Editora britânica retira capítulo que acusa Boaventura em livro sobre assédio sexual

Dois meses depois de colocar uma nota no seu site a alertar para a indisponibilidade, por estar "em revisão", do livro <em>Sexual Misconduct in Academia</em>, a editora britânica Routledge assume decisão de retirar da obra o capítulo sobre o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Em causa, ameaças de processo.
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"As paredes falaram quando ninguém se atrevia". É esse o título do capítulo 12 do livro Sexual Misconduct in Academia (Conduta Sexual Inapropriada na Academia), editado no final de março pela Routledge, e no qual as autoras - a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e americana Myie Nadia Tom - descrevem, sem nomear a instituição nem os intervenientes, acontecimentos alegadamente ocorridos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com Boaventura Sousa Santos, o "Professor Estrela", como protagonista, título que, além de uma descrição, também se tornou num presságio: a editora decidiu, após em junho suspender o livro para "revisão", retirar o capítulo.

A notícia, antecedida pelo "apagão", em junho, da página correspondente à obra no site da Routledge e desde esta semana também no da casa "mãe" da editora, a Taylor & Francis (a mais importante editora internacional na área das ciências sociais), foi conhecida na manhã desta quinta-feira pelas mais de 20 autoras e pelas duas coordenadoras da publicação, Erin Pritchard e Delyth Edwards.

Em causa na suspensão do livro - e na decisão agora tomada pela editora -, está, como duas das 23 autoras tinham já adiantado ao DN no início de agosto, uma ou mais ações legais, ou "queixas", apresentadas à editora. Estas ações foram entretanto identificadas como cartas de "cease and desist" (cessar e desistir) - um tipo de procedimento legal existente no sistema jurídico anglo-saxónico através do qual alguém que se considera lesado "avisa" o autor/responsável dessa alegada lesão, pedindo-lhe que cesse a ação em causa. Uma carta de cease and desist pressupõe que, caso o autor/responsável da lesão não aja de forma a remediá-la, se seguirá um processo formal nos tribunais.

Foi Marta Lança, uma das autoras do manifesto "Todas Sabemos" (de apoio às autoras do capítulo 12), a identificar o tipo de ação legal em causa, num post no Facebook a 21 de agosto no qual cita como fonte da informação as coordenadoras do livro.

Facebookfacebookhttps://www.facebook.com/marta.lanca.9/posts/pfbid0n4HMjPgwjXGuqG8HfXNi4j22QMFFnSyEcD342cwTpoZhENMof1zMktoP5FKrap57l

"O livro recebeu várias reclamações (e ameaças de ação legal) (...). Na verdade, a Routledge recebeu uma carta de "cease-and-desist" de um advogado português", lê-se no post.

Quem esse advogado português representa não foi até agora revelado, embora seja óbvio que os principais interessados na retirada do capítulo são "o Professor Estrela" - o sociólogo, fundador do CES e seu diretor emérito Boaventura de Sousa Santos (BSS), que é nele acusado de assédio sexual e de "extrativismo intelectual" -, e "o Aprendiz", o antropólogo Bruno de Sena Martins, acusado de agressão ou abuso sexual, assim como, em menor grau, a académica designada como "a Sentinela", Maria Paula Menezes (que até agora não fez qualquer comentário público sobre o livro nem respondeu às questões do DN).

Mas, apesar de em abril, quando confrontados com o conteúdo do capítulo, os dois académicos, que estão suspensos de quaisquer atividades no CES, terem anunciado processos/recurso aos tribunais contra as autoras do capítulo - BSS anunciou que iria avançar com "uma queixa-crime por difamação" contra Viaene, Laranjeiro e Tom, enquanto Sena Martins garantiu ter a intenção de "procurar justiça nas instâncias competentes" - tanto um como outro garantiram ao DN não serem fonte de qualquer iniciativa ou ação legal junto da editora.

"Não desencadeei qualquer ação legal junto da editora. Só soube da suspensão [da venda do livro] pelas notícias dos jornais", disse ao DN, já em agosto, Sena Martins, que assegurou aguardar que a Comissão Independente [criada pelo CES para analisar o caso, e cuja composição foi anunciada a 1 de agosto] "faça o seu trabalho."

Boaventura de Sousa Santos - em relação a quem, recorde-se, uma das acusações de assédio sexual constantes no capítulo 12 foi confirmada em abril pela alegada vítima, a hoje deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade Isabella Gonçalves - foi bem menos claro.

Se, na primeira entrevista que deu, de viva voz, sobre o assunto (disponível no no Youtube desde 11 de julho), o sociólogo foi taxativo na certificação de que a decisão da Routledge - editora na qual, frisa, tem várias obras publicadas, uma das quais, From the Pandemic to Utopia, the Future Begins Now já após o rebentar do escândalo - tem a ver com o capítulo 12 e consigo, diria a seguir ao DN não conhecer "os detalhes da decisão". Ao mesmo tempo, porém, que reforçava a ideia de que esta está relacionada com as acusações que lhe são feitas no dito capítulo.

"Posso informar que o livro está suspenso, por a acusação ser tão grave. Porque é na verdade uma acusação criminal sob o disfarce de um trabalho científico", declarou BSS na entrevista publicada no Youtube, na qual também disse esperar "que a editora reconsidere. Porque publicou cinco livros da minha autoria, dois singulares e três coletivos."

O sociólogo chega até a revelar a opinião da Routledge sobre o capítulo 12: "Eles próprios estão um pouco perplexos com a qualidade deste capítulo." Tal pressupõe que existiu uma "conversa" com a editora sobre o capítulo - aliás assumiu ao DN que ao tomar conhecimento do conteúdo do livro contactou a editora, para, explica, "expor diretamente as minhas críticas, críticas essas que mantenho, tratando-se de um texto que faz acusações sem fundamento à minha pessoa".

Contudo, reconhecendo embora ao DN que já tem um advogado para sua defesa "constituído em Portugal" (e que não quis identificar, apesar do pedido do jornal nesse sentido), BSS - que diz ver a decisão da Routledge como "natural" e como "um reconhecimento, ainda que tardio, de que o artigo não devia ter sido publicado", lamentando que "se tenham apercebido disso meses depois de destruírem a minha imagem e depois de me causarem irrecuperáveis prejuízos a nível pessoal e profissional" - não respondeu a uma pergunta direta sobre se a demanda da qual a Routledge foi alvo (a carta de cease and desist) é iniciativa sua.

Também sem resposta ficaram até agora as perguntas enviadas pelo DN à assessoria de imprensa da Taylor & Francis/Routledge, à qual foi pedido um esclarecimento sobre a decisão de "banir" o livro, e às coordenadoras da obra, Erin Pritchard e Delyth Edwards, que pediram mais tempo para prestar esclarecimentos.

Também a co-presidente do Grupo 1752 (organização de investigação, consultoria e ativismo fundada em 2016 com o objetivo de "acabar com o conduta sexual inapropriada de funcionários/professores na educação superior"), Anna Bull, autora do posfácio do livro, e que tinha no início de agosto dito ao DN esperar que a editora fizesse "a coisa certa, recolocando o livro em circulação muito em breve", não fez até agora qualquer comentário à decisão da editora.

Mas esta docente (Senior Lecturer) de Educação e Justiça Social na Universidade de York (Reino Unido) tinha já caracterizado a ação da Routledge/Taylor & Francis como "silenciamento": "Desaponta muito que um livro que procura quebrar o silêncio existente sobre assédio sexual na academia seja ele próprio sujeito a um processo de silenciamento. Isto é prova das enormes dificuldades com que se deparam sobreviventes, ativistas e investigadores quando querem falar sobre o tema, mesmo quando desenvolvem trabalho que procura analisar e explicar o fenómeno sem nomear os abusadores e as instituições."

Silenciamento esse que, ironicamente, foi até agora assumido pela maioria das 23 autoras do livro - tendo sido, no início de agosto, contactadas pelo DN por email, só duas responderam - assim como pela academia e media anglo-saxónicos: só em Portugal e na América Latina a suspensão do livro foi notícia.

De resto, nem sequer a organização de combate ao assédio sexual na academia de que Anna Bull faz parte - o já mencionado Grupo 1752 - e da qual as duas responsáveis pela obra parecem próximas, tendo-a inclusive referido no anúncio, efetuado em 2020, de "chamada de capítulos" para o livro, tinha, até ao contacto do DN, feito qualquer comentário ou protesto públicos sobre a suspensão da obra. Também não o fez ainda face à decisão da editora de retirar o capítulo 12.

"Todas sabemos", lia-se nas paredes do CES em 2018, nos graffiti referidos no título do capítulo 12, e que de acordo com as suas autoras funcionaram como um repto de empoderamento e consciencialização face ao que tinham vivido naquele centro académico - um repto para romper o silêncio. Será que, afinal, o silêncio vai ganhar?

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