Arquivado processo contra médico que não viu sinais de violência; enfermeiro ainda aguarda decisão

A Ordem dos Médicos concluiu que não há "indícios de erro censurável, negligência ou má prática" na conduta do clínico que atestou a morte e nada assinalou de suspeito. Ordem dos Enfermeiros ainda está a "instruir" o processo que instaurou a enfermeiro que viu Ihor manietado com fita-cola e demonstrando receio de agressões e nada fez.
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Um médico que socorreu e viu morrer um homem sob custódia policial, não valorizando o facto de este ter "hematomas na face", não reparando nos "diversos hematomas por todo o corpo", anotados por uma enfermeira que o assistiu na mesma altura, e escrevendo "paragem cardiorrespiratória na sequência de crise convulsiva" no documento em que atestou a morte. Descrição que permitiria à polícia (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras /SEF), em cuja custódia estava o morto, tratar o óbito como "morte natural" e comunicá-lo assim ao Ministério Público e à tutela. A etiologia criminosa da morte, pela qual viriam a ser condenados três inspetores do SEF, só seria sinalizada pela autópsia e por uma denúncia anónima.

Um enfermeiro que horas antes assistiu o mesmo detido, constatando que este estava manietado com fita adesiva, não havia sido medicado como prescrito, e que de cada vez que alguém se aproximava erguia os braços para proteger a face "como se tivesse medo de algo", mas abandonou o local sem se certificar de que era solto e corretamente medicado e sem denunciar o que vira, optando também por não o registar no seu relatório.

Estas duas condutas, protagonizadas por um médico do Instituto Nacional de Emergência Médica e por um enfermeiro ao serviço da Cruz Vermelha Portuguesa, tendo como objeto Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano que a 12 de março de 2020 morreu no centro de detenção do SEF, levaram as ordens profissionais respetivas a instaurar inquéritos disciplinares.

Porém, passados mais de dois anos sobre a morte, o processo disciplinar que a bastonária Ana Rita Cavaco anunciou, em dezembro desse ano, ter sido instaurado ao enfermeiro em causa continua "em fase de instrução".

É a informação prestada ao DN, após insistência, pela Ordem dos Enfermeiros (OE): o processo está "em tramitação de acordo com os prazos previstos no regulamento disciplinar da OE, razão pela qual não está terminado e, como tal, não há ainda qualquer decisão a comunicar."

Já a Ordem dos Médicos (OM) foi mais rápida: o médico em causa viu arquivado, em abril de 2021, o "processo de averiguação sumária" que lhe fora aberto na sequência de uma participação da inspetora-geral da Administração Interna, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, no seguimento do inquérito da entidade que dirige à morte de Ihor. Na conclusão do referido processo, a cujo relatório o DN teve acesso, e que é assinada por Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar do Sul da OM, assegura-se que o clínico fez tudo de acordo com as regras: "Não se vislumbram quaisquer indícios de erro censurável, negligência ou má prática médica (...)."

"O médico (...) que declarou o óbito (...) fez constar como causa da morte "paragem cardiorrespiratória"", asserção que "veio a ser infirmada de forma muito expressiva pelo relatório da autópsia", enquanto que nas "fotografias efetuadas por altura da autópsia (...) são visíveis marcas evidentes de aparente violência."

Esta é a súmula da participação feita pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGA) à OM.
Na sua defesa escrita perante a Ordem, constante no relatório do processo, o médico reconhece ter notado uma lesão no rosto de Ihor e não a ter valorizado. Já dos restantes hematomas, que, como é visível nas fotos da autópsia, existiam por todo o corpo do cidadão ucraniano, não se terá dado conta.

"Na verificação do óbito não foi descrita a lesão supraciliar por não ter sido considerada fundamental à continuação dos trâmites habituais", diz o clínico. "Todas as restantes lesões, de tom violáceo [evidentes nas imagens da autópsia], encontravam-se, no momento em que contactou com a vítima, não só menos evidentes, tendo em conta o estado geral de cianose [cor azulada da pele devido a oxigenação insuficiente] e hipoperfusão [baixa irrigação sanguínea, devida à paragem cardíaca], como muitas cobertas pelo vestuário - nomeadamente no que refere aos membros inferiores. (...) As lesões descritas foram (...) enquadradas como livores (...)."

Esta descrição choca quer com a da enfermeira da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) que, estando de serviço no aeroporto na tarde de 12 de março de 2020, foi chamada para socorrer Ihor e, considerando o seu estado grave, ligou para o INEM, quer com a da socorrista que acompanhou a primeira. Ambas chegaram junto de Ihor pelas 17H21 - cerca de 56 minutos antes de a equipa da viatura médica de emergência e reanimação (VMER), chefiada pelo médico em questão, fazer a tentativa de reanimação final (Ihor estaria em paragem cardiorrespiratória desde as 17H50).

Aliás, a descrição feita pelo médico choca até com a do inspetor do SEF que, naquela noite, ligou para o Ministério Público (MP) para dar conhecimento da morte (obrigação legal por parte das autoridades policiais quando ocorre um óbito em custódia). "O homem está um bocado maltratado", terá dito à procuradora Alexandra Catatau, segundo o depoimento desta em tribunal.

"Um bocado maltratado" soa a eufemismo face ao que escreveu a enfermeira no seu relatório da ocorrência, constante no processo criminal (ao qual a Ordem dos Médicos não terá tido acesso): "(...) com diversos hematomas ao longo de todo o corpo, com um cheiro nauseabundo, sem solução de continuidade visível na cabeça e face." Informação que repete no seu depoimento perante a Polícia Judiciária (PJ), em março de 2020, acrescentando que quando viu Ihor este estava de Tshirt e cuecas (a tshirt terá sido cortada depois para se proceder à reanimação).

Também a socorrista que a acompanhava refere à PJ que Ihor tinha "as calças ao nível dos joelhos", "diversos hematomas" e "incontinência do esfíncter".

A enfermeira refere igualmente à PJ algo que não escreveu na "descrição da ocorrência": quando a equipa da CVP chegou, Ihor tinha as mãos imobilizadas atrás das costas, ou seja, estava algemado. É só nessa altura que os inspetores do SEF no local o soltam.

As algemas, que, sabemos, tinham sido colocadas cerca das 8H30 da manhã (pelos três inspetores entretanto condenados pela morte), terão assim sido retiradas praticamente nove horas depois - um facto que a autópsia considera ter sido concausa - juntamente com fraturas das costelas causadas por agressões, e das quais o médico tabém não se deu conta - da morte por asfixia. Mas, de acordo com a súmula do seu depoimento na PJ, a enfermeira não foi questionada sobre se tinha perguntado há quanto tempo estava o homem algemado, nem se comunicou ao médico tê-lo encontrado assim. Já este último nunca faz qualquer referência às marcas que as algemas teriam deixado nos pulsos.

"É uma situação complicada", terá, de acordo com o constante no resumo do seu depoimento à PJ, respondido a enfermeira quando lhe foi perguntado se considerava que Ihor tinha sido agredido.

Mas o médico assegura que em momento algum foi "informado da possibilidade de agressão, quer pelos agentes de autoridade, quer por qualquer dos cinco profissionais de saúde [a equipa da Cruz Vermelha e uma outra equipa do INEM que chegou antes] já presentes no local. (...) Na colheita da história clínica não foi mencionada a possibilidade de agressão, pelo que, dado o contexto da situação emergente, não foram procuradas ativamente outras lesões."

Significa tal que, apesar de ter notado hematomas por todo o corpo, a equipa da Cruz Vermelha nada disse sobre isso ao médico? Por achar que ele os vira, ou por outra razão? Este, que garante ter "alertado para a necessidade, junto da autoridade no local, de o cadáver ser transportado para o Instituto de Medicina Legal para ser submetido a autópsia médico-legal", diz terem estado sempre no local elementos do SEF e da PSP - o que indica que a "colheita da história clínica" junto dos outros profissionais de saúde terá ocorrido na presença de responsáveis da polícia sob a custódia da qual se deu a morte, e que seria, a terem ocorrido agressões, portanto, responsável pelas mesmas.

A outra vertente da defesa do médico face à participação da IGAI é a natureza do documento que assinou: trata-se, explica, de uma verificação e não de uma certidão de óbito.

Citando a lei nº 141/99 de 28 de agosto (Verificação da morte), esclarece que, ao contrário da certidão de óbito, a verificação "não tem o objetivo de determinar a causa": "Em momento algum foi assumido pelo signatário que existisse informação suficiente para determinar a causa da morte, fosse de índole criminosa ou não, pelo que foram seguida as demais diligências necessárias à sua averiguação, com a subsequente realização de autópsia médico-legal".

E prossegue: "Mesmo em termos médicos e de acordo com o constante do Manual de Procedimentos do INEM, "a verificação de óbito destina-se a estabelecer com segurança que um determinado indivíduo está morto (...)". Ademais, paragem cardiorrespiratória corresponde ao culminar de processos fisiopatológicos que levam à cessação de atividade cardiovascular e respiratória. (...) Excetuando o que se encontra definido como morte cerebral, todos os determinantes de morte condicionam paragem cardiorrespiratória, não podendo ser esta considerada, em qualquer circunstância, a causa da morte, mas antes a consequência de possíveis causas (...).

Resulta que não só não foi, pelo signatário, declarada qualquer causa de morte, como que a causa de morte não é, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista médico, determinada pela Verificação do Óbito."
Sobre se escrever "paragem cardiorrespiratória na sequência de crise convulsiva" indicia ou não ter sido a "crise convulsiva" a causar a morte o clínico não elabora. Em todo o caso, o parecer do Colégio da Competência em Emergência Médica da OM dá-lhe razão: "Em nenhum momento o visado escreve "causas naturais" ou descarta qualquer hipótese diagnóstica, limitando-se a descrever a paragem cardiorrespiratória. (...) A afirmação da inspetora-geral da Administração Interna (...) de que a conclusão de morte por paragem cardiorrespiratória terá sido "infirmada" de forma muito expressiva pelo relatório da autópsia, não corresponde aos factos. Paragem cardiorrespiratória é sempre a causa final e não pode ser interpretado como sinónimo de "morte natural", ou "morte súbita". (...) Perante estes factos, não conseguimos apurar qualquer anomalia técnica, ética ou deontológica na atuação do colega. (...) Em conclusão (...) a atuação (...) foi pautada de profissionalismo, rigor e seguiu o estado da arte."

Considerando o parecer e as explicações do médico "detalhadas, razoáveis e convincentes", a relatora do processo propôs o arquivamento.

Como mencionado, a Ordem dos Enfermeiros ainda está a instruir um processo relativo ao caso Ihor, tendo como objeto um enfermeiro da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). Quanto à enfermeira que viu o cidadão ucraniano morrer, não foi aberta, que se saiba, qualquer averiguação - nem pela Ordem nem pela Cruz Vermelha, que, de acordo com informação recolhida pelo DN, também não o fez no caso do enfermeiro.
Este foi chamado na madrugada de 12 de março para assistir Ihor Homeniuk por iniciativa de um inspetor do SEF que, deparando-se com o detido com uma escoriação no rosto, deu indicação aos vigilantes da Prestibel, empresa de segurança contratada por aquela polícia para fazer a gestão do local, para chamarem a Cruz Vermelha.

O profissional de saúde compareceu no centro de detenção à 1H32, acompanhado de uma socorrista (não a mesma que viria a assistir o detido pouco antes de morrer). Ihor estava já nessa altura na divisão onde se deu o óbito, separado dos outros detidos, como ele, estrangeiros não admitidos em território nacional.

De acordo com o depoimento à PJ, prestado logo em março de 2020, o enfermeiro encontrou o cidadão ucraniano com escoriações no lado direito da face e "vestido, com a manga do casaco descosida". Verificou que, dos três medicamentos que haviam sido prescritos a Ihor quando foi assistido no Hospital de Santa Maria (na sequência de um desmaio/convulsão que o acometera a 10 de março, dia da sua chegada a Portugal), só dois estavam a ser ministrados; o terceiro não fora sequer adquirido pelo SEF. E que "quando se aproximou para lhe dar a medicação" o detido "levantou os braços para proteger a face como se tivesse medo de algo", "repetindo o comportamento sempre que alguém dava um passo na sua direção."

Esta atitude do detido, indiciando um medo de ser agredido que podia resultar de agressões - ou de ameaças nesse sentido - prévias, não suscitou ao enfermeiro qualquer ação. Limitou-se, segundo o depoimento citado, a chamar a atenção para o facto de o medicamento em falta, que visava controlar sintomas de abstinência alcoólica, ser "essencial para ele se manter calmo", devendo assim Ihor Homeniuk ser conduzido ao hospital para ser medicado.

Ausentou-se algum tempo e ao voltar deparou-se com o cidadão ucraniano manietado com fita-cola. Perante isso, entregou aos seguranças "ligaduras de algodão, por serem maleáveis", para que as colocassem em vez da fita-cola. E narra ter dito "não fazer sentido manietarem assim o indivíduo quando o deviam levar ao hospital."
À IGAI, quando foi por esta inquirido, referiu ainda ter alertado os vigilantes "para a utilização indevida daquele material [fica-cola], suscetível de funcionar como "garrote" e cortar a circulação sanguínea". No seu relatório, a IGAI caracteriza o uso de fita-cola para manietar como "tortura".

Mas o enfermeiro não só não reagiu como quem se dá conta de estar perante um crime - o MP constituiu arguidos, em 2021, os seguranças que manietaram Ihor; o processo está ainda em investigação - como até colaborou no mesmo ao fornecer ligaduras para o efeito.Também a socorrista que acompanhava o enfermeiro testemunhou o manietar de Ihor: disse à PJ que a dada altura foi fumar um cigarro e ao regressar para junto do cidadão ucraniano "lhe tinham amarrado pés e mãos com fita-cola castanha", referindo que nessa altura "estavam lá o enfermeiro e os seguranças." Afirma também que Ihor "não estava agressivo".

Não existe evidência de que qualquer dos dois - socorrista e enfermeiro - tenham feito alguma comunicação ou denúncia às autoridades sobre o que viram. Aliás, o enfermeiro, que abandonou Ihor e o centro de detenção pouco antes das três da manhã, não fez no seu relatório da ocorrência qualquer menção quer a ter visto Ihor manietado, quer aos sinais de que este temia ser agredido. Também não registou a falta do medicamento, nem o facto de considerar que o homem deveria ser conduzido ao hospital.

"Não podemos deixar de referir a censurabilidade do comportamento do enfermeiro", escreve a IGAI no seu relatório sobre a morte, concluindo que o profissional de saúde "considerou razoável que o cidadão se mantivesse, pelo menos sete horas [os seguranças disseram-lhe que Ihor tinha voo de repatriamento marcado às 9 da manhã], manietado, sabendo que a sua agitação poderia advir da falta de medicação e que a utilização de fita adesiva, para a contenção física do cidadão, seria inadmissível."

Seria expectável, diz ainda a IGAI, "que o Enfermeiro, mesmo que não acionasse o INEM, comunicasse tal facto (a circunstância de se encontrar numa sala isolada um indivíduo manietado com fita adesiva) a um elemento do SEF ou de qualquer outra força e/ou serviço de segurança".

E inclui este profissional de saúde naquilo que descreve como "uma postura generalizada de desinteresse pela condição humana", que esta entidade considera ser transversal a vários tipos de pessoas que contactaram com Ihor Homeniuk e, apesar de conhecerem "o estado debilitado de saúde do cidadão e as dificuldades de comunicação que tinha", nada fizeram para o ajudar.

Uma descrição que choca com os deveres consignados no Código Deontológico de Enfermagem, o qual obriga os profissionais a "proteger e defender a pessoa humana das práticas que contrariem a lei, a ética ou o bem comum" e a "recusar a participação em qualquer forma de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante."

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