Em outubro, viralizou na rede social Instagram um vídeo do artista brasileiro Nouã, que vive em Portugal há nove anos, no qual enumera cinco motivos que o levam a decidir voltar para o Brasil. Entre eles estão a culpabilização dos imigrantes “por tudo”, os movimentos de extrema-direita e o facto de não conseguir arrendar uma casa, apenas um quarto. Nos comentários, vários outros imigrantes manifestam o mesmo sentimento. Muitos portugueses deixaram comentários na publicação em que relatam também estarem cansados do ambiente político e social do país. “Até eu, que sou portuguesa, estou farta desta conversa dos imigrantes, imagino você! Gostava que Portugal não estivesse como está… a vários níveis”, desabafa uma internauta.Nos últimos meses, cresce o número de pessoas a falar abertamente sobre o tema na internet e até a abandonar o país. Os dados oficiais confirmam-no: de acordo com dados da Segurança Social trabalhados pelo Banco de Portugal (BdP) para um estudo divulgado na semana passada, o número de trabalhadores imigrantes que sai de Portugal duplicou, passando de um ritmo mensal médio de 1,9 mil saídas em 2022 para 3,8 mil no ano passado. Neste Dia do Imigrante, o DN conversou com pessoas que efetivamente se foram embora de Portugal, todas com pontos em comum que pesam na decisão: dificuldades burocráticas na documentação, xenofobia, sentimento de “ambiente hostil”, elevado custo da habitação e mudanças nas leis para restringir a entrada de estrangeiros.O advogado José Carneiro Neto mudou-se para Portugal com a esposa há três anos, ambos com visto de rendimentos próprios. Após um ano e meio de planeamento, chegada e estabilidade profissional, o cenário alterou-se. “Quando finalmente conseguimos estabilizar e estabelecer-nos concretamente no país, acontece esta mudança completa de ambiente, com incertezas, alterações constantes de entendimento e legislativas, aumento do discurso anti-imigração e um ambiente hostil”, descreve ao DN. O casal decidiu mudar-se para Espanha, país que já visitavam com frequência e onde identificam um ambiente mais favorável, além de poder requerer a nacionalidade ao fim de dois anos. Em Portugal, o prazo aumentará de cinco para sete anos para nacionais de língua portuguesa e dez para os demais..Radiografia de 500 dias na mudança da política migratória em Portugal .Enquanto advogado, o brasileiro antevê que “a tendência é que cada vez mais os imigrantes em Portugal se sintam obrigados a deixar o país”. Chama também a atenção para os excessos burocráticos impostos pelo Governo, mesmo para quem chega com visto. “Há dificuldades até para quem vem legalmente com visto ou já tem autorização de residência e está a tentar renovar. Existem também mudanças que desmotivam completamente quem já vive uma luta diária noutro país, como, por exemplo, as limitações e restrições ao reagrupamento familiar”, observa. Segundo o advogado, intensificou-se a procura por consultas jurídicas relacionadas com a saída do país. “A cada dia que passa aumenta o número de pessoas que vivem em Portugal e me procuram interessadas em mudar para outros países, principalmente Espanha”, acrescenta.“Portugal torna-se um lugar um pouco hostil para o brasileiro”O jovem casal Aline e Diego Leite integra as estatísticas de quem saiu de Portugal. Apesar de não terem tido, desde o início, o plano de viver em Portugal para sempre, o aumento do discurso xenófobo foi um dos motivos para o regresso ao Brasil. “A mudança da lei e da política também motivaram o retorno, porque começamos a sentir no dia a dia, sobretudo nos trabalhos, discussões que antes não existiam sobre partidos políticos e imigração, de que nós, brasileiros, somos inferiores, somos isto, somos aquilo”, lamenta Diego Leite, que trabalhou na área da logística no norte do país.Diego refere que começou a perceber um “ambiente hostil” à sua volta. “O racismo também começou a acontecer, coisas que antes eram mais difíceis de ver. A escola pública já não é a mesma, os ambientes de rua também não são os mesmos, as cafetarias, os locais de trabalho, enfim, mesmo como turista, Portugal tornou-se um lugar um pouco hostil para o brasileiro”, enumera. Aline e Diego dizem conhecer outros casais no mesmo caminho de regresso e desaconselham viver em Portugal atualmente, a não ser em condições financeiras diferentes: “Eu digo: não vá na condição de trabalhador, a não ser que seja numa área de alta qualificação, com casa própria ou como empresário.”Nas redes sociais, o assunto do aumento da xenofobia é discutido diariamente. No entanto, é difícil ter estatísticas oficiais do fenómeno: a xenofobia não é efetivamente um crime em Portugal, logo não existem dados. Já a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), que tinha relatórios anuais, não está mais ativa na prática. O tema da xenofobia esteve na cimeira entre Brasil e Portugal em fevereiro, com a declaração final a citar um compromisso dos países em combater estes crimes.Burocracia difícil de vencerMas não são apenas os imigrantes que estão há vários anos em Portugal que decidem ir embora. As mudanças recentes na legislação e nos procedimentos burocráticos também afastam trabalhadores que chegam ao país com visto. Uma delas foi a alteração da regra para a obtenção do Número de Identificação da Segurança Social (NISS). Até ao verão de 2024, era possível fazer o pedido online. Depois, o Governo passou a exigir a existência prévia de um contrato de trabalho para a solicitação. Trata-se da conhecida “pescadinha de rabo na boca”: para obter o NISS é necessário ter contrato de trabalho, mas para ter contrato de trabalho é preciso ter NISS. O DN/DN Brasil acompanha a situação há vários meses, tendo o Governo respondido que os empregadores podem solicitar o NISS para os seus trabalhadores e até fez apelos públicos neste sentido, mas em vão. Uma parte dos empresários recusa-se a fazê-lo. Foi o que aconteceu com um casal de brasileiros que chegou a Portugal com um visto de procura de trabalho em julho. De acordo com o relato publicado no Instagram, onde partilham toda a rotina no novo país, a impossibilidade de obter o NISS paralisou toda a vida em Portugal, pondo fim, em poucos meses, ao sonho de aqui viver. O casal assegura ter perdido mais de 40 ofertas de emprego devido à falta do documento. “Sem contrato de trabalho não se consegue arrendar uma casa ou apartamento, além de outras questões de documentação que estão ligadas ao NISS”, explicou a brasileira. Apesar de reconhecerem que também são felizes com a experiência, concluem que não é o momento certo para se mudarem para Portugal, mesmo com visto. “Viemos num momento em que estão a fechar a imigração no país, a dificultar os documentos, e mesmo que se venha com visto, as dificuldades burocráticas empurram-nos para a ilegalidade, que acaba por ser a única forma de o sistema funcionar. Para nós, toda esta situação não combina com a fase que estamos a viver. Viemos para viver algo novo, mas sempre atentos aos sinais de Deus para nós”, conta a brasileira.Voltando ao relatório do BdP, olhando para cada mês, percebe-se que o abandono do país aumentou sobretudo a partir de junho de 2024. Foi quando o Governo lançou o primeiro pacote de medidas para regular a imigração e acabar com o que dizia ser um regime de “porta aberta”, segundo as palavras usadas pelo ministro da Presidência, António Leitão Amaro. O DN sabe que uma possível falta de mão de obra não preocupa o Governo. A aposta do Executivo de Luís Montenegro é de que os imigrantes vão continuar a procurar Portugal para trabalhar, mas de forma “regulada”, como é a atual política. No entanto, pelo caso ilustrado da dificuldade de acesso ao NISS, mesmo quem chega com visto enfrenta dificuldades. O visto de procura de trabalho foi extinto nos moldes em que existia e será somente para trabalhadores “altamente qualificados”. Por enquanto, a lista destes profissionais, que será definida por portaria entre vários ministérios, ainda não foi divulgada, devendo ficar para 2026.amanda.lima@dn.pt.AIMA: dois anos à procura de um rumo e de como comunicar com os imigrantes.Consulado do Brasil em Lisboa planeja campanha contra a xenofobia