Good morning everyone! É assim que Fernando Duarte começa por dirigir-se ao grupo de bailarinos de várias nacionalidades que estão à sua frente, numa das salas de ensaio da Companhia Nacional de Bailado (CNB), no Teatro Camões, no Parque das Nações, em Lisboa. Os bailarinos espalham-se pelo espaço arejado e com muita luz natural, vestidos com roupas dos mais variados estilos e cores - elas em pontas - até que se agrupam aos pares. O diretor artístico da CNB, coreógrafo da peça Os Maias que a companhia estreará no próximo dia 16 de outubro, explica que vão começar o ensaio com a abertura do bailado – uma espécie de página branca, onde ainda não há personagens, explicou-nos Fernando Duarte previamente – “and then we go on to the first and second scenes”. . O bailado em três atos baseado no romance de Eça de Queirós, de 1888, que retrata a decadência da sociedade lisboeta e o atraso do país através de três gerações da família Maia, começou com um guião escrito pelo próprio Fernando Duarte. Não é a primeira vez que o coreógrafo transforma literatura em dança - fê-lo com O Primo Basílio (2020), também de Eça de Queirós, e com o Memorial do Convento (2022), de José Saramago, no âmbito do projeto Dança em Diálogos. E foi com uma proposta para desenvolver o bailado narrativo que Fernando Duarte ganhou o concurso internacional para a nova direção artística da CNB, no ano passado. . O ambiente no Estúdio Armando Jorge (em homenagem ao cofundador e primeiro diretor artístico da CNB) é descontraído. Estão todos virados para a parede de espelho, Fernando Duarte, na frente, dá indicações, exemplifica os passos. "Vamos começar pela parte dos rapazes a correr", diz o coreógrafo que ora fala em inglês, ora fala em português. “You must run like you don’t want to be caught...” . One, two, three, four... Fernando Duarte estala os dedos, ta ta ta tarara... “From penchée, one down, up...”. As indicações aos bailarinos sucedem-se. “Agora com música”, e olha para a ensaiadora que está junto da aparelhagem de som num dos cantos da sala, a francesa Barbora Hruskova. Peggy Konik, também francesa, é outra das mestres de bailado da companhia presentes, está junto ao piano, no lado oposto. Ambas observam atentamente as orientações que o coreógrafo dá aos bailarinos, porque a elas também caberá ensaia-los para o espetáculo. .A coreografia é um trabalho em construção, alteram-se ideias iniciais e os próprios bailarinos são ouvidos no processo. “Quando estamos a andar, olhamos para elas?”, questiona um dos elementos masculinos. Não podemos estar fazer piquês”, observa uma das bailarinas noutra cena. Também há lugar para o engano e ouvem-se alguns desabafos dos artistas: “Foi péssimo”, “fui mal, fui mal”... Mas eles estão ali mesmo para isso. Terminado o ensaio da abertura da peça, a maior parte dos bailarinos é dispensada. Ficam os que participam nas primeiras cenas do ato I, e os trabalhos prosseguem ainda sob a orientação do coreógrafo. Agora os bailarinos interpretam personagens: Francisco Morais e Isabel Galriça são Afonso da Maia e Maria Eduarda Runa, a mulher. Francisco Gomes veste a pele de Pedro da Maia, o filho de Afonso, e Aeden Pittendreigh é o tutor de Pedro. .Na cena seguinte, além de Pedro e Afonso da Maia, entra Maria Monforte, interpretada por Inês Ferrer, que casa com Pedro. Na quarta cena entram outras figuras, secundárias. Temos Pedro da Maia, Maria Monforte, Tómas de Alencar (Frederico Gameiro), Tancredo (Joshua Earl), Afonso da Maia, Vilaça (Martim Ribeiro) e na parte das “noites em Paris e Lisboa” participam as bailarinas Maria Santos, Emily Stewart e Michelle Luterbach.“Aqui vão entrar dois carrinhos de bebé, que simbolizam os filhos de Pedro e Maria Monforte”, explica-nos Fernando Duarte a certa altura, revelando um detalhe da cenografia que não se vê ali mas estará em palco.Ainda há tempo para mais uma cena, com Pedro da Maia, Maria Monforte, Tancredo, Afonso da Maia e Vilaça. Ao fundo do estúdio está outro grupo de bailarinos a replicar os passos do conjunto da frente. São elementos do segundo elenco, dizem-nos. Há sempre mais do que um bailarino da companhia a ensaiar o mesmo papel..Atrair públicoAté chegar a este ensaio do bailado Os Maias, a cerca de um mês da estreia, percorreu-se um longo caminho. O guião de Fernando Duarte resultou numa peça com três atos e seis personagens principais. Carlos de Maia, interpretado por Lourenço Ferreira, e Maria Eduarda, interpretada por Raquel Fidalgo, entram no segundo ato. Fernando Duarte acredita que o bailado levará muito público a ler a reler Os Maias, mas o coreógrafo não quis que os espetadores se sentissem perdidos. “Procurei enquadrar a obra literária na lógica de um bailado mantendo as cenas de ação principais, os pontos cardinais para que o público perceba onde estão os momentos que definem a história”. Explica o coreógrafo “que um bailado narrativo não é uma competição com o livro, porque o livro ganha sempre. A obra está no seu ponto de origem, nós somos os seguidores, é apenas uma homenagem ao livro”, sublinha..No primeiro ato a família Maia estabelece-se, Afonso da Maia com as suas ideias liberais, e a sua mulher, Maria Eduarda Runa, muito religiosa e conservadora. Dá-se o nascimento de Pedro da Maia, o seu envolvimento com Maria Monforte, o nascimento dos dois filhos do casal e o distanciamento cada vez maior de Pedro do pai. Depois, a partida de Maria Monforte com o seu amante, o desespero de Pedro, que acaba por se suicidar. No segundo ato aparece Carlos da Maia, filho de Pedro, e que o avô, Afonso, tenta preparar melhor para a vida. Acredita que a neta, irmã de Carlos, levada pela mãe, morreu. Carlos da Maia regressa do estrangeiro, recém-médico, "pronto para vencer na vida com o seu amigo João da Ega". Dá-se o encontro com algumas personagens da alta sociedade lisboeta, e o seu romance com a Condessa de Gouvarinho. Neste ato entra em cena Maria Eduarda, que capta a atenção de Carlos da Maia. "Há todo esse encadeamento de encontros e desencontros, Carlos da Maia leva o seu tempo até conseguir vê-la, e depois há aquela dimensão muito romântica de amor à primeira vista", conta Fernando Duarte. "Isso termina o segundo ato, parece que está tudo encaminhado para um final feliz". . "O terceiro ato começa com um aparente cenário idílico de pas de deux muito romântico, até aparecer o suposto marido de Maria Eduarda, que não é mais do que um empresário brasileiro, mas que lhe paga como cortesã ou acompanhante. O que é uma ofensa para o estatuto do Carlos da Maia, que fica ofendido, porque ela lhe mentiu". "Eles perdoam-se e acham que vai correr tudo bem". Quando Carlos da Maia descobre que Maria Eduarda é sua irmã, "não resiste à tentação, insiste no incesto. Eventualmente, o Afonso percebe isso, tem um desgosto e morre". No final, Carlos reencontra Ega, caminham e refletem sobre a vida desperdiçada e um país sem futuro.Coreografar Os Maias, “o romance maior da literatura portuguesa do século XIX”, considera Fernando Duarte, tem a mais-valia de resultar num bailado que “acaba por ser exclusivo, que acaba por estar relacionado connosco, e que acaba por ser um passaporte para que o público também tenha vontade de vir ver a companhia”. Além disso, Fernando Duarte considera que a sua aposta no bailado narrativo segue a tendência internacional: “Ainda há pouco tempo o Ballet Estatal de Berlim, do Christian Spuck, estreou Bovary, inspirado na Madame Bovary [romance de Gustave Flaubert]”. “Lancei-me nessa narratividade e nessa crença convicta de que o bailado narrativo tem pernas para andar - ou pernas para dançar - e para cativar o público”, sublinha. . Uma vez feito o guião, o que se segue para contar uma história com movimento? Para Fernando Duarte, a música. "O guião, a música, e só quando eu tenho a música é que eu consigo ter os passos." O coreógrafo convidou Andrea Lupi para a curadoria musical, e não podia estar mais satisfeito, com a seleção a parecer ter sido feita para a dança, afirma. Mas não foi: "É um repertório musical do final do século XIX, até fora do comum conhecimento do público em geral. Há compositores de grande fama, por exemplo, Gabriel Fauré ou César Franck, mas também compositoras femininas, Thérèse Yvonne Paradis, Mélanie Bonis....".Um repertório que descreve como "poderosíssimo, muito intenso emocionalmente", e que foi pensado também para ser interpretado por um quarteto de cordas mais piano. "Vai ser maravilhoso contar com solistas da Orquestra de Câmara Portuguesa, e com o António Rosado a tocar."Fernando Duarte faz uma abordagem contemporânea à narratividade no bailado, que considera ser visível também na cenografia, a cargo de José Manuel Castanheira, e nos figurinos, do estilista José António Tenente. . "Vai ser um cenário único, um cenário dinâmico que se vai alterando ao longo do bailado, e que convoca todos os espaços onde ocorre o romance", diz o coreógrafo. "Pode ser o hotel, o Ramalhete, a quinta, ou mesmo até o próprio espaço público". Um minimalismo que, considera, "ajuda a concentrar a atenção nos gestos e na capacidade de criar essa ilustração de uma forma essencialmente coreográfica, aliada à musicalidade, que em si mesmo tem um papel fundamental". Também haverá uma componente videográfica, que "acompanha os modos de ver de um público contemporâneo. Hoje em dia vemos o analógico, mas também vemos o digital, vemos o real, mas também vemos o virtual", frisa Fernando Duarte. . No final, tudo conflui para "uma lógica de apresentação narrativa e teatral que procura ser estimulante aos modos de ver de um público que é diferente de há dez, 20 ou 30 anos, um público jovem". Os Maias vai estar em cena de 16 a 26 de outubro, no Teatro Camões, em Lisboa, e em abril do próximo ano tem presença garantida num dos mais prestigiados festivais de ballet do mundo, o Lodz Ballet Festival, na Polónia. .Recebida entre “boos e bravos” em Avignon, 'NÔT' chega aos palcos nacionais .‘O Senhor Paul’: resistir ao progresso sem sair do sofá