Procuradora foi alertada para que corpo de Ihor "estava um bocado maltratado". Mas nada fez

A revelação da procuradora do DIAP Alexandra Catatau de que teria sido informada por um inspetor do SEF de que o corpo de Ihor "estava um bocado maltratado" devido a uma "altercação" que tinha havido no Centro de Instalação não suscitou perguntas ao tribunal.

Alexandra Catatau era a procuradora de turno no Departamento de Investigação Criminal (DIAP) no dia 12 de março de 2020 e o seu testemunho em tribunal podia ser uma peça chave para esclarecer o momento exato e os termos em que a morte de Ihor Homeniuk foi comunicada às autoridades. Mas isso não aconteceu porque ninguém no tribunal, coletivo de juízes, advogados e Ministério Público, perguntou.

Na sessão desta quarta-feira do julgamento dos três inspetores do SEF acusados do homicídio de Ihor, a procuradora revelou uma informação que deveria ter suscitado, no mínimo, algumas perguntas.

Segundo descreveu, nesse final de dia - não concretizou a hora - recebeu a chamada de um inspetor do SEF do aeroporto de Lisboa "a comunicar que um senhor tinha falecido naquelas instalações devido a doença epilética, dando conta de que tinha sido assistido antes no hospital por causa disso".

Sem ser interrompida, designadamente para precisar a hora desse telefonema, acrescentou: "Lembro-me de que o inspetor disse ainda 'cuidado que este senhor está um bocado maltratado' e foi-me dito que tinha havido uma altercação durante a sua estadia no CIT e que houve necessidade de o conter".

Alexandra Catatau garantiu ao coletivo de juízes que terá dito ao inspetor em causa que essa informação "deveria constar no expediente para o DIAP".

O óbito de Ihor foi declarado às 18h40 por um médico do INEM e, apesar deste telefonema - cuja hora ninguém no tribunal quis saber e que ao DN Alexandra Catatau disse não recordar, recusando qualquer esclarecimento adicional mas assegurando que o que interessa é o que ficou nos autos, no expediente (ou seja a comunicação formal, escrita) - apenas foi comunicado por escrito ao DIAP, com pedido formal de remoção de cadáver, às 21h59 do dia 12 de março, mais de três horas depois da morte. No email, subscrito pelo inspetor Ricardo Giriante, lia-se, na justificação do óbito, "por ter sido acometido de doença súbita", sem qualquer referência ao estado do cadáver ou à dita "altercação".

Giriante, que depôs em tribunal antes de Catatau, não referiu a alegada informação dada à procuradora sobre o o corpo estar "maltratado". Confrontado pelo DN com as declarações de Alexandra Catatau, recusou-se a comentar.

Recorde-se que na denúncia anónima que a 14 de março desencadeou, juntamente com o alerta do perito médico que fez a autópsia, a investigação da Polícia Judiciária (PJ), a descrição ia muito além do mau trato, descrevendo a tentativa de encobrimento que também viria a ser a conclusão do inquérito da Inspeção-Geral da Administração Interna, incriminando 11 inspetores, além dos três acusados.

"Foi registado óbito por causas naturais, quando era óbvio que o homem estava todo amassado na cara e com escoriações nos braços", depois de ter sido agredido "a murro, pontapé e bastão (...), deitado no chão e algemado com as mãos atrás das costas até ficarem roxas (...) colocado de barriga para baixo e em posição inclinada, com a cabeça para baixo", posto o que "teve convulsões e urinou-se", vindo "a falecer", foi escrito na citada denúncia.

Segundo um relatório citado pela IGAI, subscrito pelos inspetores que estão a ser julgados, Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva, "o estado do passageiro é descrito como violento e agressivo, com movimentos descontrolados, agindo contra si próprio (lançando-se de cabeça contra a parede e contra a parte inferior da sanita) e, já depois de algemado, contra os inspetores, que terá agredido e pontapeado. Alegam ter sido necessário proceder à colocação de algemas médicas nos tornozelos e terem colocado o cidadão em posição de segurança, em cima de um colchão, não obstante referirem que "depois de manietado o passageiro acalmou, mostrou-se colaborante e cessou a agressividade."

Perante a informação de que um cidadão tinha o corpo "maltratado" na sequência de "altercações" sob custódia da polícia, devia Alexandra Catatau ter tomado alguma medida, antes de autorizar a remoção do cadáver?

A Lei 45/2004, que regula estes procedimentos, especifica que em caso de óbito "fora de instituições de saúde" a autoridade policial que toma conta da ocorrência deve "inspecionar e preservar o local" e "comunicar o facto, no mais curto prazo, à autoridade judiciária competente, relatando-lhe os dados relevantes para averiguação da causa e das circunstâncias da morte que tiver apurado".

Como se sabe nada disto foi feito, pois a PJ só começou a investigar depois de ter recebido a denúncia e o alerta do perito médico e nessa altura nada no local da morte estava preservado, impedindo as perícias forenses de recolher vestígios.

A IGAI, à qual o SEF seria obrigado a informar "imediatamente" sobre o óbito (de acordo com o despacho 5863/2015, a comunicação deve ser-lhe feita na mesma altura que ao Ministério Público), só foi notificada deste a 18, e com a versão da "morte natural/doença súbita" - a mesma que tinha sido fornecida pelo SEF ao Ministério Público.

O que se procurou "inequivocamente", sublinhou a IGAI nas conclusões do seu inquérito, foi "dar consistência à versão da causa de morte natural" - a "doença súbita" reportada nesse mesmo dia ao MP, para dele obter autorização de remoção do cadáver.

Como é já sabido, o corpo (que de acordo com o relatório preliminar da autópsia, efetuada a 13 de março, apresentava vários sinais de violência, levando o médico-legista a notificar a PJ de que suspeitava de crime) só daria entrada no Instituto de Medicina Legal às 22.32 - quase cinco horas depois da morte declarada - e o formulário de entrada dizia que era "proveniente da via pública".

O evidente facilitismo do MP nesta situação enquadra-se naquilo a que o penalista Saragoça da Matta caracterizou ao DN com "uma justiça baseada em papéis e não na vida real". Ao ser contactado pelo SEF reportando a ocorrência de uma morte em custódia, o MP teria, crê este advogado, de se deslocar ao local e ajuizar por si se o corpo podia ser removido ou tinha de haver investigação.

"Se alguém tivesse ido lá perceberia logo que algo estava errado. Tem de existir controlo - não pode haver presunção de legalidade e verdade porque se trata da polícia", conclui este jurista, que presidiu à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.

Nota: texto alterado às 15.47 de 26 de março, para acrescentar a informação sobre o facto de a procuradora Alexandra Catatau ter dito ao jornal não se lembrar da hora a que recebeu o telefonema do inspetor Ricardo Giriante.

(com Fernanda Câncio)

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