O sol ainda está alto, são 17h00 e os primeiros imigrantes começam a chegar à Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) dos Anjos, a única loja de Lisboa que atende os cidadãos sem marcação - contrariando a Resolução do Conselho de Ministros n.º 86/2024, que obriga “um horário de atendimento ao público presencial, sem necessidade de marcação prévia, com frequência diária”. Os cidadãos que se instalam no passeio anotam os nomes num papel, em ordem de chegada. Por volta das 21h00 já são mais de 70 pessoas, com nomes que mostram uma diversidade de origens. É importante ressalvar que, nesta noite, o desespero dos imigrantes era maior: acabara o decreto-lei que reconhecia os documentos caducados como válidos, mas todas as noites as pessoas dormem na fila enquanto esperam um atendimento presencial, perante a falta de comunicação com a agência. O DN praticamente passou a madrugada no local, e além de conversar com imigrantes em outros locais, também contactou funcionários e ex-funcionários para perceber o que muitos querem saber: dois anos depois, porque a agência não funciona como foi planeada? Na fila, os imigrantes levam caixas de cartão - alguns vão buscar ao outro lado da rua as deixadas na noite anterior - trazem consigo também mantas para o frio da madrugada, comida, água. Muitos conversam durante horas por chamadas de vídeo com os parentes que estão longe. Os sons dos sotaques misturam-se. É o caso de um paquistanês, que trabalha com tecnologia em Portugal e precisa do título de residência para visitar a mãe, que está “muito doente”. Diz ao DN que “todos os dias” a mãe pergunta quando o filho irá visitá-la e implora “por favor venha”. O cidadão em causa, de 29 anos, que prefere manter o anonimato, fez a entrevista na Estrutura de Missão em Lisboa no início de janeiro - após esperar dois anos para ser chamado - mas até hoje não recebeu o cartão. “Já conheci outro imigrante que a mãe morreu e ele não pode ir nem ao funeral, tenho medo que aconteça o mesmo com a minha mãe”, desabafa, ao mostrar as fotos da idosa no telemóvel. O especialista em tecnologia afirma “não entender” porque não existe uma app ou uma forma de comunicação com a agência. Frise-se que o presidente da AIMA, Pedro Portugal Gaspar, recusou um pedido de entrevista para este reportagem, bem como responder perguntas por e-mail.A dificuldade em obter informações é recorrente nas conversas noite dentro mesmo entre os imigrantes que não percebem nada de sistemas informáticos. Estas pessoas possuem histórias semelhantes e ali estão por um objetivo comum: obter informações. Hoje, aniversário de dois anos da AIMA, que veio substituir o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a agência não conseguiu implementar um sistema eficaz de comunicação com os mais de 1,5 milhões de imigrantes que vivem no país com título de residência, comunicação esta que torna-se mais essencial quando os prazos não são cumpridos, como a renovação do título de residência em 60 dias úteis e 90 dias úteis para o primeiro título, com o agravante de fiscalizações policiais cada vez mais recorrentes e acentuadas..Ao redor do passeio, a vida segue normal: casais passeiam de mãos dadas, turistas olham com curiosidade, outros pedem passagem para entrar num pequeno hotel na mesma rua, onde a porta está sempre obstruída por imigrantes. Além de terem escolhido Portugal para viver, estas pessoas têm mais algo em comum: tentaram falar com a AIMA por telefone, por e-mail e por carta registada, alguns até contrataram advogados. Nada surtiu efeito, restando como única opção ir aos Anjos procurar respostas. Ninguém está ali porque acha interessante não dormir em casa por uma noite. As respostas que procuram, por exemplo, são “porque o meu cartão ainda não chegou, se eu recolhi os dados biométricos há meses?”, como é o caso do jovem paquistanês já citado neste texto. Ou “paguei a taxa de reagrupamento familiar em janeiro e nunca fui chamado”. E ainda as renovações, o temor do imigrante em ficar irregular e perder o emprego ou ser abordado pela polícia. A brasileira Jackeline Rezende, que vive e trabalha como barista em Portugal há seis anos, está com o título de residência vencido e nunca foi chamada, apesar de ter feito o pedido “dezenas de vezes”. Como “ninguém atende” ou responde aos e-mails, utilizou a noite de folga para ir até o local, porque precisa do documento em dia. Comprou um banco de 12,50 euros para passar a noite e reflete que “sente saudades do SEF”, quando as renovações eram online e o sistema funcionava. Há ainda coisas ainda mais simples para resolver, como atualização dos dados para dar sequência no processo. Foi o caso do angolano Cesar Pedro, sentado ao lado da porta, com o pé imobilizado, porque sofreu um acidente de trabalho. “Pareço um camelo aqui”, brinca, mantendo o bom humor apesar da dor no pé..A noite demora a passar e dormir um sono profundo é arriscado. A cada duas horas, é feita uma “chamada” aos nomes da lista, para ver se ali estão ou se foram dormir. Quem não fica na fila, perde a vez. Não são incomuns brigas e confusões durante a noite entre os “organizadores de fila”, mas especialmente na hora da entrada na loja. O dia amanhece, muitos não dormiram. É o caso de Vilma Lira, que trabalhou até à 1h00 da madrugada (é condutora de autocarros no Montijo) e foi para a fila, onde um amigo já guardava o lugar desde 19h00. Por ter um cartão de residente europeia (tem cidadania italiana), o sistema não permite a renovação do documento caducado em agosto. O medo é de ser abordada pela Polícia de Segurança Pública (PSP) e estar sem o documento em dia, além da cobrança no emprego. “Eu mandei vários e-mails, mas nem chegam, logo vem a resposta automática que a caixa está lotada”. O e-mail em causa é o geral@aima.gov.pt, o qual todo imigrante sabe sem precisar procurar no site. Quando as senhas começam a ser distribuídas às 8h00 os atendimentos começam e também a confusão sobre a ordem da fila e a frustração por ter esperado em vão. “Po##a, não consigo fazer nada com o meu cartão caducado, patrão a cobrar, melhor nos mandarem embora de uma vez”, grita um imigrante.Esta frustração vem de segundo problema recorrente, aliado à falta de um meio para contatar a AIMA: desde a criação da agência os processos dos imigrantes estão fragmentados em várias bases de dados, sendo que algumas lojas têm acesso, outras não. Justamente onde os imigrantes podem ir sem marcação, nem todas as informações estão disponíveis aos funcionários ou são vazias como “aguarde, processo em análise”, sem previsão, mesmo que o tempo legal já passado há muito.Estas respostas são dadas mesmo aos advogados, que precisam chegar por volta das 5h30 da madrugada para garantir uma das 20 senhas diárias, sendo que cada profissional pode consultar apenas três processos. No caso dos processos da Estrutura de Missão, por exemplo, nenhuma loja da AIMA no país tem acesso, nem o centro de contacto telefónico. Em resumo, é praticamente impossível conseguir uma informação e resta esperar, com a vida em suspenso e prejuízos.É o caso da imigrante Lúcia de Jesus, que chegou com a mãe, idosa e debilitada, numa cadeira de rodas. Saiu de autocarro da cidade de Leiria de madrugada, com dificuldades para carregar a mãe sem mobilidade. Já foi em outras lojas AIMA mas não foi atendida por não ter marcação, tentou ligar e mandar e-mail, mas não obteve resposta. .Seu objetivo é fazer o reagrupamento da idosa, que veio visitá-la e adoeceu, recebendo a orientação médica se cá ficar. No entanto, sem estar com o título de residência, fica com direitos limitados e a filha precisa gastar a mais pela não comparticipação de remédios, ambulância, tratamentos e consultas. “Preciso muito reagrupar a minha mãe, tive que sair do meu emprego para cuidá-la”, conta. Por ser idosa, teve prioridade na entrada da loja, mas o atendimento foi rápido e frustrante. “Disseram que cá não podem fazer nada, me mandaram ir para uma associação de imigrantes em Queluz que eles podem conseguir fazer a marcação, que aqui não fazem anda, sendo que aqui é o único lugar que atendem sem marcação, nos mandam de um lado para o outro”, conta ao DN, nervosa. Após o relato, faz a simulação de quanto custa um TVDE para ir até a associação, porque já não tem forças para apanhar um transporte público com a mãe na cadeira de rodas e ambas sem dormir.Morte lentaPara tentar perceber porque em dois anos a agência ainda não consegue funcionar de forma eficaz, o DN conversou com vários funcionários da AIMA, antigos e novos, alguns que estiveram no antigo SEF. É unânime a opinião de que a forma como o SEF foi encerrado, “em morte lenta”, está na base do problema. Ao DN, a Associação para Memória Futura (PMF), formada por ex e atuais funcionários, avalia a AIMA de forma negativa. “A nossa avaliação sobre o seu desempenho é negativo. Abundam as chefias, em número bastante superior ao que o SEF tinha, com fragilidades técnicas para liderar um serviço com competências específicas e, sobretudo, um desconhecimento holístico sobre a matéria”. Como resultado, frisa que resulta numa “ falta de capacitação em resolver os muitos problemas que, contrariamente ao invocado por muitos, suscitam interligações com matérias de natureza policial e necessidades de fiscalização prévia à tomada de decisão sobre os pedidos de regularização documental”. A associação vê a AIMA sem rumo. “Se à partida poderíamos dizer que seria difícil a sua substituição, arriscamos dizer que o resultado da sua extinção foi ainda pior do que o receado - passados dois anos, assiste-se ainda a um desnorte e impreparação difíceis de avaliar”, diz..Para Manuela Niza Ribeiro, funcionária do então SEF desde 2007 e presidente do Sindicato dos Técnicos de Migração, ironiza que pode haver uma teoria da conspiração por trás de tudo. “Se eu fosse adepta da teoria da conspiração, diria que a AIMA, quando foi criada, foi criada para não funcionar”, começa por dizer.Segundo a profissional, estes dois anos precisam ser divididos em duas etapas: o primeiro e o segundo conselho diretivo. “Eu penso que o primeiro conselho diretivo foi desafortunado, porque não teve tempo. Não é possível para um conselho diretivo pegar uma organização com todas as questões que estiveram na base da sua génese e, num ano, poder desenvolver seja que trabalho for”. Ao mesmo tempo, reconhece que havia uma linha de trabalho para ser seguida. “Isto é importante que se diga, ter havido naquele ano o delinear de linhas muito concretas e de objetivos que se queriam para a organização”, avalia. O segundo momento é o segundo conselho, no verão passado, quando saiu Luís Goes Pinheiro para coordenar a Estrutura de Missão e entrou Pedro Portugal Gaspar, com algumas “baixas” pelo caminho. Três vogais decidiram sair antes de terminar o mandato e apenas duas destas vagas foram substituídas recentemente. “O conselho começou a desfazer-se e isto preocupa muito, porque significa que algo vai mal”, analisa. A sindicalista afirma que não consegue avaliar a direção da AIMA, porque “ainda não viu trabalho para ser avaliado”. O sindicato teve apenas uma reunião com Pedro Portugal Gaspar. “E não pedimos mais, sinceramente vimos que não levaria a lado nenhum”, explica. Por outro lado, o sindicato já reuniu-se três vezes com Rui Armindo Freitas, secretário de Estado das Migrações. “Com o senhor secretário de Estado, as nossas reuniões foram sempre muito mais frutíferas. Tenho algumas coisas que discordo, mas dou a mão à palmatória, é uma pessoa que se pode conversar e está disposto a resolver. E vem do setor privado, algo que, para mim, desde logo, faz toda a diferença e quer ver as coisas a funcionar”, destaca a presidente do sindicato.Manuela Niza Ribeiro também reflete que consegue ver na pasta um rumo para a agência definido pelo atual Governo, concordando ou não com algumas medidas. O fim das manifestações de interesse e a criação da Estrutura de Missão são algumas das ações do ministério de António de Leitão Amaro que a sindicalista elogia.Outro funcionário, hoje em cargo de chefia e que prefere manter o anonimato, concorda que “tudo começou mal, sem estrutura humana e tecnologia”, apesar dos avisos públicos e privados aos responsáveis na altura. Depois, elenca a queda do Governo logo que a agência começou funções, a “adaptação dos sistemas”, a “lentidão da contratação pública” que o “estado não fala a mesma língua” como situações que prejudicam o funcionamento da AIMA mesmo com dois anos de atividades. A alta rotatividade dos funcionários, que demoram a ser treinados, também contribui para este cenário, fator que Manuela Niza também elenca, culpando as saídas pelas condições de trabalho e baixos ordenados. Nestes dois anos, a agência ainda não conseguiu uniformizar procedimentos, cada balcão ou cada funcionário com um entendimento diferente sobre os processos. Os resultados, apontados com frequência por advogados, são indeferimentos e a lentidão, porque o imigrante precisa voltar com um papel que estava em falta - muitas vezes que não está na lei. É o que os imigrantes chamam de “lei do atendente” e que este funcionário da AIMA em função de chefia concorda existir. E como combater este problema? “Com formação, formação e formação”, que garante estar em marcha. Outras medidas também foram implementadas, como uma assistente virtual para sanar as dúvidas em tempo real e um documento “único” com todos os procedimentos a serem adotados e reuniões semanais com os diretores das lojas.2026 é o ano da esperança“Não pode não dar certo a AIMA em 2026”, afirma este funcionário da AIMA. Manuela Niza Ribeiro também tem “esperança” que o próximo ano seja melhor. Outros profissionais com quem o DN conversou também acreditam que 2026 será “finalmente o ano”. Aliás, este compromisso está assinalado no Orçamento de Estado 2026, “O Governo compromete-se a transformar a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) numa entidade funcional e eficiente”.Rui Armindo Freitas, secretário de Estado das Migrações, explica ao DN que “este primeiro ano deste conselho diretivo foi focado em conjunto com Estrutura de Missão a resolver os problemas graves que trazíamos de trás, um ano que foi dedicado a ultrapassar as centenas de milhares de dependências que trazíamos de trás”, citando a Estrutura de Missão. Sem estas pendências, “a agência a continuar a investir em tecnologia”, conta..Sobre a dificuldade dos imigrantes em comunicar com a AIMA, revela que começou em novo um novo call center (anunciado inicialmente em janeiro de 2024), e que “duplicou a capacidade de atendimento, que é para continuar e afinar”. Também está nos planos para o próximo ano aumentar a oferta de serviços digitais no site melhorar as lojas. “Vamos olhar atentamente para a nossa rede de lojas e perceber como é que as conseguimos tornar mais apelativas aos nossos utentes”, diz. Em relação às bases de dados fragmentadas, resume “que os sistemas de informação estão a ser uma prioridade para a AIMA e serão com certeza em 2026", explica o secretário de Estado. E dinheiro não falta: segudo o OE 2026, cerca de metade das receitas próprias do Ministério da Presidência, que tutela a AIMA, vem do dinheiro dos imigrantes.amanda.lima@dn.pt .Dos estrangeiros com título de residência aos vistos de longa duração. Todos os números do relatório da AIMA.Mais de 133 mil processos AIMA pendentes no tribunal administrativo de Lisboa