Um utente foi encaminhado pela Linha SNS24 para uma consulta no seu centro de saúde a determinada hora, mas chegado lá viu recusado este atendimento por “falta de vagas”; outro foi diretamente ao seu centro de saúde com queixas clínicas, mas viu o acesso barrado, por não ir referenciado pela mesma linha; uma mãe dirigiu-se a uma urgência hospitalar com o filho de 15 meses, que tinha febre e chorava compulsivamente com a mão no ouvido, mas não foi atendida também por não ir referenciada: acabou por ligar para a Linha SNS24 que, em vez de a referenciar para a urgência onde estava, na zona da sua residência, encaminhou-a para outra a mais de 80 quilómetros; um utente adulto teve um acidente de bicicleta, ligou para a linha e foi encaminhado para um dos grandes hospitais de Lisboa para ser observado em ortopedia, mas quando lá chegou a especialidade já não estava a funcionar: encaminharam-no para outro hospital, quando chegou teve de ligar novamente para a Linha SNS24 para ser admitido.Estes são alguns dos casos que constam do relatório da última avaliação feita pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), ainda não publicado, e ao qual o DN teve acesso, sobre o funcionamento do programa Ligue Antes, Salve Vidas, que começou a funcionar como projeto piloto na ULS da Póvoa do Varzim/Vila do Conde, em maio de 2023, e que no final do mesmo ano se estendeu a 27 das 39 Unidades Locais de Saúde (ULS) existentes no país, tornando-se “a principal porta de entrada do SNS”. Casos que demonstram que utentes do SNS têm ficado “sem acesso a assistência em cuidados de saúde”, o que, e como deixa claro a ERS, viola o definido na Constituição Portuguesa, na Carta dos Direitos e Deveres dos Utentes e na própria Portaria n.º 438, de 15 de dezembro de 2023, que regulamenta o funcionamento do próprio programa Ligue Antes, Salve Vidas.O regulador do setor considera a situação grave, porque “a nenhum utente pode ser negado o acesso a cuidados de saúde”, e avisa os organismos centrais, hospitais e centros de saúde que o incumprimento das regras é punível com coimas, que podem ir dos mil aos 44 mil euros, exigindo mais e melhor articulação entre serviços e que os profissionais sejam informados das regras do programa para que não tomem decisões que não são “adequadas” e que prejudicam os utentes. Ao longo de páginas e páginas, a ERS expões falhas, tece críticas e relembra as responsabilidades atribuídas ao Estado pela Constituição quanto à “universalidade” dos cuidados, independentemente de se ser pessoa singular ou coletiva, género, raça ou etnia, exigindo mesmo aos organismos centrais, Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) - esta última gere a Linha SNS24, que, no fundo, é quem materializa o programa Ligue Antes, Salve Vidas - que tomem as decisões necessárias para reforçar em recursos e em investimento esta linha, que ficou “assoberbada” de competências, para que se melhore a resposta aos utentes, que “não podem ficar à porta das unidades sem cuidados”, estando ou não referenciados. .Manifesto. 30 personalidades exigem o regresso dos “centros de saúde” . Segundo a ERS, tais situações desrespeitam “um dos princípios basilares do SNS, que é o princípio da universalidade”. Ou seja, “um utente que se dirige a um serviço ou a um estabelecimento do SNS, legalmente vinculado a assegurar a proteção da saúde individual e coletiva, não pode ver negado, sem mais, o respetivo acesso, ainda que se conclua que o tipo de cuidados procurados não é o adequado ou que o estabelecimento em causa não possui o perfil assistencial ou capacidade para a prestação de tratamentos”.Profissionais desconhecem regras de pré-referenciação O Regulador da Saúde relembra que “cabe ao SNS em primeira instância, mas também ao concreto prestador de cuidados de saúde, assegurar uma alternativa de acesso ou diligenciar formalmente pelo encaminhamento do utente para uma unidade de saúde que garante a prestação dos cuidados de saúde necessários e em tempo útil, abstendo-se de transferir o ónus desta decisão para o utente”, lê-se no relatório. Nas conclusões do mesmo, o regulador da saúde admite que “se, por um lado, não se ignora a problemática da utilização inapropriada dos serviços de urgência, reconhecendo-se assim os ganhos efetivos para o sistema de saúde no correto encaminhamento dos utentes para a prestação de cuidados de saúde”, por outro é preciso não esquecer que “a Linha SNS24 tem um papel de extrema importância na gestão do acesso dos utentes às instituições do SNS, e que a tal gestão não pode aliar-se do quadro de acesso legalmente instituído”.A ERS destaca que uma das situações identificadas foi o desconhecimento por parte das ULS e dos seus profissionais das regras do programa e até das situações em que os utentes se podem dirigir a uma urgência hospitalar ou a um centro de saúde sem a referenciação da Linha SNS24, porque existem tais situações clínicas. O facto de estar a ser exigido a todos os utentes o contacto com esta linha está a violar a própria legislação que lhe dá corpo. “Há desconhecimento, por parte de algumas unidades locais de saúde e dos seus profissionais, do elenco de situações taxativamente excluídas da exigência formal da prévia referenciação, regulamentada no projeto Ligue Antes, Salve Vidas”, refere a ERS, porque, na verdade, “há situações em que é obrigatória a avaliação do utente no serviço de urgência, mesmo sem prévia referenciação”. A saber: “Utentes acamados ou em cadeiras de rodas sem possibilidade de mobilização por meios próprios, vítimas de trauma, com situações agudas do foro psiquiátrico, obstétrico ou outro, desde que necessitem de tratamento urgente e inadiável, com idade maior ou igual a 70 anos; acompanhados por forças de segurança ou com indicação de perícia médica ou legal”. Ou ainda, de acordo com o estabelecido na Portaria 438/2023, “utentes orientados pelos seguintes fluxogramas de triagem: agressão, doenças sexualmente transmissíveis, embriaguez aparente, exposição a químicos, feridas, gravidez, hemorragia gastrointestinal, hemorragia vaginal, infeções locais e abcessos, problemas oftalmológicos, quedas, queimaduras profundas e superficiais, sobredosagem e envenenamento, traumatismo cranioencefálico, convulsões, corpo estranho, antecedentes de doença oncológica ativa, doença em curso com imunossupressão, doença renal crónica ou arterial periférica”.A ERS reforça que, tendo em conta o que está exposto em situações deste tipo, o resultado não pode ser o da “falta de resposta aos utentes”. Pelo contrário, destaca, “deve ser garantida a triagem nos termos previstos, bem como aconselhamento e encaminhamento adequados aos utentes e seus acompanhantes”, recordando que o princípio que subjaz ao programa Ligue Antes, Salve Vidas, tal como está definido na Portaria 438/2023, foi o do serviço público melhorar a sua resposta de “proximidade às necessidades assistenciais em situação de doença aguda e de urgência”. Por isso mesmo, uma das primeiras recomendações que faz aos organismos da saúde, DE-SNS, SPMS e ULS, vai no sentido de “pugnar pela adoção de procedimentos garantísticos dos direitos dos utentes ao acesso em tempo útil a uma prestação integrada e continuada de cuidados de saúde, sem prejuízos posteriores de intervenções regulatórias adicionais que se revelam necessárias a cada momento”.Mais. “Numa perspetiva qualitativa o acesso aos cuidados de saúde deve ser entendido como o acesso aos cuidados que efetivamente são necessários e adequados à satisfação das concretas necessidades dos utentes, devendo ser respeitados os tempos máximos de resposta garantidos para a prestação de saúde sem caráter de urgência e respeitando-se a carta dos direitos de acesso aos cuidados de saúde”, reforça a ERS no documento, reconhecendo, ao mesmo tempo, que o programa em causa “tem ganhos efetivos para o sistema de saúde”, mas só se for feito o “correto encaminhamento dos utentes às unidades do SNS” e “prestados os cuidados de que necessitam”.Direção Executiva e SPMS admitem “constrangimentos” No documento, e em resposta às situações enunciadas pela ERS, a DE-SNS e a SPMS reconhecem haver “constrangimentos relevantes na operacionalização do modelo em vigor, quer ao nível da integração do sistema e da articulação da informação existencial, em tempo útil, quer no domínio da articulação funcional entre os diferentes níveis da prestação de cuidados”, o que leva mais uma vez o regulador a argumentar que todos estes constrangimentos têm resultado em “obstáculos” no acesso do utente aos cuidados de saúde. “A ERS teve conhecimento de diversos casos de utentes, previamente referenciados pela Linha SNS24, que, na prática, não lograram ver garantido o seu direito de acesso”, recordando que, e de acordo com o programa, mesmo em casos “de menor gravidade clínica, pulseira azul ou verde, o utente pode não ser observado no serviço de urgência, desde que, de acordo com a sua condição clínica, seja garantido o seu encaminhamento para os cuidados de saúde primários ou para a consulta de um hospital de dia através de agendamento de consulta para o próprio dia ou para o dia seguinte.”O regulador reconhece que a “centralização na Linha SNS24 da gestão do acesso aos cuidados de saúde contribuiu decisivamente para o aumento substancial da procura dirigida a este canal, com repercussões diretas na sua capacidade de resposta, materializadas em tempos de espera prolongados”. .Linha SNS24 atendeu mais de 3,5 milhões de chamadas em 2024 e mais de meio milhão já em janeiro. Uma das situações que tem levado “a reclamações, que impactam negativamente com o direito de acesso dos utentes aos cuidados necessários” e que “comprometem a eficácia do próprio modelo de referenciação”, defendendo ser imperativo o reforço da articulação entre o SNS24 e as entidades prestadoras de cuidados de saúde, seja por via tecnológica e de integração entre sistemas do SNS24, cuidados de saúde primários e cuidados de saúde hospitalares seja por via de protocolos ou linhas de comunicação diretas que assegurem informação imediata ao SNS24 de quaisquer alterações temporárias ou permanentes na disponibilidade dos serviços, minimizando o risco de referenciação inadequadas.”O Conselho de Administração (CA) da ERS recorda mesmo à SPMS que “cabe a este organismo garantir em permanência que, no âmbito da sua atividade de triagem, aconselhamento e encaminhamento clínico, sejam respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes nos termos de disposto à Lei de Bases da Saúde, aprovada a 21 de março de 2014”. Cabe ainda à SPMS, sublinha o CA, “garantir o efetivo desenvolvimento dos mecanismos necessários à prévia confirmação pelo SNS24, da efetiva disponibilidade de vagas para atendimento dos utentes nas uni- dades de cuidados de saúde primários, devendo sempre que tecnicamente viável ser assegurado o agendamento automático da consulta para o utente por intermédio da referida linha”, para, mais uma vez, se evitarem encaminhamentos errados. Por outro lado, cabe à SPMS e à DE-SNS “reforçar a articulação com os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde primários e hospitalares, com vista a assegurar a informação imediata no SNS24 de quaisquer alterações temporárias ou permanentes na disponibilidade dos serviços, dessa forma garantindo a qualidade e eficácia da referenciação dos utentes para as diversas unidades de saúde.”Callback (retorno de chamada) para utentes não-atendidos Uma das principais reclamações dos utentes respeita ao tempo de atendimento pela Linha SNS24, sendo que há situações que ficam por atender. E, neste sentido, a ERS considera “imperioso o reforço da capacidade operacional do SNS24 como condição indispensável à salvaguarda da celeridade e eficiência do serviço prestado especialmente em períodos de pressão assistencial acrescida, bem como promover a otimização progressiva de instrumentos tecnológicos”, defendendo ser urgente a criação de “mecanismos compensatórios” para os utentes, como seja, “o desenvolvimento de um sistema de callback, que permite o retorno automático das chamadas, potenciando a acessibilidade e a continuidade da resposta assistencial aos utentes”. Por outro lado, defende a ERS, “é urgente a revisão dos critérios e algoritmos da referenciação utilizados pelo SNS24, em especial nas situações em que o utente se encontra presencialmente numa unidade de saúde, devendo nesses casos ser privilegiado o princípio da adequação e da proximidade, evitando referenciações que desconsiderem a realidade concreta do utente e que implica deslocações injustificadas”.A entidade da saúde relembra mesmo à SPMS que “estando a SNS24 formalmente instituída como a porta de entrada no SNS”, compete-lhe, “em primeira linha, assegurar a adequada orientação dos utentes e a continuidade dos cuidados, incluindo nos casos em que a referenciação inicial se revela frustrada, razão pela qual não se figura legítimo que o próprio sistema se destitua dessa responsabilidade, transferindo para o utente o ónus de encontrar uma alternativa numa clara e indevida inversão do dever de resposta do SNS24, enquanto pivô de acesso aos cuidados de saúde”. É tão simples quanto isto, cabe à Linha SNS24 encontrar uma solução para os utentes que viram o seu acesso vedado por informação incorreta, sendo “essencial que o SNS24 disponha de mecanismos de reavaliação imediata da situação clínica do utente, bem como de acesso em tempo real à informação atualizada sobre a rede assistencial, por forma a viabilizar uma nova, adequada e eficaz referenciação do utente”.Já quase no final da avaliação, a ERS diz que as situações enunciadas “resultam no facto inequívoco de que os constrangimentos têm vindo a obstaculizar o acesso dos utentes” quer à assistência em cuidados primários como em cuidados hospitalares. No que toca aos cuidados primários, que integram os centros de saúde, a entidade da saúde recomenda que estes “adotem procedimentos suscetíveis de garantir a todo momento a admissão e atendimento em tempo útil dos utentes referenciados pelo SNS 24, que assegurem que, nas situações em que constatam não possuir capacidade para o atendimento imediato dos utentes referenciados pela Linha SNS 24, seja assegurado o agendamento da prestação de cuidados de saúde em causa, em cumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos, aplicáveis ou a devida e formal referenciação para uma ou outra unidade de saúde que reúne tais condições, garantir em permanência que os procedimentos ou normas internas descritos nas sublinhas anteriores são de conhecimento dos seus profissionais e, por isto, efetivamente cumpridos, promovendo a divulgação interna de orientação e boas práticas”.Em relação aos cuidados hospitalares, as ULS “devem garantir o cabal cumprimento das portarias que regulamentam o projeto Ligue Antes, Salve Vidas, abstendo-se de obstaculizar por qualquer forma o direito de acesso a uma prestação integrada de cuidados de saúde, assegurar que nas situações em que constata não possuir perfil assistencial ou capacidade para a prestação de determinado tipo de cuidados de saúde, os utentes são formalmente encaminhados para um estabelecimento prestador de cuidados de saúde que garante a prestação dos cuidados de saúde necessários e em tempo útil”.Mais. Segundo a ERS, as 27 ULS que aplicam este programa (como a da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, Gaia/Espinho, Entre-o-Douro e Vouga, Barcelos/Esposende, Almada/Seixal, Lezíria, Tâmega/Sousa, Viseu/ Dão e Lafões, Matosinhos, Alto-Alentejo, Médio-Ave, Alto-Ave, Nordeste, Alto Minho, Aveiro, Braga, Leiria, Coimbra, Santa Maria, Lisboa-Ocidental, São José, Litoral Alentejano, Loures/Odivelas, Oeste, São João, Amadora-Sintra e Estuário do Tejo) “devem respeitar o regime jurídico das taxas moderadoras e os regimes especiais de benefícios em vigor a cada momento, interpretando-os e aplicando-os em conformidade com os princípios e as normas constitucionais”. Devendo ainda “promover a divulgação interna de todas estas orientações e boas-práticas para que elas sejam cumpridas por todos os seus profissionais”. O DN sabe que este relatório já foi dado a conhecer à tutela, à DE-SNS e à SPMS. .Programa Ligue Antes, Salve Vidas já recebeu 389 reclamações