A "Sentinela" assume carta de ameaça à editora britânica e queixa-crime contra autoras

Paula Meneses, a investigadora do CES que o DN revelou ser a "Sentinela", retratada como "cúmplice" e "facilitadora" no artigo sobre o centro português num livro sobre assédio sexual na academia, assumiu este sábado a autoria da carta de <em>cease-and-desist </em>enviada à Routledge, que levou à "despublicação" do livro.
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"É do conhecimento público que a editora Routledge decidiu retirar o capítulo The walls spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia [As paredes falaram quando ninguém se atrevia/Notas autoetnográficas sobre gatekeeping sexual na academia avant-garde]. Este capítulo, co-assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e MiyeTom, era um autêntico ataque de caráter contra a minha pessoa - Maria Paula Meneses - contendo imputações genéricas onde os poucos factos que se narram são falsos e caluniosos e põem em causa a minha reputação cientifica e atividade académica seja no meu pais - Moçambique - ou nos contextos internacionais em que tenho trabalhado."

É assim que Maria Paula Meneses, investigadora-coordenadora no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, inicia o post que este sábado colocou, aberto ao público, no seu Facebook, e no qual assume, num texto em inglês: "Através do meu advogado, contactei a Routledge, avisando-a das possíveis consequências legais de manterem o capítulo, e apresentei também uma queixa criminal contra as autoras."

Facebookfacebookhttps://www.facebook.com/mariapaula.meneses.7/posts/pfbid02sSR7wYEM8cr5VfWNhprZAh5z5uYCpmGqtiCadX1G73D6w8ysp4CVMWpynKVmh94Ll

Decorre desta revelação que Maria Paula Meneses está a assumir que a razão da retirada, pela Routledge, da coletânea Sexual Misconduct in Academia (Má Conduta Sexual na Academia) de circulação, em junho, e a posterior comunicação da editora, a 31 de agosto, às três autoras do capítulo referido, de que determinou "despublicá-lo", decorre antes de mais da sua ação e não, como tem sido alegado - inclusivamente num abaixo-assinado internacional de apoio às autoras do capítulo e às editoras do livro, divulgado na passada quarta-feira em "carta aberta" à Routledge na qual se acusa a editora de "censura académica" -, de iniciativas do sociólogo e ex-diretor do CES Boaventura de Sousa Santos (retratado no capítulo como "O Professor Estrela") e do antropólogo Bruno Sena Martins (crismado de "O Aprendiz").

Recorde-se que o dito capítulo descreve as dinâmicas de poder e de abuso institucional e assédio moral e sexual num centro académico não identificado, no qual as figuras centrais de um descrito "triunvirato" de poder e abuso são "O Professor Estrela", "O Aprendiz" e "A Sentinela/Watchwoman".

Tanto Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins começaram por negar ao DN, quando o jornal os questionou, em julho/agosto, qualquer ação legal junto da Routledge. A possibilidade de que Meneses fosse uma das pessoas que se queixou/apresentou protesto junto da editora fora já aventada pelo DN, até porque de acordo com as coordenadoras do livro, as académicas britânicas Erin Pritchard e Delyth Edwards, a editora comunicou-lhes que recebera queixas/protestos de várias pessoas.

Entre essas queixas/protestos figuraria apenas, porém, uma carta de cease-and-desist - um tipo de procedimento legal existente no sistema jurídico anglo-saxónico através do qual alguém que se considera lesado "avisa" o autor/responsável dessa alegada lesão, pedindo-lhe que cesse a ação em causa. Este tipo de "aviso" pressupõe que, caso o autor/responsável da lesão não aja de forma a remediá-la, se seguirá um processo formal nos tribunais - exatamente o que Maria Paula Meneses descreve ter feito.

De acordo com o dito pela Routledge às coordenadoras do livro, em email que estas reproduziram num comunicado enviado ao DN, essa carta de cease-and-desist foi enviada em nome de "um indivíduo que afirmava ser um dos assediadores descrito no capítulo" e requeria que a Routledge parasse "a publicação e a promoção do capítulo em questão" e propusesse "formas de mitigação do dano causado à reputação, saúde e trabalho académico do indivíduo, assim como à reputação do centro académico em causa [o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra] pelo capítulo." Foi nessa altura, informaram as coordenadoras, que editora britânica decidiu suspender temporariamente o livro."

Esta assunção pública de Meneses do ónus daquilo que está a ser descrito nos meios académicos portugueses e internacionais como "censura" surge, como já referido, na sequência da publicação de uma "carta aberta à Routledge" na qual se atribui a responsabilidade maior da retirada do livro - e portanto da "censura" - à "pessoa que se identificou como "Professor Estrela"", a qual, lê-se na carta-aberta, "parece ter usado o seu poder e conhecimento jurídico para silenciar o capítulo, o livro e as autoras."

A publicação do post está a criar ondas de choque no centro académico. "É uma grande vergonha, que alastra injustamente sobre o coletivo do CES", diz ao DN uma investigadora veterana, fervendo de indignação. "Usar de métodos como a acusação de difamação e acionar meios de censura académica é o contrário daquilo a que estamos empenhados no CES: o reforço da justiça social."

Outra investigadora, que igualmente pede reserva quanto à identidade, vê a revelação de Meneses como uma reação à carta-aberta" (intitulada "Censura académica em situações de más condutas sexuais e abuso de poder: na nossa academia, não!" e à acusação explícita da mesma a Boaventura de Sousa Santos: "A carta conta com assinaturas de gente muito conhecida na academia internacional, alguma da área da violência sexual, como as britânicas Johanna Bourke e Sarah Ahmed, que abandonou em 2016 a instituição académica em que trabalhava, o Goldsmith"s College, da Universidade de Londres, por causa do encobrimento de casos de assédio." Esta declaração da Maria Paula Meneses pode ser vista, crê esta investigadora, como uma fuga para a frente para proteger Boaventura das acusações de censura e de estar a a mentir quando nega ter sido ele a levar a Routledge a "despublicar".

Certo é que se trata da primeira vez que Maria Paula Meneses fala publicamente sobre a matéria, desde que em abril rebentou o escândalo associado à publicação do livro. Quando o DN começou a investigar o assunto (o resultado dessa investigação foi publicado a 11 de abril), tentou sem sucesso chegar à fala com esta académica, que se manteve em silêncio até este momento, furtando-se a qualquer esclarecimento ou posição pública sobre as acusações de que é alvo no capítulo.

Identificada pelo DN como "A Sentinela/Watchwoman" a 16 de abril, Meneses passou ainda assim entre os pingos da chuva ao longo destes cinco meses, não se sabendo sequer se, como Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins, suspendeu as suas funções no CES até ao resultado da investigação da Comissão Independente nomeada pelo centro (a 31 de julho) para avaliar as acusações efetuadas no capítulo referido e outras queixas apresentadas entretanto. Ao contrário do que se passou em relação a Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins - houve um comunicado público do CES anunciando o respetivo afastamento - o centro não efetuou qualquer esclarecimento sobre se Meneses continuava ou não em funções. E quando o DN solicitou ao então diretor da instituição, António Sousa Ribeiro, que esclarecesse se a mesma medida se aplicava a Meneses, este não respondeu.

Especializada em estudos pós-colonialistas, feministas e de cidadania global, Menezes tem, como investigadora-coordenadora, um estatuto semelhante nessa carreira ao de um catedrático na de professor universitário. No capítulo "despublicado" pela Routledge, é descrita como detendo "várias responsabilidades académicas e institucionais "chave"", a saber, "co-coordenadora de um programa de doutoramento, integrante de órgãos de governo, investigadora principal em vários projetos, supervisora de estudantes de doutoramento, entre outras funções", e como alguém a quem se atribui "uma duradoura relação íntima com o Professor Estrela".

Quem "chegasse para trabalhar com o grupo do Professor Estrela", garantem a belga Viaene, a portuguesa Laranjeiro e americana Tom, as autoras do capítulo, que em épocas diferentes passaram pelo CES, "era recebida/o pelo Aprendiz e pela Sentinela, que desempenhavam o papel de gatekeeper [expressão que, tendo tradução à letra de "guarda-portão", significa no meio académico quem tem o poder de decidir sobre acesso - a recursos, oportunidades, etc), pessoas que facilitavam o acesso, davam permissão, ou faziam a ponte", para se estar envolvido nas atividades de investigação do grupo que envolvia Boaventura, como "seminários, escolas de verão, publicações (...)".

Nesta dinâmica, prossegue o artigo, os papéis do Aprendiz e a Sentinela não se limitam à aceção tradicional do conceito de "gatekeeper" (...). Aqui, estes guarda-portões das estruturas de poder da instituição definem-se em função da inexistência de salvaguardas éticas no que respeita à orientação académica. Essas dinâmicas permitiram a essas duas pessoas desempenhar o papel de gatekeepers do poder sexual quando em certas situações a fronteira entre coação e consentimento era difícil de traçar."

Não é muito claro no artigo de que forma a Sentinela desempenha esse papel de "guarda-portão do poder sexual", exceto num caso - quando se descreve a tentativa da pessoa que no capítulo é designada como "a estudante internacional de doutoramento" (e que corresponde à autora Miye Tom) de obter dela ajuda no que respeita à situação que teria ocorrido com o Aprendiz, descrita no artigo ora como "sexual abuse" (abuso sexual) ora como "sexual assault" (agressão sexual) e que, de acordo com o que o DN conseguiu saber, é visto pela própria como a forma mais grave de abuso/agressão sexual - uma violação.

Ao DN, Bruno Sena Martins negou em absoluto essa imputação; admitindo que existiu uma relação sexual, garante que houve consentimento, e que tem uma testemunha que o pode comprovar.

Myie - que nasceu em 1984 nos EUA e chegou à Europa em 2007, tendo passado pela Universidade Complutense de Madrid e pela Universidade Católica Pázmány Péter, de Budapeste, antes de entrar no CES no outono desse ano - terá (não é claro em que ano se passaram os factos que lhe dizem respeito e a Sena Martins; a partir de informações cruzadas, o DN situa-os em 2011/2012), de acordo com o constante no capítulo, confessado à Sentinela/Maria Paula Meneses "o seu fraco estado emocional e receios depois do abuso sexual de que fora vítima por parte do Aprendiz, que continuava a contactá-la e a assediá-la apesar de ela pedir para ser deixada em paz." Mas, conclui-se, "A Sentinela não respondeu."

Três membros atuais do CES ouvidos pelo DN, e que pedem para não serem identificados, confirmaram esta situação - que Miye de facto reportou a Maria Paula Meneses o que ocorrera e esta não deu seguimento ao assunto.

"Aquilo que sei é que na altura a Maria Paula Menezes lhe disse que a ia ajudar, mas não o fez", relata ao DN um dos referidos membros do CES. "Disse à Miye que ela tinha de ir mais acima, que a Paula não ia fazer nada. Mas ela não falou com mais ninguém."

Outro dos membros ouvidos confirma: "A Miye queixou-se à Paula Meneses. Não sei se por escrito ou oralmente, ou seja, não sei se há prova escrita dessa queixa. Na altura em que isto aconteceu não havia nenhuma estrutura criada para receção de queixas deste tipo ou outras, nem Comissão de Ética sequer [esta comissão só começou a funcionar a partir de 2017], portanto ela queixou-se a quem podia, a uma das orientadoras dela, a mais sénior."

No seu post deste sábado, Maria Paula Meneses frisa, para sublinhar aquilo que representa como um intuito difamatório, que "o referido capítulo era falsamente anónimo porque as autoras indicavam no seu CV a instituição onde tinham feito a sua formação". De facto, foi através do percurso académico das três autoras, e pela circunstância de que só tinham em comum o CES, que o DN colocou a hipótese de que esse fosse o centro descrito no capítulo. Mas foi a assunção, por parte de Boaventura de Sousa Santos, de que o capítulo pretende descrever o CES e a ele próprio, a permitir ao jornal identificar o centro e as "personagens" sem reservas.

A investigadora-coordenadora agrega ainda ao post uma foto do que descreve como um email enviado a 1 de abril de 2023 por Mye Nadia Tom, "confirmando que o capítulo se referia ao CES e que a Watchwoman era eu."

No email reproduzido, lê-se: "Fui ter consigo a pedir ajuda. Não fez nada e perseguiu-me digitalmente ["cyber stalked my ass"], prosseguindo com táticas risíveis de intimidação. (...) Provavelmente passou pelo mesmo que eu e a sua geração pode pensar que é normal, mas não é assim que as coisas se devem passar. Deveria ter feito parte da mudança. Eu esperava isso de si, admirava-a. (...) Procurei-a para me ajudar, ignorou-me. Isso é algo que ficará para sempre na sua responsabilidade. Todas as ameaças que recebi daquele sítio eram vãs. Tão irónico ver tantos de vocês a assinar cartas digitais de apoio a Mamadou Ba [ativista negro antirracista que está a ser julgado em Tribunal Criminal por alegadamente ter difamado o neonazi Mário Machado], que fala de injustiça racial e violência de uma forma similar à minha [Miye Nadia Tom é de origem indígena], e que foi confrontado com ameaças semelhantes por ter feitos denúncias públicas como eu fiz [Miye refere-se a um post que publicou no Facebook, entretanto apagado, no qual denunciava Bruno Sena Martins, e que lhe valeu uma queixa-crime apresentada por este com, alegadamente, o apoio do CES]. Que hipócritas. Muitas mais mulheres virão depois disto. Abençoadas as feministas malvadas que espalharam a sua realidade pelas paredes da instituição [referência às pichagens inscritas no CES a partir de 2018, "denunciando" Boaventura de Sousa Santos, e às quais o título do capítulo "despublicado", The walls spoke when no one else would/As paredes falaram quando ninguém se atrevia, faz referência] - que representa as entranhas do próprio colonialismo. Pedi-lhe a ajuda quando ele [referir-se-á a Bruno Sena Martins] me stalkou e contactou incessantemente. Fui ter consigo como mulher que eu admirava, como mentora, como alguém que podia compreender e fazer algo. Encontrei-me consigo quando já não tinha nódoas negras no rosto e tentei aguentar-me, mas o contínuo assédio dele era mais do que eu podia suportar após ter sido agredida. A [Maria Paula Meneses] limitou-se a apoiar as histórias mentirosas dele e a tentar silenciar-me".

Frisando que "a comissão [independente] está a fazer o seu trabalho" de investigação das alegações contra o centro, cujo resultado deverá ser apresentado até ao final do ano, uma das investigadoras ouvidas pelo DN - aquela que qualifica o post como "uma vergonha" - vê esta investida de Maria Paula Meneses como uma interferência nesse labor.

Reagindo, também no Facebook, ao post de Maria Paula Meneses, o escritor João Pedro George fala de "cinismo, hipocrisia, sonsice e falta de vergonha na cara": "Sabe-se agora, finalmente, o nome da pessoa que ameaçou a Routledge e que terá contratado o tal 'portuguese lawyer'. Maria Paula Meneses, investigadora muito-muito próxima de Boaventura Sousa Santos, que alegadamente terá encoberto as histórias de assédio no CES, vem agora dar a cara. Tudo, claro, sem o Boaventura de Sousa Santos saber de nada. Viva o cinismo, a hipocrisia, a sonsice, a falta de vergonha na cara."

Contactada pelo DN, Miye Nadia Tom não quis comentar o post de Meneses.

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