Programa é aplicada na maioria das Unidades Locais de Saúde do país.
Programa é aplicada na maioria das Unidades Locais de Saúde do país.

Ligue Antes, Salve Vidas. Profissionais no terreno defendem mudanças na aplicação do programa, senão “só vai piorar”

Regulador da Saúde avaliou programa que centraliza acesso ao SNS na Linha SNS24 e diz que há “constrangimentos no acesso dos utentes aos cuidados”. Administradores hospitalares defendem que o problema não é o programa, mas a aplicação sem recursos, sendo essa responsabilidade do “Ministério da Saúde”. Para os Médicos de Família o utente “não pode ficar refém de uma linha telefónica”. A Fundação para a Saúde critica a centralização da medida.
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“Um utente que se dirige a um serviço ou a um estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), legalmente vinculado a assegurar a proteção da saúde individual e coletiva, não pode ver negado, sem mais, o respetivo acesso, ainda que se conclua que o tipo de cuidados procurados não é o adequado ou que o estabelecimento em causa não possui o perfil assistencial ou capacidade para a prestação de tratamentos”. Quem o diz é a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) no seu relatório sobre a última avaliação ao programa Ligue Antes, Salve Vidas - que se tornou na principal porta de acesso ao SNS - terminada em outubro deste ano e que visou sobretudo o período de 1 janeiro de 2024 a 30 de abril de 2025.

Mas não só. A ERS diz também que as situações identificadas “evidenciam efetivos constrangimentos” criados aos utentes no acesso aos cuidados de saúde. Ou porque a chamada efetuada para a Linha SNS24, organismo que, no fundo, materializa o programa Ligue Antes, Salve Vidas, não foi atendida; ou porque não foi atendida em tempo útil; ou porque o utente teve de andar de unidade em unidade por ter sido encaminhado erradamente.

Situações que, segundo a ERS, acontecem porque “os próprios profissionais desconhecem as regras do programa”, recomendando à Direção Executiva do SNS, aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e às Unidade Locais de Saúde (ULS) que devem passar toda a informação de forma a “operacionalizar” o programa. Depois, porque há escassez de meios e recursos e falhas na articulação entre serviços.

O DN quis saber o que pensa quem está no terreno, quer nos cuidados hospitalares quer nos cuidados de saúde primários, sobre as conclusões que constam no relatório da ERS, embora este ainda não esteja divulgado, e se estas merecem reflexão e exigem mudanças. De um lado e do outro, a resposta é idêntica, no sentido de haver “reflexão”, “mudanças”, mas, com uma salvaguarda, que “não se destrua tudo o que já foi construído”.

Do lado da sociedade civil, a Fundação para a Saúde, que há poucas semanas lançou o Manifesto “Queremos os centros de saúde de volta”, subscrito por 30 personalidades, o problema também não está no princípio ou no conceito do programa, mas “na centralização de uma medida, quando o país tem realidades tão diferentes”, explicou ao DN o médico de família e um dos subscritores deste documento, José Luís Biscaia.

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Ligue Antes, Salve Vidas. Regulador da Saúde diz que hospitais e centros de saúde estão a dificultar acesso de utentes a cuidados

Todos concordam também, e tal como está escrito no documento da ERS, a que o DN teve acesso, e deu na sua edição de sexta-feira, dia 5, que o resultado da aplicação do programa Ligue Antes, Salve Vidas não pode ser, de todo, “o da falta de resposta aos utentes”.

"Centros de saúde têm de fazer parte da equação do acesso"

O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, defende que a aplicação do programa que se tornou na porta principal de acesso ao SNS tem de “garantir o equilíbrio na entrada, respeitando sempre o princípio fundamental que é o do utente ter acesso a cuidados". Como diz, "este é o objetivo fundamental de todas as medidas que têm vindo a ser tomadas para se melhorar os cuidados em doença aguda”, sublinhando que "o foco do programa não pode ser o de tentar ter números bonitos ou tempos de espera menores para se ficar bem na fotografia. O objetivo tem de ser sempre o de tratar as pessoas quando elas precisam”.

Nuno Jacinto assume que para se alcançar o tal “equilíbrio” é preciso “passar-se pela regulamentação do acesso, mas no sentido de se direcionar as pessoas para as unidades mais adequadas”, porque “sabemos que as urgências são para os serviços dos hospitais e que os cuidados primários são para as outras situações de doença aguda”.

Agora, argumenta, “não podemos chegar ao extremo de impedir tudo”, até o acesso do utente ao cuidado por falta de vagas ou porque não está referenciado pela Linha SNS24, como destaca a ERS no seu relatório.

O médico de família reforça que uma das questões a ser pensada, de forma imediata, deveria ser se “o modelo de triagem que estamos a usar responde efetivamente às necessidades, já que temos tempos de resposta muito longos e múltiplas chamadas que não são atendidas. A seguir, temos que ver se os protocolos clínicos (ou algoritmo) usados pela Linha SNS24 são os mais adequados”.

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Nuno Jacinto ressalva que “os protocolos usados pela Linha SNS24 continuam a não ser discutidos abertamente com as ordens, dos médicos e enfermeiros, e com as sociedades científicas, o que é um erro, porque todos nós que estamos no terreno percebemos que em muitas situações de encaminhamento de utentes eles têm de ser aperfeiçoados” - uma das recomendações da ERS, no seu relatório, é precisamente a revisão urgente do algoritmo clínico de forma a que o utente seja melhor encaminhado para a unidade adequada.

Mas para o presidente da APMGF “o primeiro ponto que temos de garantir é que esta Linha SNS24, seja ela qual for, funciona, e funciona sempre de forma capaz. Não nos podemos escudar em capacidades técnicas, em contratos ou em valores que já foram decididos. Isso não pode acontecer, pois se estamos a obrigar os utentes a entrar no SNS por ali, temos de lhe dar uma resposta. E depois, perceber que protocolos precisam de ser atualizados e como vão ser aplicados”.

No que toca às unidades de cuidados primários (centros de saúde) ou hospitalares, o médico defende que têm de se “definir critérios muito claros, porque, por exemplo, não me parece correto que se diga a um centro de saúde que tem de ter todas as suas vagas de doença aguda atribuídas a esta forma de acesso – ou seja, à Linha SNS24. Isso é um erro, porque também temos de garantir acesso a um utente que não conseguiu encaminhamento por esta via”.

Nuno Jacinto é mesmo peremtório quando diz: “Não podemos retirar os cuidados de saúde primários de fora do acesso ao SNS, o utente que se dirige à sua unidade tem de ter resposta. Portanto, não podemos retirar as unidades de saúde da equação primordial do acesso aos cuidados, substituindo-as só por uma linha telefónica. Estas duas vias têm de ser complementares. E, nós, profissionais, temos de lutar por isto e insistir de que precisamos de várias formas de acesso”.

Ao DN, admite que as conclusões e recomendações da ERS, embora salvaguarde desconhecer o relatório na íntegra, devem ser “refletidas e repensadas”, mas não de forma a provocar mudanças que signifiquem “destruir tudo o que existe”.

"O problema não é o programa, mas a forma como foi aplicado, sem recursos"

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) concorda que o que foi registado pela ERS deva ser “refletido” e “discutido”, mas “espero que a ideia deste programa para o acesso do utente não morra por conta de os resultados não serem tão bons quanto se esperava”.

Xavier Barreto defende que o problema não está no programa Ligue Antes, Salve Vidas, “não podemos correr o risco de achar que é má ideia, porque não é. Tem sido implementada noutros países, como na Dinamarca, com bons resultados. No nosso país, foi mal implementado, por ter recursos insuficientes e isso é outra coisa”.

O administrador hospitalar diz ao DN que as conclusões retiradas pela ERS na avaliação que fez ao programa Ligue Antes, Salve Vidas “não me surpreendem”. “Sabemos que há problemas, alguns públicos, como a quantidade de chamadas que não são atendidas, o tempo que os utentes esperam pelo atendimento, ou não sendo atendidos vão diretamente à urgência. Mas o que está em causa não é tanto o conceito ou a ideia, que merece ser desenvolvida, o que está em causa é a implementação do programa sem investimento e sem os recursos necessários”.

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Xavier Barreto é da opinião que o cenário atual “merece uma reflexão” sobre “qual é o papel que queremos que os cuidados primários tenham no atendimento dos doentes agudos, se devemos continuar a ter um sistema em que estes doentes são vistos de acordo com as vagas existentes ou se queremos que os cuidados primários tenham outro papel na doença aguda, eventualmente criando respostas de porta aberta em permanência, como existe em Espanha, por exemplo.

No entanto, sublinha, e independentemente “desta reflexão”, a Linha SNS24 “tem de ser reforçada em recursos humanos capacitados para resolver situações, porque se é para termos uma linha só para encaminhar doentes para os centros de saúde ou para os hospitais, então não vale a pena”, destacando: “O utente não é parvo (desculpe a expressão). Se toma a decisão de ir logo a uma urgência hospitalar é porque não teve uma resposta adequada às suas necessidades, quer seja porque se demora demasiado tempo a atender uma chamada ou porque foi encaminhado erradamente, mas em qualquer caso a responsabilidade é sempre nossa. É sempre de quem está a programar e a criar as respostas. Neste caso, é do Ministério da Saúde”.

E alerta: “Estamos a entrar na época de frio, as unidades vão ter mais procura e é muito provável que os tempos de espera aumentem e é provável também que a resposta tanto da Linha como nas unidades piore”.

“O que está a acontecer é consequência das opções de governação do sistema”

Há duas semanas, a Fundação para a Saúde lançou o Manifesto “Queremos os centros de saúde de volta”, subscrito por 30 personalidades da saúde e da sociedade civil, que tinha como tema o programa Ligue Antes, Salve Vidas e como este estava a afastar os utentes dos cuidados de proximidade.

Agora, como diz José Luís Biscaia, médico de família, da Fundação para a Saúde e um dos subscritores do Manifesto, este relatório da ERS “vem confirmar que as medidas que têm vindo a ser tomadas em termos de governação da saúde, no sentida da centralização do acesso numa linha telefónica, não tem sido um sucesso”.

Aliás, e como sublinha, “tem gerado um efeito perverso, se quisermos, o qual não deveria estar, certamente, na intenção das pessoas que as propuseram, porque o essencial da existência dos cuidados de saúde primários é a proximidade e continuidade dos cuidados”, sustentando que “o que está a acontecer é consequência das opções de governação do modelo de gestão adotado para a Saúde – ou seja, o modelo de centralizar a gestão do acesso, que é um equívoco total”.

O médico explica até que o “conceito inicial do Ligue Antes, Salve Vidas era o de minimizar a utilização excessiva das urgências, sobretudo hospitalares, nos períodos de pico, como o inverno. A experiência teve início numa unidade da Póvoa do Varzim/Vila do Conde, onde havia cobertura total de equipas de saúde familiar para todos os utentes. E não se pode esperar que a medida tenha os mesmo resultados numa zona, como Lisboa, por exemplo, onde existem quase um milhão de pessoas sem médico de família”.

Salvaguardando desconhecer o relatório da ERS, e apenas o que foi noticiado, José Luís Biscaia reforça que, na sua opinião, a medida foi aplicada “sem se perceber as diferenças locais e regionais”, e isso tem-se vindo a criar “um efeito perverso”. “A Linha SNS24 até pode ser uma medida com impacto nalgumas zonas, mas noutras não tem, sobretudo naquelas em que não há recursos para dar resposta em proximidade”.

E questiona: “Em vez de se continuar a contratar recursos para a Linha SNS24, porque não se contrata profissionais para as próprias unidades apara darem resposta em proximidade já que existe um algoritmo validado clinicamente e adaptado às realidades locais está instalado nas centrais telefónicas de várias unidades de saúde? Esta é uma solução concreta para resolver o problema (de utentes verem negado o atendimento) ou de ajudar a a minorá-lo”.

Para José Luís Biscaia, neste momento, “está criado um facto, as pessoas têm de telefonar para a Linha SNS24 para terem acesso aos cuidados de saúde. É esta a porta de entrada.

A campanha de comunicação, feita pelo Ministério da Saúde, com figuras públicas a recomendarem este ato, é brutal. Portanto, inverter isto de repente não é fácil”, mas se não for feito também diz que “tudo vai piorar”. “A inversão teria de passar por medidas claras do que se quer a nível regional e envolvendo as ULS na tomada de decisões sobre quais as medidas adequadas, como se pode reverter esta situação? Como se podem criar respostas de acesso em proximidade?”

O médico diz que desta forma estariam a ser tomadas decisões com base “na capacidade de discriminar, mas no bom sentido da palavra”, com base em cada realidade local de forma a que fosse “garantida a equidade no acesso aos cuidados. Se temos realidades diferentes, temos de ter respostas diferentes e adequadas. A centralização no acesso afastou claramente o acesso de proximidade e está a desestruturar aos pedaços os cuidados primários e vai agravar ainda mais”.

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