Utentes queixam-se sobretudo de informações erradas.
Utentes queixam-se sobretudo de informações erradas.Arquivo (D.R.)

Ligue Antes, Salve Vidas. De Viana do Castelo a Beja, oito exemplos de queixas sobre mau atendimento

Direção Executiva do SNS diz que só tem conhecimento de casos de dificuldade no acesso no início do programa, maio de 2023, mas há utentes que se queixaram à ERS no final de 2024 e início de 2025 por terem sido encaminhados erradamente pela Linha SNS24, por terem de andar de unidade para unidade, ou que nem sequer foram atendidos. Na avaliação que faz, regulador usa oito casos para exemplificar o que não deve ser feito.
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Ao todo, e desde que o programa Ligue Antes, Salve Vidas começou a funcionar, a Entidade Reguladora da Saúde, entre maio de 2023 e 30 de abril de 2025, recebeu 389 queixas que visavam os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) - que gere a Linha SNS24 -, e as próprias unidades do Serviço Nacional Nacional de Saúde (hospitais e centros de saúde).

O DN teve acesso à versão concluída em outubro, e já assinada pelo presidente do Conselho de Administração da ERS, de um relatório do regulador da Saúde, onde está bem claro que a aplicação deste programa está a criar "constrangimentos" e a "obstaculizar" o acesso dos utentes aos cuidados de saúde. E utiliza como exemplos sete dos casos de reclamações que recebeu, para lembrar aos organismos centrais do Ministério da Saúde, como Direção Executiva e SPMS, bem como aos hospitais e centros de saúde, o que não deve ser feito e o que deve, a bem do utente.

Beja: de consulta marcada, mas sem vaga no centro de saúde

A 5 de fevereiro de 2025, uma utente de Beja liga para a Linha SNS24 por se encontrar com queixas clínicas e, após a triagem que lhe foi feita, foi encaminhada para o centro de saúde de Beja, que é agora uma Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Assim que desligou o telefone recebeu a mensagem de confirmação de encaminhamento, onde lhe era pedido também que aguardasse o contacto do centro de saúde até às 12:00h do mesmo dia. Caso este não existisse, devia dirigir-se presencialmente ao centro de saúde pelas 15:00h.

E foi isto mesmo que fez: foi ao centro de saúde, mas quando lá chegou, “foi-me negado atendimento por já não existirem vagas para consultas de recurso”, conta na sua exposição à Entidade Reguladora da Saúde. “Pedi que me fosse indicado isso mesmo por via oficial, em papel, SMS ou e-mail, mas foi novamente negado e indicado que contactasse outra vez o SNS24, para me indicar outro local prestador de cuidados”. Foi o que fez, mas na Linha SNS24 disseram-lhe que o centro de saúde é que tinha a responsabilidade de o fazer.

Ou seja, destaca na carta à ERS, “nenhuma das duas entidades aqui descritas me indicou qualquer recurso, sendo-me negado pelo SNS24 o encaminhamento para o Serviço de Urgências do Hospital de Beja”.

Foi diretamente à urgência hospitalar com o filho de três anos também e aos dois foi diagnosticado Gripe A. A utente termina a sua reclamação dizendo que tudo isto poderia ter sido evitado se as unidades do SNS "fizessem o seu trabalho". Nas suas recomendações, a ERS relembra os organismos centrais de que têm que garantir que a informação disponível na Linha SNS24 é a correta e diz às unidades de saúde que a responsabilidade de arranjar alternativas aos utentes é das unidades e não do próprio utente.

Lisboa e Vale do Tejo: Da recusa de atendimento ao 112

Na região de Lisboa e Vale do Tejo, um utente conta à ERS que, em janeiro deste ano, a esposa estava muito constipada, no fim de semana de 18 e 19, ficando de cama. Na segunda-feira, dia 20, levou-a ao Centro de Atendimento Permanente, em Benavente, tentando uma consulta. Perguntaram-lhe se tinha ligado à Linha SNS24, “disse que não porque pensava que só era preciso para ir a uma urgência hospitalar, e disseram-me que não a atendiam sem eu ligar ao SNS24”, relata.

Assim fez. “Às 9 horas e pouco da manhã liguei para o 808-24-24-24 estive até cerca das 10:30h, sem nunca me atenderem a chamada e acabei por regressar a casa”, mas por volta das 11:30 a esposa começou a ficar pior e decidiu chamar o INEM. “Foi levada para o Hospital de Vila Franca de Xira com início de um AVC, acabou por ser tratada no hospital”, “o caso poderia ter sido evitado”.

Mais uma vez, a ERS relembra as unidades que “nenhum utente pode ficar sem resposta”, mesmo não estando referenciado, e que tal decisão viola a constituição.

Utentes queixam-se sobretudo de informações erradas.
Ligue Antes, Salve Vidas. Regulador da Saúde diz que hospitais e centros de saúde estão a dificultar acesso de utentes a cuidados

Gondomar: informação errada levou-o a dois hospitais

Ainda em fevereiro deste ano, outra utente queixa-se à ERS de que entrou em contacto com a Linha SNS24, através de telemóvel, por o marido ter feito um corte no braço. Segundo conta: “expliquei à enfermeira que me atendeu que o corte precisava de pontos e ela encaminhou-me para o Centro de Atendimento que funciona no Hospital da Prelada" (unidade da Santa Casa da Misericórdia, no Porto, com acordo com o SNS).

“A minha área de residência é Gondomar”, explica ainda. Mas foi. E depois de estar cerca de 30 minutos à espera com o marido foram atendidos por uma médica que lhes disse que “ali não fazem suturas e que a Linha SNS24 sabe disso, uma vez que já enviaram vários pacientes com problemas idênticos e que eles os informaram disso”, relata a utente.

A médica “escreveu uma carta e encaminhou-nos para o Hospital de Santo António, no Porto, para onde deveríamos ter ido logo se a Linha SNS24 fizesse o que devia”, descreve a utente. A ERS lembra à SPMS, que gere a Linha SNS24, e à Direção Executiva, que a informação sobre o tipo de cuidados que presta cada unidade, mesmo as que não integram o SNS, deve estar correta, para se evitar encaminhamentos errados.

Lisboa e Vale do Tejo: De hospital em hospital por causa de Ortopedia

Também no início deste ano, a ERS recebeu o caso de um utente que teve um acidente de bicicleta, em Lisboa, em frente ao Hospital Pulido Valente, e que se dirigiu ao seu centro de saúde por ter “a falange da mão esquerda deformada e com muita dor”. Ali, disseram-lhe que não podiam fazer nada e aconselharam-no a ligar para a Linha SNS24.

“Liguei pelas 18:00h, reportei o acidente e que estava com muitas dores na mão. Às 18h17m ligaram-me a informar que me devia dirigir ao Hospital de Santa Maria, desloquei-me de Metro e quando cheguei ao Serviço de Urgência retirei a senha para atendimento na triagem. Quando fui chamado a enfermeira informou-me que à sexta-feira à noite não há serviço de ortopedia e que tinha de me deslocar para o Hospital São José”, mas que tinha de ligar de novo para a Linha SNS24.

“Liguei novamente pelas 19:20h, informei outra vez sobre o acidente e o que tinha acontecido no hospital" para onde o encaminharam. Em Santa Maria, não lhe resolveram o problema e a Linha SNS24 voltou a reencaminhá-lo como se já não tivesse estado referenciado e à espera noutra unidade. “Fui de Metro, voltei a tirar senha, a esperar e o tratamento só terminou pelas 23h00”. Um arrastar de tempo que era escusado se o utente tivesse sido encaminhado corretamente. A ERS destaca no seu relatório que “o atendimento ou referenciação alternativa para uma outra unidade de saúde tem de ser feito de forma a dar resposta em tempo útil ao utente”.

Lisboa e Vale do Tejo: Criança enviada para centro com médicos em greve

Uma mãe ligou para a Linha SNS24 às 9:00h porque o filho, de sete anos, estava com tosse e febre. A linha de apoio marcou-lhe consulta para as 18h28m no Centro de Atendimento em Odivelas. “Chego 30 minutos antes e é-me negado o atendimento marcado pela Linha SNS24, porque não havia médicos, estavam em greve, mas de portas abertas", conta à ERS.

Esta mãe teve de ligar de novo para a Linha SNS24, de onde lhe disseram "que tinha de ser o centro de saúde a encaminhar-me para outra unidade”, relata. Voltou lá, mas remeteram-na de novo para a Linha SNS24. “O meu filho estava com graus de 40 de febre e passou o dia a aguardar a consulta marcada pela Linha SNS24, para um sitio onde não havia médicos por estarem em greve. Não sabiam disto?"

A mãe foi depois para a urgência de Santa Maria, onde esteve “horas à espera”. No seu relatório, a ERS recorda várias vezes que a informação dada pelas unidades à Linha SNS24 necessita de permanente atualização, para se evitar encaminhamentos errados.

Viana do Castelo: Bebé de 15 meses sem atendimento por não ir referenciado

Outra mãe dá entrada na urgência do Hospital de Viana do Castelo com a sua bebé de 15 meses, em novembro de 2024. “Eram 00:51h. A minha filha apresentava febre desde o dia anterior e chorava com a mão junto ao ouvido direito”. Um comportamento que se tinha agravado nas últimas horas. Em setembro, tinha feito uma otite, pelo que, perante os sinais, conta: “Dirigi-me diretamente à urgência, não sabendo da obrigatoriedade de ligar antecipadamente para a Linha SNS24. Qual não é o meu espanto, quando chego lá é-nos recusado o atendimento por não termos sido encaminhadas pela Linha. Incrédula, liguei, achando que, e uma vez que já estávamos à porta da urgência, me iriam confirmar o atendimento ali”.

Mas, após a triagem telefónica, a operadora comunicou-lhe uma decisão diferente: “Uma vez que a minha filha não reunia critérios para ser admitida em contexto de urgência tinha de ser encaminhada para a consulta no centro de saúde de Melgaço. Não consegui responder outra coisa senão: Melgaço? A senhora sabe onde fica Melgaço? Fica quase em Espanha. Eu sou de Lanheses, mais depressa chego ao Porto”. Ao que a operadora respondeu que tinha de ir para “o acesso à minha área de residência". "Desculpem, isto só pode ser anedota. Tinha uma bebé de 15 meses a chorar no colo e com febre e tinha de percorrer 84 quilómetros, uma hora e meia de caminho, até Melgaço, quando estava à porta de um serviço de urgência?”

Mais um caso que a ERS diz que viola a Constituição, a Carta dos Direitos e Deveres do Utente e até as regras que regulamentam o programa Ligue Antes, Salve Vidas. Por isso recomenda aos SPMS e às ULS que informem os seus profissionais de tais regras para não tomarem decisões inadequadas. “A nenhum doente pode ser negada a assistência em cuidados de saúde”.

Alcobaça: De Porto de Mós até Coimbra por causa de um raio-X


No ano passado, num dia de dezembro, pelas 9:00h, um utente deslocou-se ao seu centro de saúde - que fica, como diz, "a 600 metros da minha casa", perto de Juncal -, com o filho, para que o joelho deste, que se encontrava inchado, fosse observado. “Ele estava com imensas dores”, mas quando chegaram ao centro disseram-lhe que tinha de ligar para o SNS24. Ligou, mas em vez de o encaminharem para ali, mandaram-nos para o Hospital de Alcobaça, visto ele ser atleta e ter de efetuar um raio-X.

Foi. Mas quando chegou, diz, “informaram-nos que tínhamos de ir para o centro de saúde de Porto de Mós". "Fomos, mas quando chegámos reencaminharam-nos para o centro de saúde da nossa residência”. O utente não queria acreditar, quando ali chegou. “A médica encaminhou para o Hospital Pediátrico de Coimbra, devido ao facto de ser uma criança e de ter de fazer exames. Com isto tudo já tínhamos feito mais de 80 quilómetros e ainda nos faltavam mais 115 até Coimbra”.

A ERS reforça que as informações prestadas aos utentes têm de ser “corretas”.

Porto: Taxas cobradas erradamente a utentes

Em janeiro deste ano, um utente do Porto ligou para a Linha SNS24 e foi encaminhado para o Hospital de São João. Só que quando lá chegou, não foi admitido, porque, conta na queixa enviada à ERS: “Informaram-me que do dia 1 a 15 de cada mês, a partir das 19h30 não há urgência de oftalmologia” - nesta quinzena a urgência funciona no Hospital de Santo António, no horário noturno.

Depois da informação, disseram-lhe para voltar a ligar para a SNS24. Ligou. “Mas continuaram a dizer-me para ir para o São João. Voltei à secretaria para a admissão e a funcionária, impaciente, voltou a dizer que não havia urgência de oftalmologia, indignando-se com o facto de estar a colocar em causa o seu trabalho”.

O utente conta ainda que “uma responsável do serviço que estava a assistir ao sucedido veio dizer-me a mesma coisa e pediu que lhe mostrasse a mensagem do SNS24”. Mostrou, mas disseram-lhe para ir para o Santo António. O utente pediu comprovativo do que lhe estavam a dizer, mas foi negado. Dirigiu-se então ao Santo António, onde lhe fizeram a admissão, mas disseram-lhe que não podiam aceitar a mensagem do SNS24 porque se referia ao São João, pelo que tinha de pagar taxa de urgência. Se quisesse ficar isento teria de ligar, de novo, à Linha SNS24 para que o encaminhamento fosse feito para o Santo António.

Este caso não foi o único a chegar à ERS, mas foi este que o regulador da Saúde usou para deixar bem claro no seu relatório de avaliação do programa Ligue Antes, Salve Vidas que há unidades que estão a cobrar taxas a utentes erradamente.

A ERS relembra às unidades de saúde ser ilegal a cobrança de taxa a um doente já referenciado pela SNS24, mesmo que tenha sido para outro hospital. Se tal aconteceu, foi porque o doente recebeu a informação errada. “Só é admissível a cobrança de determinados valores aos utentes com o objetivo de moderar o consumo de cuidados de saúde, tal como prosseguido pelas taxas moderadoras e desde que não seja vedado o acesso a esses cuidados por razões económicas, nem sejam postas em causa as situações de isenção e da despesa do pagamento de taxas moderadoras legalmente previstas”.

Utentes queixam-se sobretudo de informações erradas.
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