Ao todo, e desde que o programa Ligue Antes, Salve Vidas começou a funcionar, a Entidade Reguladora da Saúde, entre maio de 2023 e 30 de abril de 2025, recebeu 389 queixas que visavam os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) - que gere a Linha SNS24 -, e as próprias unidades do Serviço Nacional Nacional de Saúde (hospitais e centros de saúde). O DN teve acesso à versão concluída em outubro, e já assinada pelo presidente do Conselho de Administração da ERS, de um relatório do regulador da Saúde, onde está bem claro que a aplicação deste programa está a criar "constrangimentos" e a "obstaculizar" o acesso dos utentes aos cuidados de saúde. E utiliza como exemplos sete dos casos de reclamações que recebeu, para lembrar aos organismos centrais do Ministério da Saúde, como Direção Executiva e SPMS, bem como aos hospitais e centros de saúde, o que não deve ser feito e o que deve, a bem do utente. Beja: de consulta marcada, mas sem vaga no centro de saúde A 5 de fevereiro de 2025, uma utente de Beja liga para a Linha SNS24 por se encontrar com queixas clínicas e, após a triagem que lhe foi feita, foi encaminhada para o centro de saúde de Beja, que é agora uma Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Assim que desligou o telefone recebeu a mensagem de confirmação de encaminhamento, onde lhe era pedido também que aguardasse o contacto do centro de saúde até às 12:00h do mesmo dia. Caso este não existisse, devia dirigir-se presencialmente ao centro de saúde pelas 15:00h. E foi isto mesmo que fez: foi ao centro de saúde, mas quando lá chegou, “foi-me negado atendimento por já não existirem vagas para consultas de recurso”, conta na sua exposição à Entidade Reguladora da Saúde. “Pedi que me fosse indicado isso mesmo por via oficial, em papel, SMS ou e-mail, mas foi novamente negado e indicado que contactasse outra vez o SNS24, para me indicar outro local prestador de cuidados”. Foi o que fez, mas na Linha SNS24 disseram-lhe que o centro de saúde é que tinha a responsabilidade de o fazer. Ou seja, destaca na carta à ERS, “nenhuma das duas entidades aqui descritas me indicou qualquer recurso, sendo-me negado pelo SNS24 o encaminhamento para o Serviço de Urgências do Hospital de Beja”. Foi diretamente à urgência hospitalar com o filho de três anos também e aos dois foi diagnosticado Gripe A. A utente termina a sua reclamação dizendo que tudo isto poderia ter sido evitado se as unidades do SNS "fizessem o seu trabalho". Nas suas recomendações, a ERS relembra os organismos centrais de que têm que garantir que a informação disponível na Linha SNS24 é a correta e diz às unidades de saúde que a responsabilidade de arranjar alternativas aos utentes é das unidades e não do próprio utente.Lisboa e Vale do Tejo: Da recusa de atendimento ao 112 Na região de Lisboa e Vale do Tejo, um utente conta à ERS que, em janeiro deste ano, a esposa estava muito constipada, no fim de semana de 18 e 19, ficando de cama. Na segunda-feira, dia 20, levou-a ao Centro de Atendimento Permanente, em Benavente, tentando uma consulta. Perguntaram-lhe se tinha ligado à Linha SNS24, “disse que não porque pensava que só era preciso para ir a uma urgência hospitalar, e disseram-me que não a atendiam sem eu ligar ao SNS24”, relata. Assim fez. “Às 9 horas e pouco da manhã liguei para o 808-24-24-24 estive até cerca das 10:30h, sem nunca me atenderem a chamada e acabei por regressar a casa”, mas por volta das 11:30 a esposa começou a ficar pior e decidiu chamar o INEM. “Foi levada para o Hospital de Vila Franca de Xira com início de um AVC, acabou por ser tratada no hospital”, “o caso poderia ter sido evitado”. Mais uma vez, a ERS relembra as unidades que “nenhum utente pode ficar sem resposta”, mesmo não estando referenciado, e que tal decisão viola a constituição..Ligue Antes, Salve Vidas. Regulador da Saúde diz que hospitais e centros de saúde estão a dificultar acesso de utentes a cuidados. Gondomar: informação errada levou-o a dois hospitaisAinda em fevereiro deste ano, outra utente queixa-se à ERS de que entrou em contacto com a Linha SNS24, através de telemóvel, por o marido ter feito um corte no braço. Segundo conta: “expliquei à enfermeira que me atendeu que o corte precisava de pontos e ela encaminhou-me para o Centro de Atendimento que funciona no Hospital da Prelada" (unidade da Santa Casa da Misericórdia, no Porto, com acordo com o SNS). “A minha área de residência é Gondomar”, explica ainda. Mas foi. E depois de estar cerca de 30 minutos à espera com o marido foram atendidos por uma médica que lhes disse que “ali não fazem suturas e que a Linha SNS24 sabe disso, uma vez que já enviaram vários pacientes com problemas idênticos e que eles os informaram disso”, relata a utente. A médica “escreveu uma carta e encaminhou-nos para o Hospital de Santo António, no Porto, para onde deveríamos ter ido logo se a Linha SNS24 fizesse o que devia”, descreve a utente. A ERS lembra à SPMS, que gere a Linha SNS24, e à Direção Executiva, que a informação sobre o tipo de cuidados que presta cada unidade, mesmo as que não integram o SNS, deve estar correta, para se evitar encaminhamentos errados. Lisboa e Vale do Tejo: De hospital em hospital por causa de Ortopedia Também no início deste ano, a ERS recebeu o caso de um utente que teve um acidente de bicicleta, em Lisboa, em frente ao Hospital Pulido Valente, e que se dirigiu ao seu centro de saúde por ter “a falange da mão esquerda deformada e com muita dor”. Ali, disseram-lhe que não podiam fazer nada e aconselharam-no a ligar para a Linha SNS24. “Liguei pelas 18:00h, reportei o acidente e que estava com muitas dores na mão. Às 18h17m ligaram-me a informar que me devia dirigir ao Hospital de Santa Maria, desloquei-me de Metro e quando cheguei ao Serviço de Urgência retirei a senha para atendimento na triagem. Quando fui chamado a enfermeira informou-me que à sexta-feira à noite não há serviço de ortopedia e que tinha de me deslocar para o Hospital São José”, mas que tinha de ligar de novo para a Linha SNS24. “Liguei novamente pelas 19:20h, informei outra vez sobre o acidente e o que tinha acontecido no hospital" para onde o encaminharam. Em Santa Maria, não lhe resolveram o problema e a Linha SNS24 voltou a reencaminhá-lo como se já não tivesse estado referenciado e à espera noutra unidade. “Fui de Metro, voltei a tirar senha, a esperar e o tratamento só terminou pelas 23h00”. Um arrastar de tempo que era escusado se o utente tivesse sido encaminhado corretamente. A ERS destaca no seu relatório que “o atendimento ou referenciação alternativa para uma outra unidade de saúde tem de ser feito de forma a dar resposta em tempo útil ao utente”. Lisboa e Vale do Tejo: Criança enviada para centro com médicos em greveUma mãe ligou para a Linha SNS24 às 9:00h porque o filho, de sete anos, estava com tosse e febre. A linha de apoio marcou-lhe consulta para as 18h28m no Centro de Atendimento em Odivelas. “Chego 30 minutos antes e é-me negado o atendimento marcado pela Linha SNS24, porque não havia médicos, estavam em greve, mas de portas abertas", conta à ERS.Esta mãe teve de ligar de novo para a Linha SNS24, de onde lhe disseram "que tinha de ser o centro de saúde a encaminhar-me para outra unidade”, relata. Voltou lá, mas remeteram-na de novo para a Linha SNS24. “O meu filho estava com graus de 40 de febre e passou o dia a aguardar a consulta marcada pela Linha SNS24, para um sitio onde não havia médicos por estarem em greve. Não sabiam disto?" A mãe foi depois para a urgência de Santa Maria, onde esteve “horas à espera”. No seu relatório, a ERS recorda várias vezes que a informação dada pelas unidades à Linha SNS24 necessita de permanente atualização, para se evitar encaminhamentos errados. Viana do Castelo: Bebé de 15 meses sem atendimento por não ir referenciadoOutra mãe dá entrada na urgência do Hospital de Viana do Castelo com a sua bebé de 15 meses, em novembro de 2024. “Eram 00:51h. A minha filha apresentava febre desde o dia anterior e chorava com a mão junto ao ouvido direito”. Um comportamento que se tinha agravado nas últimas horas. Em setembro, tinha feito uma otite, pelo que, perante os sinais, conta: “Dirigi-me diretamente à urgência, não sabendo da obrigatoriedade de ligar antecipadamente para a Linha SNS24. Qual não é o meu espanto, quando chego lá é-nos recusado o atendimento por não termos sido encaminhadas pela Linha. Incrédula, liguei, achando que, e uma vez que já estávamos à porta da urgência, me iriam confirmar o atendimento ali”. Mas, após a triagem telefónica, a operadora comunicou-lhe uma decisão diferente: “Uma vez que a minha filha não reunia critérios para ser admitida em contexto de urgência tinha de ser encaminhada para a consulta no centro de saúde de Melgaço. Não consegui responder outra coisa senão: Melgaço? A senhora sabe onde fica Melgaço? Fica quase em Espanha. Eu sou de Lanheses, mais depressa chego ao Porto”. Ao que a operadora respondeu que tinha de ir para “o acesso à minha área de residência". "Desculpem, isto só pode ser anedota. Tinha uma bebé de 15 meses a chorar no colo e com febre e tinha de percorrer 84 quilómetros, uma hora e meia de caminho, até Melgaço, quando estava à porta de um serviço de urgência?”Mais um caso que a ERS diz que viola a Constituição, a Carta dos Direitos e Deveres do Utente e até as regras que regulamentam o programa Ligue Antes, Salve Vidas. Por isso recomenda aos SPMS e às ULS que informem os seus profissionais de tais regras para não tomarem decisões inadequadas. “A nenhum doente pode ser negada a assistência em cuidados de saúde”. Alcobaça: De Porto de Mós até Coimbra por causa de um raio-X No ano passado, num dia de dezembro, pelas 9:00h, um utente deslocou-se ao seu centro de saúde - que fica, como diz, "a 600 metros da minha casa", perto de Juncal -, com o filho, para que o joelho deste, que se encontrava inchado, fosse observado. “Ele estava com imensas dores”, mas quando chegaram ao centro disseram-lhe que tinha de ligar para o SNS24. Ligou, mas em vez de o encaminharem para ali, mandaram-nos para o Hospital de Alcobaça, visto ele ser atleta e ter de efetuar um raio-X. Foi. Mas quando chegou, diz, “informaram-nos que tínhamos de ir para o centro de saúde de Porto de Mós". "Fomos, mas quando chegámos reencaminharam-nos para o centro de saúde da nossa residência”. O utente não queria acreditar, quando ali chegou. “A médica encaminhou para o Hospital Pediátrico de Coimbra, devido ao facto de ser uma criança e de ter de fazer exames. Com isto tudo já tínhamos feito mais de 80 quilómetros e ainda nos faltavam mais 115 até Coimbra”. A ERS reforça que as informações prestadas aos utentes têm de ser “corretas”. Porto: Taxas cobradas erradamente a utentes Em janeiro deste ano, um utente do Porto ligou para a Linha SNS24 e foi encaminhado para o Hospital de São João. Só que quando lá chegou, não foi admitido, porque, conta na queixa enviada à ERS: “Informaram-me que do dia 1 a 15 de cada mês, a partir das 19h30 não há urgência de oftalmologia” - nesta quinzena a urgência funciona no Hospital de Santo António, no horário noturno. Depois da informação, disseram-lhe para voltar a ligar para a SNS24. Ligou. “Mas continuaram a dizer-me para ir para o São João. Voltei à secretaria para a admissão e a funcionária, impaciente, voltou a dizer que não havia urgência de oftalmologia, indignando-se com o facto de estar a colocar em causa o seu trabalho”. O utente conta ainda que “uma responsável do serviço que estava a assistir ao sucedido veio dizer-me a mesma coisa e pediu que lhe mostrasse a mensagem do SNS24”. Mostrou, mas disseram-lhe para ir para o Santo António. O utente pediu comprovativo do que lhe estavam a dizer, mas foi negado. Dirigiu-se então ao Santo António, onde lhe fizeram a admissão, mas disseram-lhe que não podiam aceitar a mensagem do SNS24 porque se referia ao São João, pelo que tinha de pagar taxa de urgência. Se quisesse ficar isento teria de ligar, de novo, à Linha SNS24 para que o encaminhamento fosse feito para o Santo António. Este caso não foi o único a chegar à ERS, mas foi este que o regulador da Saúde usou para deixar bem claro no seu relatório de avaliação do programa Ligue Antes, Salve Vidas que há unidades que estão a cobrar taxas a utentes erradamente. A ERS relembra às unidades de saúde ser ilegal a cobrança de taxa a um doente já referenciado pela SNS24, mesmo que tenha sido para outro hospital. Se tal aconteceu, foi porque o doente recebeu a informação errada. “Só é admissível a cobrança de determinados valores aos utentes com o objetivo de moderar o consumo de cuidados de saúde, tal como prosseguido pelas taxas moderadoras e desde que não seja vedado o acesso a esses cuidados por razões económicas, nem sejam postas em causa as situações de isenção e da despesa do pagamento de taxas moderadoras legalmente previstas”. .Ligue Antes, Salve Vidas. Direção Executiva diz que “dificuldades” são do início do projeto, ERS sustenta-se em queixas já de 2025