O discurso sobre a remigração, a deportação em massa de imigrantes, deixou de ser exclusivo de movimentos identitários e tornou-se um tema oficial na política portuguesa. O Chega, de André Ventura, incluiu nas propostas do Orçamento do Estado para 2026 o “Programa Nacional de Remigração”, que prevê a criação da Unidade Nacional de Execução Forçada (UNEF). Há cerca de dois anos, o assunto surgia apenas nas redes sociais do grupo de jovens reacionários da Reconquista. Agora está no Parlamento, através do Chega. As primeiras ligações entre o partido e o grupo foram reveladas pelo DN no ano passado.Com o tempo, esta relação tornou-se mais pública. O vice-presidente do Chega, Pedro Frazão, participou recentemente, por vídeo, numa conferência da Reconquista. “O Chega, com aliados como vós, está aqui para lembrar a todos que a defesa de Portugal passa também pela defesa da nossa cultura, das nossas famílias e da nossa identidade cristã portuguesa”, afirmou. Frazão sublinhou ainda que “o maior desafio é garantir o futuro do nosso povo, através da remigração”, referindo-se à deportação em massa de imigrantes. Entre os presentes encontrava-se Martin Sellner, líder do Movimento Identitário da Áustria e autor do livro Remigração, uma proposta, lançado em Portugal pela editora Lume Brando, que descreve o tema como “o mais debatido nas esferas política, social e moral da geração vindoura”.O termo remigração também já tinha sido dito em voz alta na Assembleia da República, a 7 de novembro. Durante a audição com o ministro António Leitão Amaro, o deputado do Chega Ricardo Reis, um dos mais jovens do partido, questionou se o Governo estava disposto a avançar com a remigração. Para o parlamentar do círculo de Ventura, a remigração serviria para “proteger os contribuintes, proteger a nossa segurança e proteger a vida dos portugueses”, tendo ainda classificado os imigrantes como “parasitas”.Leitão Amaro rejeitou de imediato a ideia, afirmando que a pergunta do deputado servia apenas “para vídeos nas redes sociais” e “para congressos nacionais e internacionais” que discutem a remigração, como os organizados pela Reconquista. E assim foi: poucos minutos após a intervenção, o vídeo foi publicado no X e amplamente partilhado em páginas europeias de extrema-direita, somando milhões de visualizações. .Apesar destas ligações entre o Chega e grupos extremistas, Ventura tem procurado demarcar-se da Reconquista, afirmando em conferência de imprensa que a participação de Frazão ocorreu “a título pessoal”. Ao DN, o investigador Riccardo Marchi explica que esta estratégia de distanciamento é antiga. “É comum a todos os grandes partidos de direita radical na Europa. Nenhum mantém uma relação orgânica com grupos extraparlamentares. Isto acontece desde os anos 1980. Porquê? Porque esses grupos são incontroláveis; não é possível controlá-los”, afirma o autor de A nova direita anti-sistema: o caso do Chega. O receio centra-se também no risco de ilegalidade. “Esses grupos movem-se sempre na linha da ilegalidade, com mobilizações de rua e determinadas mensagens. E os grandes partidos não têm interesse em criar laços orgânicos que lhes possam trazer problemas legais ou de imagem nos media”, acrescenta. Recorde-se que a Reconquista é investigada pela Polícia Judiciária (PJ) e também está na mira das Secretas..Marchi considera que Ventura mantém esta linha: “Gosta de surfar as ondas dos outros, mas não gosta que ninguém surfe a sua. Não vai facilitar a vida à Reconquista, mas sabe que também não pode hostilizá-la abertamente”. Condenar a Reconquista, sobretudo no tema da imigração, seria “um tiro no pé”, podendo afastar parte do eleitorado, afirma. “O Chega tenta sempre conquistar mais eleitores, não afastá-los”, sublinha.E o público da Reconquista, jovens na faixa que começa aos 15 anos ou até menos, é de interesse do Chega, porque são os eleitores do futuro. “Nos últimos anos, principalmente nas últimas eleições, o Chega conseguiu furar também entre o eleitorado jovem, que não tinha nos primeiros anos da existência do partido. Agora conseguiu entrar aí, fez todo o investimento, está no TikTok, nas redes sociais dos miúdos mais novos. Eles sabem que esses miúdos são os eleitores dos próximos anos. Ou seja, a garantia deles no médio e longo prazo”, ressalta..O investigador José Pedro Zúquete concorda que pode haver um desconforto entre alguns elementos do partido com esta associação, citando o exemplo da Alemanha. “O tema da remigração provoca tensão dentro da AfD. Há uma ala que diz que não se pode falar do assunto porque é visto como inconstitucional e pode levar ao banimento do partido. Esta discussão existe na AfD e, acredito, também no Chega”, afirma, autor de Os Identitários - O movimento contra o globalismo e o islão na Europa. Zúquete não considera surpreendente a participação de Frazão no congresso da Reconquista, reconhecendo que casos semelhantes ocorrem noutros países. “Sempre houve, nos partidos de direita radical, dirigentes que se ligavam a movimentos nacionalistas não partidários. Isso aconteceu em vários países. O que aconteceu com Pedro Frazão e o Chega aconteceu, por exemplo, com membros da Liga Norte, em Itália, que se aproximavam de movimentos mais radicais.”Estratégia e influênciasPara Marchi, o tema da remigração ganhou espaço crescente no discurso do Chega. “Há dois anos não existia. Depois foi entrando e agora é usado abertamente, tanto por dirigentes como pelo próprio Ventura, inclusive em cartazes. Começaram até a usar o símbolo do avião a descolar, para sugerir o regresso a casa. Na minha perspetiva, foi nos últimos dois anos que o discurso entrou plenamente.”Mas até que ponto a Reconquista influenciou o partido, reivindicando mesmo esse “mérito”? Marchi avança uma hipótese: “Os dirigentes do Chega perceberam que esse discurso estava a conquistar cada vez mais jovens, na casa dos 20 anos. Era quase inevitável falar da remigração. Se não o fizessem, deixariam campo aberto à direita extraparlamentar para captar a atenção desses jovens”. O investigador ressalva, contudo, que o conteúdo defendido pela Reconquista e pelo Chega não é idêntico e que a aplicação prática do conceito, tal como preconizado pelos movimentos identitários, seria “muito difícil”.Zúquete também acredita que a Reconquista influenciou o Chega na adoção do termo. “Há grande ativismo nas redes sociais por parte destes movimentos. Em certos meios, há muita familiaridade entre simpatizantes do Chega e da Reconquista. É fácil imaginar algum contágio, que fez com que a palavra remigração entrasse no vocabulário do Chega”. .Outra forma de influência é a infiltração de membros ou simpatizantes em partidos políticos, afirma Zúquete, com base em exemplos europeus. “Há candidatos identitários que conseguiram posições de relevo em partidos de direita radical, como assessores ou membros de staff. A AfD tem muitos assessores que vieram do movimento identitário alemão.” A Reconquista já conseguiu uma entrada semelhante no Chega, com a nomeação de Francisco Araújo como assessor parlamentar. O jovem, que já tinha sido orador noutro congresso da Reconquista, participou também na edição deste ano e é deputado eleito na Assembleia Municipal de Guimarães pelo partido de Ventura.“Medo, tensão e ansiedade”Zúquete observa que algumas ações da Reconquista geram “medo, ansiedade e tensão” entre imigrantes, que estes grupos tendem a ver como culpados e não como vítimas. “Se disser isto a um identitário, ele responderá imediatamente que quem gerou medo e insegurança foram as políticas de imigração e o multiculturalismo, que criaram estas situações. Culpam os imigrantes e invertem o argumento”, explica.Segundo o investigador, é uma característica europeia destes movimentos a “agitação”, além da forte presença nas redes sociais. “A agitação, a disrupção, interromper eventos, interromper concertos, abordar certas pessoas nas ruas e fazer com que se sintam constrangidas. É uma tática para chocar as pessoas e para tirá-las do que pensam ser um adormecimento, numa altura em que a Europa, na perspetiva deles, está debaixo de uma invasão”, assinala.É o que Afonso Gonçalves faz repetidamente em Portugal, como quando foi a um templo Sikh insultar imigrantes, ou quando invadiu uma propriedade privada no Martim Moniz, além da participação em protestos de imigrantes com mais insultos. Na teoria dos Movimentos Sociais, estas atitudes são classificadas como “política da visibilidade”, explicou Marchi numa publicação em que falava de mais uma detenção do líder da Reconquista. “Provocar a repressão das autoridades para tornar a ação de rua (e causa associada) viral nos meios de comunicação e redes sociais”, escreveu. Outro líder do movimento, que se esconde atrás de uma identidade falsa (“Líder da União”), respondeu: “E funciona”..Em França, alerta Zúquete, estas situações já estão noutro patamar: fala-se em guerra civil. “Aqui em Portugal estamos atrasados ao resto da Europa Ocidental, relativamente a esta questão, quer da imigração, quer desta rejeição da imigração, de forma tão acentuada e tão visível como está a acontecer agora. E, de certa forma, isso vai romper as quimeras que havia. Porque havia quimeras em Portugal, como se Portugal fosse um país mágico, imune a estes tipos de movimentos”, explica.Na versão em português do livro Os Identitários (a primeira foi lançada nos Estados Unidos), o grupo Reconquista é referido por Zúquete, que entrevistou Bernardo Abreu, um dos fundadores. Até poucos meses, Abreu usava perfis falsos nas redes sociais, mas acabou por “revelar-se”. O investigador conclui que existem dois fatores essenciais para a ascensão destes movimentos. O primeiro “tem a ver com as mudanças demográficas em curso e com o crescimento das populações estrangeiras e imigrantes em Portugal: constituem uma janela de oportunidade para que grupos de defesa identitária (dos nativos contra o ‘outro’) se estabeleçam de forma mais vincada”. Já o segundo fator, que classifica como “dependente do panorama eleitoral”, tem a ver “com estas formações identitárias extraparlamentares poderem sempre ter a possibilidade de cavalgar o sucesso de partidos da direita radical - como tem sido o caso do Chega - numa relação de complementaridade, beneficiando desse ímpeto partidário, e assim trazer cada vez mais atenção para os seus temas de defesa territorial, cultural e étnica do povo português”. O investigador recorda uma frase que costuma dizer: “É preciso duas pessoas para dançar o tango. A imigração é o Ferrari do Chega e, sem o Chega, talvez a Reconquista nem existisse”.amanda.lima@dn.pt.Grupos extremistas influenciam Chega a falar sobre remigração.André Ventura mete milhares no Rossio pela Rua da Betesga em nome da “reconquista”