Denegação de justiça: o crime é só do ex-diretor de Fronteiras?

Um homem morreu nas instalações de uma polícia depois de agredido e de ficar algemado mais de oito horas. O seu corpo maltratado foi visto por pelo menos uma dezena de pessoas. Mas nenhum inquérito interno foi aberto e só uma denúncia anónima alertou a PJ. A nova acusação do MP acusa apenas uma pessoa - o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa - por esta denegação de justiça/encobrimento e iliba a então diretora nacional.

Ricardo Girante é inspetor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. No dia 12 de março de 2020, estava a desempenhar funções no aeroporto de Lisboa, no controle fronteiriço, quando pelas 16 horas lhe disseram para se dirigir com urgência para o centro de detenção daquela polícia, onde eram "instalados" os estrangeiros a quem se negava a entrada no país, para ajudar dois colegas a efetuar um embarque - ou seja a colocar um desses "recusados" num avião.

Ao chegar junto dos colegas, constatou que a pessoa que era suposto ajudar a embarcar era um homem que "estava algemado com os braços atrás das costas, com algemas cirúrgicas [de pano] calças despidas até aos joelhos e era notório um cheiro intenso a urina." Viu também que o homem "apresentava hematomas nos braços, um arranhão no rosto e uma marca no corpo que associou a uma intervenção muscular anterior".

Cenário semelhante descreve o inspetor Rui Marques, que chegou junto do homem em causa antes de Girante (era um dos inspetores que deviam "embarcá-lo"): estava algemado de mãos atrás das costas, com os tornozelos unidos por fita-cola castanha, e tinha "hematomas e equimoses nos braços e a face inchada, tal como em zonas das pernas que tinha expostas".

O homem em causa - o cidadão ucraniano Ihor Homeniuk - seria, como é sabido, declarado morto pelas 18H40 por um médico do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Mas, apesar das marcas evidentes de violência que exibia, e que os dois polícias reconhecem ter visto, a sua morte foi, como é também hoje do conhecimento geral, descrita no auto de óbito elaborado no SEF como devendo-se a causas naturais.

Esse auto de óbito foi, como o documento que o médico do INEM assinou após declarar a morte, e no qual fez constar apenas que esta ocorrera após uma "crise convulsiva", não efetuando qualquer referência às marcas de violência existentes no corpo, um dos fundamentos do escamoteamento das verdadeiras circunstâncias que a causaram. Na verdade, não houve, sabemos hoje, um documento elaborado no SEF em relação com a morte de Ihor que não tenha falsificado a realidade.

E, face ao relato destes dois inspetores - que aliás corrobora o de uma das enfermeiras da Cruz Vermelha que socorreu Ihor pouco antes de este morrer, mas contradiz por exemplo o efetuado em tribunal pelo inspetor Gabriel Pinto, que fazia equipa com Rui Marques naquele dia e disse não ter visto hematomas no corpo do detido -, sabe-se que ninguém que tenha visto Ihor nos momentos (horas, até) que precederam a morte, e depois o seu cadáver, poderia deixar de reparar nos sinais de violência descritos.

"Omissões" em cadeia

Falsificação de documentos (crime previsto no artigo 256º do Código Penal) era precisamente o crime de que eram suspeitos - um elaborou o auto, o outro assinou-o - os inspetores Girante e Marques.

Crime em relação ao qual o Ministério Público extraiu certidão quando em setembro de 2020 acusou três outros inspetores do SEF (Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa) do homicídio qualificado de Ihor. Desta forma os dois processos foram autonomizados: enquanto a acusação aos três inspetores seguiu para julgamento - acabariam por ser condenados a nove anos de prisão por ofensas à integridade física graves e agravadas pelo resultado, condenação que, após confirmada pelo Supremo Tribunal, se encontra em recurso no Constitucional -, este outro inquérito, no qual cabia a investigação daquilo que a Inspeção Geral da Administração Interna descreveu como uma operação de encobrimento ("ocultação da verdade com a consequente obstrução à instrução de processos de natureza criminal e/ou disciplinar"), continuou.

Desde esta "separação" de processos que se acreditava que foi uma estratégia do Ministério Público "fatiar" as acusações, deixando para uma segunda fase não só a investigação relativa ao encobrimento como às ações de todos os que, tendo podido socorrer Ihor, e muito provavelmente evitado a sua morte, nada fizeram.

Como o DN noticiou esta quarta-feira, a acusação deste segundo inquérito foi agora conhecida, sendo imputados vários crimes a outros cinco arguidos. São eles o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques, por prevaricação e denegação de justiça; dois inspetores do SEF - João Agostinho e Cecília Vieira -, por homicídio negligente por omissão; e dois vigilantes da empresa de segurança privada Prestibel, por sequestro e atividade ilícita de segurança privada.

É no texto desta acusação, na qual se discriminam os crimes de que se suspeitou ao longo do inquérito, assim como os correspondentes suspeitos, e que foram arquivados, que consta o relato citado de Girante e Marques.

Inspetores a quem o procurador Óscar Ferreira, que a assina, decidiu não acusar por considerar que a definição do crime de falsificação de documento implica uma ação - "fazer constar falsamente de um documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante" - quando o que estaria eventualmente em causa seria uma omissão, a de não terem feito constar no auto de óbito que Ihor estivera algemado durante mais de oito horas. Uma omissão semelhante àquela que ocorreu no testemunho de Rui Marques quando foi ouvido no julgamento dos três colegas acusados de homicídio: nessa altura não referiu ter notado hematomas no corpo de Ihor, admitindo que ele e Gabriel Pinto estavam até dispostos a embarcar o "passageiro", mesmo depois de o encontrarem algemado, descomposto e urinado.

Também outro crime de possível imputação aos dois inspetores, o de "favorecimento pessoal" - no caso, o dos três inspetores que tinham algemado Ihor - é afastado pelo procurador.

Este reconhece que "em princípio e partindo de um raciocínio lógico dedutivo, qualquer pessoa medianamente formada e com a formação dos dois subscritores do auto de óbito concluiria que, não existindo outro tipo de intervenção posterior à intervenção dos inspetores que procederam à algemarem e, se no momento em que prepararam o embarque, o Ihor Homeniuk estava algemado com as mãos atrás das costas e com as algemas pertencentes ao inspetor Luís Silva, então foi porque assim foi deixado desde as 8H15 às 16H40" - algo que como já frisado terá sido determinante na morte do cidadão ucraniano. Mas Óscar Ferreira valoriza o facto de Ricardo Girante ter, ao comunicar telefonicamente o óbito de Ihor ao Ministério Público, indicado que o cadáver apresentava "lesões no corpo". Essa conduta demonstra, crê o procurador, "não ter sido sua intenção [do inspetor Girante] fazer crer que a morte surgiu de causas meramente naturais."

O que essa conduta parece também demonstrar é que a procuradora Alexandra Catatau, que recebeu o dito telefonema de Girante e autorizou o levantamento do corpo, não valorizou o facto de um estrangeiro que morrera num local de detenção (que, frise-se, fora já várias vezes referido como de "risco de tortura" pelo Mecanismo Nacional de Prevenção de Tortura, sediado na Provedoria de Justiça) ostentar sinais de violência, nem considerou apropriado deslocar-se ao local para se inteirar das circunstâncias da morte ou avisar a Polícia Judiciária para que investigasse.

Aparentemente, nesta era dos telemóveis com câmara, não terá sequer ocorrido à procuradora solicitar imagens do corpo para ajuizar da necessidade ou não de iniciar uma investigação e portanto, desde logo, mandar preservar o local e as eventuais provas.

Anote-se de resto que, tendo a morte de Ihor ocorrido nas instalações de uma polícia com poderes de investigação criminal como é o SEF, não parece ter ocorrido a ninguém, de entre tanto inspetor mais ou menos graduado, recolher prova, captando imagens do cadáver e do local onde se encontrava, por acaso a única divisão do centro de detenção onde não existiam câmaras de vigilância - mais que não fosse que para reportar superiormente as condições da morte.

Diretora-nacional admitiu ter suspeitado de tortura

Ainda assim, sabe-se que o facto de o corpo de Ihor apresentar sinais de violência chegou ao conhecimento da então diretora nacional do SEF, Cristina Gatões.

E sabe-se disso porque, ao ser em 2021 inquirida pela Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) no âmbito do processo disciplinar a Sérgio Henriques (que foi expulso da função pública por se ter considerado que agiu de forma a deliberadamente encobrir as circunstâncias reais da morte de Ihor e é agora acusado do crime de prevaricação e denegação de justiça pelas mesmas razões), Gatões justificou o facto de não ter, como a lei obriga, comunicado imediatamente à IGAI aquela morte ocorrida sob custódia do SEF (fê-lo apenas 4/5 dias depois) porque queria averiguar "se tinha havido alguma violência"; falou mesmo da possibilidade de "tortura".

Essa possibilidade, explicou nessa inquirição, devia-se a "alguém" lhe ter contado que "ele [Ihor] se tinha atirado ou batido num armário", o que a teria alertado para a possibilidade de ter podido haver "algumas agressões ou alguma violência".

Cristina Gatões, que reconheceu ter sabido da morte de Ihor, por Sérgio Henriques, pouco depois de esta ocorrer, e desde logo ter enviado uma SMS ao ministro da tutela (então Eduardo Cabrita) - SMS que no inquérito criminal mostrou à Polícia Judiciária -, não foi questionada pela IGAI sobre quem e quando lhe teria comunicado que o corpo apresentava sinais de violência, nem sobre o motivo pelo qual não considerou que a existência desses sinais implicaria a abertura de um inquérito interno.

Também não lhe foi perguntado se não lhe pareceu bizarro que a existência desses sinais de violência não constasse do auto de óbito nem sequer do Relatório de Ocorrência (RO) respeitante àquele detido - para cada detido nos centros de detenção do SEF era criado um relatório onde se deviam inscrever todas as ocorrências relevantes que lhe dissessem respeito.

Relatório de Ocorrência cuja parte relativa às últimas 24 de horas da vida de Ihor não estava preenchida quando este morreu, tendo sido elaborada sob a orientação do então diretor de Fronteiras Sérgio Henriques e ficando apenas completa na segunda-feira 16 de março (Ihor morreu numa quinta-feira). Um relatório de ocorrência no qual se assinala a algemagem do detido na manhã de 12 de março, mas que não tem menção a desalgemagem.

Na inquirição a que foi sujeita no âmbito do inquérito criminal, Cristina Gatões não terá aparentemente feito referência ao conhecimento, que admitiu perante a IGAI, dos sinais de violência no corpo, nem sobre isso foi perguntada.

De facto, no excerto do texto da acusação que lhe faz referência, a ex-diretora nacional do SEF justifica ter pedido a Sérgio Henriques que visualizasse as imagens das câmaras de vigilância do centro de detenção "apenas por uma questão de precaução", sendo "o único propósito (...) instruir a informação a remeter à Inspeção Geral da Administração Interna com toda a informação possível"; não há referência ao facto de saber que o corpo tinha sinais de violência.

Cristina Gatões leu relatório mas não viu a evidência?

Por outro lado, ao contrário do que sucedeu quando inquirida pela IGAI, altura em que disse não se recordar de quando leu o relatório de ocorrência atinente a Ihor - se logo na sexta-feira 13 ou apenas na segunda-feira 16 - Cristina Gatões parece ter, perante os inquiridores do inquérito criminal, recobrado a memória quanto ao momento em que pôde lê-lo. "Recebeu o relatório de ocorrências do Ihor ao que julga na segunda-feira", lê-se no texto da acusação, "e não detetou qualquer incongruência. Por inexistirem suspeitas de qualquer comportamento ilícito, não determinou a abertura de inquéritos disciplinares."

Assim, não só o facto de o RO não estar completo quando deveria estar - algo que a então responsável máxima do SEF não terá podido ignorar, porque afirma tê-lo pedido logo no dia 12 - não lhe suscitou estranheza; haver menção naquele relatório ao colocar de algemas a Ihor e não existir nele a indicação de quando foram retiradas não lhe permitiu detetar "qualquer incongruência", nem "suspeitas de comportamento ilícito".

Se, como considerou o procurador Óscar Ferreira sobre os inspetores Girante e Marques, "qualquer pessoa medianamente formada e com a formação dos dois subscritores do auto de óbito concluiria que, não existindo outro tipo de intervenção posterior à intervenção dos inspetores que procederam à algemarem e, se no momento em que prepararam o embarque, o Ihor Homeniuk estava algemado com as mãos atrás das costas e com as algemas pertencentes ao inspetor Luís Silva, então foi porque assim foi deixado desde as 8H15 às 16H40", o mesmo "raciocínio lógico-dedutivo" se não aplicará a Cristina Gatões? Não teria a diretora nacional do SEF, como de resto qualquer pessoa que lesse o RO, de concluir que o detido Ihor Homeniuk ficara algemado, de mãos atrás das costas, pelo menos oito horas seguidas?

Recorde-se que o facto de Ihor ter ficado algemado tantas horas nessa posição é apontado como uma das causas da sua morte; e que, diz a acusação para justificar a imputação aos inspetores Cecília Vieira e João Agostinho do crime de homicídio negligente por omissão, a formação ministrada aos membros do SEF torna claro que existe o risco de asfixia nessas circunstâncias. Logo, Cristina Gatões, que afirmou à IGAI ter "lido o RO um milhão de vezes" não podia pelo menos não reparar que faltava ali o reporte do momento da desalgemagem. Como não podia ignorar que deixar alguém algemado tanto tempo constituía uma violação das normas do SEF, o que implicaria sempre ordenar um inquérito disciplinar. Tendo a pessoa algemada morrido, estava-se sem dúvida perante um comportamento criminoso.

Ainda assim, a conclusão do procurador Óscar Ferreira foi de que Cristina Gatões não podia "formular um juízo, ainda que indiciário, de que a morte de Ihor tivesse como causa comportamentos violadores de bens pessoais, imputáveis aos inspetores do SEF e/ou aos vigilantes que naquele dia 12 de março de 2020 prestaram serviço".

Esta conclusão baseia-se no facto de a informação que foi dada à então diretora nacional pelo diretor de Fronteiras de Lisboa "proveniente de António Sérgio Henriques atribuía a morte a uma crise convulsiva e ocultava que Ihor estivera algemado com as mãos atrás das costas, pernas imobilizadas e deitado num colchão entre as 08H40 e as 16H40, ou seja cerca de oito horas."

Sucede que Cristina Gatões não comunicou de imediato a morte de Ihor à IGAI. Só o fez - é a própria que o afirma - depois de ter acesso ao RO e de o ler. E dificilmente poderia lê-lo sem "formular o juízo indiciário" de que a morte de Ihor tivera por causa comportamentos violadores de bens pessoais.

Óscar Ferreira, como já referido, não entendeu assim. Apesar de no despacho de acusação admitir que ponderou constituir a ex-diretora nacional do SEF arguida pelo crime de denegação de justiça e prevaricação por não ter, como a lei determina, comunicado de imediato a morte de Ihor à IGAI, decidiu não o fazer. "Porque as suspeitas não se revelaram fundadas, não foi Cristina Isabel Gatões Batista constituída como arguida", lê-se no despacho.

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