para falar sobre o seu próprio trabalho, não sei. Não sei porque normalmente já não assisto a essas conversas que eles podem ter. Se eventualmente eles utilizarem alguma coisa que eu escrevi para falar da sua própria obra, eu fico satisfeitíssimo, fico muito contente.Há algum artista sobre o qual gostaria muito de escrever?Há muitos artistas sobre os quais gostava de escrever e não aconteceu, não tive a oportunidade. Recentemente, no lançamento do livro, estava um grande amigo, um artista, com quem tenho uma admiração enorme, e só escrevi um texto sobre ele - e fiz uma entrevista, com o Nuno Faria -, que é o Rui Chafes. E sim, é alguém sobre o qual eu gostava de escrever mais sobre o seu trabalho. Mas há muitos.Gosta de visitar os ateliês?Acho fundamental. Mas visitar os ateliês dos artistas não é necessariamente ver os artistas a trabalhar. O que é que procura?Os ateliês revelam o processo, revelam a maneira como os artistas pensam sobre o trabalho, revelam as suas hierarquias de trabalho. E isso é fundamental para compreender um pouco melhor como é que eles se relacionam com a sua própria obra. Para mim é muito importante. Para além de ser um enorme privilégio, porque nós vemos sempre as obras de arte em museus ou em galerias. E, portanto, temos as obras de arte fora do seu local de nascença. Mesmo quando são construídas para aquele espaço específico. E é muito curioso ver os artistas no ateliê, ver obras que estão concluídas, outras que estão em processo. Perceber qual é essa lógica que faz com que o processo chegue a um término. Porque é sempre um mistério. É para mim e acho que para a maior parte dos artistas também. E é muito dificilmente verbalizável. Perceber quando é que uma obra está concluída, quando é que uma pintura está pronta. Quando é que não precisa de nem mais uma pincelada. Há artistas que têm uma grande facilidade em encontrar esse momento, há outros que têm uma dificuldade enorme.Há casos históricos. Pierre Bonnard, pintor francês, é conhecido por ter uma dificuldade enorme em terminar as suas obras. De tal maneira que chegou a ser preso numa exposição do seu trabalho. Porque levava uma paleta e um pincel debaixo do casaco. E foi ainda retocar a pintura que o museu já tinha comprado. Não podia. Há histórias de todo o tipo. Mas é um grande mistério perceber aquele ponto justo em que o artista diz está feito.. Disse numa entrevista que mais do que ser curador, gosta de fazer exposições e catálogos de exposições.É verdade. Qual é a diferença entre ser curador de uma exposição e fazer uma exposição? O termo curador é um termo que está muito desgastado. Está muito desgastado, porque neste momento há curadores de tudo e mais alguma coisa. Há curadores de menus de restaurantes, há curadores de vinhos, há curadores de moda, há curadores de tudo e mais alguma coisa.E eu, de facto, gosto mesmo é daquela atividade específica dentro da curadoria que não tem a ver, por exemplo, com gestão de coleções. Tem a ver com fazer exposições, trabalhar diretamente na conceção das exposições. Seja com um artista, seja exposições coletivas. Pensar a lógica, a narrativa. Pensar como é que o espetador circula naquele espaço. Pensar que relações é que se fazem entre as coisas, porque uma exposição não é só uma sucessão de obras. As distâncias entre elas, o que está no campo de visão do espetador, o que está à frente e o que ele não vê porque está nas suas costas, a relação que se faz numa mesma parede entre obras. Tudo isso faz parte de uma atividade muito específica que é produzir uma narrativa visual que é feita num espaço. Depois é muito interessante pensar como é que se transforma essa narrativa espacial numa narrativa que é produzida num catálogo.Será que devemos ter fotografias da exposição instalada ou devemos ter só imagens das obras? Será que devemos ter uma maior densidade de texto ou uma menor densidade de texto? Será que o livro tem que ser grande ou deve ser pequeno? Será que queremos que o leitor tenha uma relação mais íntima ou tenha uma relação documental mais exaustiva da obra? O que é que se pretende? E esse tipo de trabalho, fazer a exposição e pensar o catálogo da exposição, é talvez a atividade de que tenho mais prazer.Em que é que está a pensar nesta altura? Há alguma exposição que gostaria de fazer?Há muitas exposições que eu gostava de fazer. Há uma exposição, aliás, tenho vindo a trabalhar até com os meus alunos de mestrado, que estão também a trabalhar sobre o mesmo assunto. Eu gostava de fazer - mas será muito difícil fazê-la, porque é uma exposição certamente muito cara -, uma exposição sobre a invenção da ideia de juventude. Nós hoje temo-la tão enraizada, que não temos ideia que ela foi inventada no século XVIII. Antes do século XVIII não há juventude. Há a infância e a idade adulta. E há um momento em que, realmente, durante o romantismo, em que a ideia e a valorização desse período da vida que fica entre a infância e a idade adulta surge, é valorizada e é colocada aí toda a esperança.Acho que merece ser tratada numa exposição que pode ter desde pintura romântica até o Rumble Fish, do Francis Ford Coppola, ou um filme do Dan Graham chamado Rock My Religion, até o movimento punk. Quer dizer, tudo isso faz parte dessa ideia de valorização diferente, ideologicamente diferente, ao longo do tempo, do que é a juventude.Seria uma exposição cruzando várias áreas artísticas. Cruzando várias áreas artísticas, essa é uma metodologia que a mim me interessa. Cruzar a literatura, as artes visuais, o cinema, a dança, sim. . Saiu recentemente da administração do Centro Cultural de Belém, onde permaneceu cinco anos. Fez tudo o que queria fazer no CCB?Quando eu saí do CCB, saí com a sensação de que já tinha dado o meu contributo. Havia um projeto muito importante que era a estruturação do CCB e as administrações de que eu fiz parte, conseguimos fazer isso. No centro de artes performativas, no Museu de Arte Contemporânea, conseguimos concluir o projeto dos módulos 4 e 5. E, portanto, a instituição tem, neste momento, uma estruturação diferente daquela que eu encontrei. Obviamente que não sou eu o responsável por isso, é um trabalho coletivo, é um trabalho das várias administrações. Pertenci a três administrações diferentes e achei que tinha chegado ao fim a minha tarefa e que também precisava de tempo para mim e para outras coisas.O facto de ter passado por três presidentes desgastou-o?Aquele é um trabalho desgastante. Um trabalho intenso e desgastante. Há que ter noção nas instituições quando é que chega o momento de nós sairmos e abrirmos o campo para outras pessoas. A única coisa que eu tenho pena de não ter feito no CCB, ou não ter contribuído para que isso acontecesse é... eu acho que o CCB precisa de um centro de estudos avançados em arte. Que pudesse capitalizar, não só o know-how que tem, mas fazer com que a formação avançada, seja para artistas, seja para curadores, seja para outros agentes dentro do meio artístico, pudesse ter o seu lugar. Portanto, um centro que tivesse uma biblioteca e, ao mesmo tempo, tivesse também um programa permanente de workshops, de cursos, de seminários, não na formalidade académica, mas em relação com as universidades também. Acho que esse é um outro projeto futuro. Tinha um horizonte temporal que já não era o meu. A união entre o MAC/CCB e o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado esteve em cima da mesa? Porque é que não se concretizou?Isso não esteve em cima da mesa. Nunca esteve, de facto. Mas eu sou a favor dessa ideia. O meu ponto de vista é que era interessante, em termos de articulação da cultura em Portugal e em Lisboa, nas artes visuais, ter alguma coisa muito semelhante ao que acontece em Londres com a Tate Britain e a Tate Modern, para dar um exemplo que toda a gente percebe. A coleção do Museu do Chiado é uma coleção portuguesa, e o MAC-CCB é um museu internacional. E, portanto, há aqui uma tipologia que merecia ser bem articulada entre as duas instituições. Saber o que é que pode ser feito numa e noutra, nomeadamente que articulação é que pode haver entre as duas. Este é o modelo inglês da Tate Britain e da Tate Modern. Claro que há outros modelos possíveis.Mas faria sentido ser só uma instituição?Em minha opinião, podia fazer sentido, sim. Tinha que ser bem pensado, o modelo. Porque as articulações são sempre produtivas. Tanto são produtivas que as instituições de Lisboa decidiram, ainda estava eu no CCB, juntar-se, por iniciativa da Gulbenkian e do MAC/CCB, e fazer uma espécie de plataforma informal chamada Lisboa Arte Contemporânea, que se reúne duas ou três vezes por ano para cada instituição perceber o seu posicionamento, onde é que vale ou não vale a pena insistir. Essas articulações são muito importantes. Neste momento temos um tecido de arte contemporânea em Lisboa com um potencial que nunca existiu no passado.O facto de estar disperso impede que Portugal venha a ter um museu de dimensão europeia?Não, não creio. Creio que há várias instituições que têm essa vocação internacional e de referência, e que se podem estabelecer como referência no espaço europeu. Obviamente, o MAC/CCB com as coleções que tem em depósito é um caso. Há outras instituições com uma clara vocação internacional também, como a Fundação Calouste Gulbenkian, o Centro de Arte Moderna, ou como o MAAT, ou mesmo instituições mais pequenas, mas que também têm uma vocação internacional a uma outra escala.Como o MACAM?Agora há o MACAM, que tem uma tipologia diferente, é um museu privado, e que não tem qualquer financiamento público, é uma iniciativa de um particular, do Armando Martins, e todos esses modelos são diferentes, e isso é bom, a diferença de modelos diversifica a oferta para o público. Agora, não acho que haja problema na pulverização, parece-me é que deve haver articulação.E não tem havido?Neste momento há articulação no âmbito desse LAC, Lisboa Arte Contemporânea, dessa plataforma, as instituições estão em articulação e em diálogo. Agora, nós nunca tivemos uma situação em que haja esta diversidade de instituições a operar, e a operar profissionalmente. Isso é uma novidade, e uma novidade muito boa. E o que é que isso traz para o ecossistema da arte contemporânea em Portugal? A situação é muito auspiciosa. O que é que eu acho que falta? Falta reforço orçamental e investimento nas equipas. É necessário que haja carreiras, as carreiras de curadores dentro das instituições são poucas, carreiras estruturadas, à americana, que começam como assistant curator, depois são chief curator, curator-at-large. Essas carreiras são importantes, porque elas dão qualificação, empoderam as equipas, e fazem com que as pessoas pensem numa atividade profissional que se vai desenvolvendo ao longo do tempo. E, portanto, acho que as instituições precisam de investir em equipas. Os orçamentos para equipas, por vezes, são exíguos face ao bolo global. E é preciso também fora das grandes instituições, nas pequenas instituições. Então aí é que há mesmo uma necessidade de qualificação. E não vou falar de Lisboa e do Porto, estou a falar de fora. Muitas instituições autárquicas precisam, de facto, de se profissionalizar. De ter direções artísticas, de ter quadros técnicos dentro das instituições, de ter dotações orçamentais que sejam independentes do bolo geral autárquico. E essa é uma tarefa que está por realizar.É isso que quer dizer quando afirma que o Estado deve apostar na mediação e não na produção?Exatamente, é isso mesmo. O Estado tem tido uma política crescente de apoio direto à produção artística. Muito bem, acho que tem sido um grande caminho que tem sido percorrido. Ainda não o suficiente, mas tem sido um grande caminho. Agora, o que é fundamental é apoiar as instituições para que elas possam realizar o seu trabalho, que é transportar a produção para os públicos. E tem-se visto resultado nalgumas instituições. A política de apoios quadrienais deu solidez às instituições e permitiu que algumas crescessem de uma maneira interessantíssima. É o caso, por exemplo, da Bienal Anozero, de Coimbra. O facto de ter tido um apoio quadrienal permitiu que a instituição se solidificasse, que crescesse, que neste momento tenha um evento de referência, que consiga ter programação nos anos em que não faz a Bienal, e chegou agora o momento em que foi feito o acordo com a Manifesta, e que certamente será um momento muito importante para a arte em Portugal. Em relação ao CCB, deve ser definido um modelo que lhe dê mais autonomia? Há neste momento um consenso, um consenso quer dentro das várias administrações que têm passado no CCB, quer até no Estado, de que vai ser necessário alterar os estatutos do CCB no sentido da sua maior autonomia. Esse é um caminho que vai ter de ser percorrido. O que me parece é que o Estado em Portugal precisa de aprender esse caminho da autonomização das instituições e de as deixar crescer por si, das empoderar. Porque só instituições com poder próprio é que podem encontrar os seus pares, nomeadamente fora de Portugal, para dialogar com eles. Esse empoderamento das instituições é muito importante.Há algum modelo que ache mais interessante?Há muitos modelos pela Europa fora. A Alemanha é um caso, com a diversidade de estruturas que tem, com os museus, os kunstfalle, os kunstvereine. A França tem um modelo muito curioso, os chamados Frac, Fonds régional d’art contemporain, que estão espalhados por França. É uma coisa que começou em 1983 e hoje em dia tem um longo caminho que foi percorrido, os Frac têm identidades próprias, uns mais centrados num tipo de trabalho, outros noutro tipo de trabalho. É um caminho que é lento de percorrer, mas que necessita dessa ideia de que as instituições devem ser dotadas de recursos, devem ter autonomia para fazer o seu programa, devem ter direções artísticas competentes, e o Estado tem que fazer a avaliação, periodicamente, do que é que está a correr bem, do que está a correr menos bem, e tomar medidas, no sentido de correção ou não. .‘Os Maias’: abordagem contemporânea ao bailado narrativo para cativar público