Quem é "a Sentinela"? "Se o CES fosse uma monarquia, ela era a rainha"
Decorreram apenas três dias entre a primeira reação pública do Centro de Estudos Sociais (CES) ao artigo The walls spoke when nobody would/As paredes falaram quando ninguém se atreveu, publicado em março pela editora Routledge, denunciando condutas sexuais inapropriadas na instituição, e a decisão de suspender os dois homens ali referidos como "o Professor Estrela", "o Aprendiz" - o sociólogo Boaventura Sousa Santos (BSS), diretor emérito do CES e seu fundador (o qual, horas depois do anúncio da suspensão, enviou um email aos jornalistas a comunicar o seu "auto afastamento" da instituição), e o antropólogo Bruno Sena Martins.
Ao DN, a deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) Isabella Gonçalves, que após ter falado sob anonimato com o Público e o Observador veio esta sexta-feira a público, numa entrevista dada no Brasil, assumindo ser a estudante de doutoramento estrangeira descrita no artigo como tendo sido convidada pelo Professor Estrela (BSS) a "aprofundar o relacionamento" com ele em troca de apoio académico, congratula quem tomou a decisão: "Acho fundamental o afastamento dos dois [BSS e Bruno Sena Martins] enquanto medida imediata do CES. Essa é uma medida importante, então é de saudar o CES pela iniciativa tomada."
Há porém, uma terceira pessoa, apontada como central na narrativa do artigo e fazendo parte daquilo que é descrito pelas suas autoras - a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Miye Nadya Tom - como o triunvirato de poder (e do seu abuso) no CES que até agora não foi identificada pelo seu nome no noticiário sobre o caso nem, tão-pouco, referida nos comunicados da direção deste centro de investigação: trata-se de uma mulher, "a Sentinela" (the Watchwoman).
Esta é descrita como detendo "várias responsabilidades académicas e institucionais "chave"", a saber, "co-coordenadora de um programa de doutoramento, integrante de órgãos de governo, investigadora principal em vários projetos, supervisora de estudantes de doutoramento, entre outras funções".
A relação das três autoras do artigo com a Sentinela é também discriminada: "A antiga estudante de doutoramento internacional [Miye Tom] era a primeira investigadora doutoral de origem indígena a ficar sob a supervisão da Sentinela"; a antiga estudante de doutoramento nacional (Catarina Laranjeiro) "estava inscrita num dos programas de doutoramento criados pelo Professor Estrela e co-coordenado pela Sentinela"; "enquanto o Professor Estrela era o supervisor da bolsa da investigadora de pós-doutoramento [Lieselotte Viaene], nomeou o Aprendiz, com a Sentinela, como membros do respetivo painel de supervisão. Quando chegou ao centro de investigação, a investigadora de pós-doutoramento foi avisada por alguém acerca de uma relação íntima há muito existente entre a Sentinela e o Professor Estrela."
Acresce que quem "chegasse para trabalhar com o grupo do Professor Estrela", garantem Viaene, Laranjeiro e Tom, "era recebida/o pelo Aprendiz e pela Sentinela, que desempenhavam o papel de gatekeeper [expressão que, tendo tradução à letra de "guarda-portão", significa no meio académico quem tem o poder de decidir sobre acesso - a recursos, oportunidades, etc), pessoas que facilitavam o acesso, davam permissão, ou faziam a ponte", para se estar envolvido nas atividades de investigação do grupo que envolvia Boaventura, como "seminários, escolas de verão, publicações (...)".
Nesta dinâmica, prossegue o artigo, "os papéis do Aprendiz e a Sentinela não se limitam à acepção tradicional do conceito de gatekeeper (...). Aqui, estes porteiros das estruturas de poder da instituição definem-se em função da inexistência de salvaguardas éticas no que respeita à orientação académica. Essas dinâmicas permitiram a essas duas pessoas desempenhar o papel de gatekeepers do poder sexual quando em certas situações a fronteira entre coação e consentimento era difícil de traçar."
Não é muito claro no artigo de que forma a Sentinela desempenha esse papel de "guarda-portão do poder sexual", exceto num caso - quando se descreve a tentativa da estudante internacional de doutoramento (Miye Tom) de obter dela ajuda no que respeita à situação que teria ocorrido com o Aprendiz, descrita no artigo, escrito em inglês, ora como "sexual abuse" (abuso sexual) ora como "sexual assault" (agressão sexual) e que, de acordo com o que o DN conseguiu saber, é visto pela própria como a forma mais grave de agressão sexual - uma violação -, o que Bruno Sena Martins negou ao DN ter acontecido; admitindo que existiu uma relação sexual, garante ter havido consentimento, e que há uma testemunha que o pode comprovar.
Myie - que nasceu em 1984 e chegou à Europa em 2007, tendo passado pela Universidade Complutense de Madrid e pela Universidade Católica Pázmány Péter, de Budapeste, antes de entrar no CES no outono desse ano - terá então (não é claro em que ano isso se passou; a partir de informações cruzadas, o DN situa o ocorrido em 2011/2012) confessado à Sentinela "o seu fraco estado emocional e receios depois do abuso sexual de que fora vítima por parte do Aprendiz, que continuava a contactá-la e a assediá-la apesar de ela pedir para ser deixada em paz." Mas, conclui-se, "A Sentinela não respondeu".
Três membros atuais do CES ouvidos pelo DN, e que pedem para não ser identificados, confirmaram esta situação - que Miye de facto reportou à Sentinela o que ocorrera e esta não deu seguimento ao assunto.
Essas três pessoas, uma das quais garante ao DN que "se isto for uma questão pública, estarei ao lado da Miye, porque tenho todas as razões para acreditar nela", são unânimes em identificar a pessoa apodada no artigo como Sentinela: trata-se de Maria Paula Meneses, também indicada como "orientadora principal [do doutoramento] da Miye".
De facto, na página que subsiste na internet sobre a passagem de Miye Tom pelo Centro de Estudos Sociais, e na qual se informa que ela estava inscrita no programa de doutoramento Pós-Colonialismos e Cidadania Global do CES (o mesmo em que anos depois entrou Catarina Laranjeiro), encontra-se igualmente o tema do seu projeto de tese de doutoramento - Hip-Hop Culture, Community, and Education: Post-Colonial Learning? (Culture Hip-Hop, Comunidade e Educação: Aprendizagem Pós-Colonial? - e o nome das orientadoras: Maria Paula Meneses e Marta Araújo.
"Aquilo que sei é que na altura a Maria Paula Meneses lhe disse que a ia ajudar, mas não o fez", relata ao DN um dos referidos membros do CES. "Eu disse à Miye que ela tinha de ir mais acima, que a Paula não ia fazer nada. Mas ela não falou com mais ninguém." Outro dos membros ouvidos confirma: "A Miye queixou-se à Paula Meneses. Não sei se por escrito ou oralmente, ou seja, não sei se há prova escrita dessa queixa. Na altura em que isto aconteceu não havia nenhuma estrutura criada para receção de queixas deste tipo ou outras, nem Comissão de Ética sequer [esta comissão só começou a funcionar a partir de 2017], portanto ela queixou-se a quem podia, a uma das orientadoras dela."
Ainda outro membro do CES, com quem Miye falou dias depois do sucedido com Bruno Sena Martins, e que assevera que "ela estava muito mal", frisa: "Não havia propriamente um sítio ou um e-mail ou alguém a quem se pudesse participar esse tipo de situação. Com quem é que ela podia falar com poder para fazer alguma coisa? Com um orientador, com a pessoa com autoridade com quem tinha uma relação - que era a Maria Paula Meneses." Esta pessoa informa também que Miye não chegou, "por receio de que não pudesse terminar o doutoramento", a apresentar queixa às autoridades da situação ocorrida com Bruno Sena Martins.
Nascida em Moçambique, licenciada em História na então URSS, na Universidade de São Petersburgo, e doutorada em Antropologia pela Universidade de Rutgers, EUA, especializada em Estudos Pós-Colonialistas, Feministas e de Cidadania Global - sendo atualmente, de acordo com a sua página na Ciência Vitae, membro eleito da Associação Internacional das Ciências Sociais e Humanidades em Língua Portuguesa e do conselho científico da CORA (Collective for the Renewal of Africa) -, Maria Paula Meneses tem atualmente, como investigadora-coordenadora, um estatuto semelhante nessa carreira ao de um catedrático na de professor universitário.
Quanto à sua posição "de facto" no CES, que um atual membro qualifica como "a de braço-direito de Boaventura no exercício do poder, embora sempre na sombra", é assim descrita por um ex-aluno de doutoramento da instituição, que ali esteve a partir de 2011: "Se o CES fosse uma monarquia, ela seria a rainha. É alguém que detinha um poder absoluto no CES, poder que advinha do facto de contar com carta branca por parte do Boaventura - que, fosse qual fosse a arquitetura institucional do CES, mandava."
Por esse motivo, toda a gente, assevera, "tinha receio dela, ninguém a queria confrontar, para não sofrer retaliações. E era sempre muito vocal quando não gostava de alguém, dificultava a vida de quem ela não gostasse."
Segundo um membro atual do CES, que a descreve como "intimidatória", Maria Paula Meneses, até ao momento poupada à divulgação pública do seu nome, terá já perguntado pelos corredores "também vou ser cancelada?". Trata-se de uma referência às declarações de Boaventura Sousa Santos, que disse ao DN estar a ser alvo de "cancelamento" (aqui significando um movimento de repúdio público organizado que pode resultar na perda de posição profissional/social, e que geralmente é relacionado com as chamadas "causas identitárias").
Um dos membros do CES ouvido pelo DN - sempre requerendo anonimato - comenta: "A Sentinela/Maria Paula Meneses é mencionada no artigo "só" como cúmplice, mas pelo seu papel no bloquear das queixas, no encobrimento, na dissuasão, e até no assédio psicológico, devia ser investigada. Não devia passar entre os pingos da chuva."
O DN confrontou, por e-mail (como fez anteriormente, a 7 e 8 de abril, com Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins, obtendo de ambos resposta), a investigadora-coordenadora do CES com o apodo, que lhe é atribuído no artigo de VIaene, Laranjeiro e Tom, de "Watchwoman" - e que Bruno Sena Martins considerou perante o DN revelar "um machismo insidioso".
Foi-lhe igualmente pedido que esclarecesse o que se passou com Miye. Ou seja, se confirma que esta lhe comunicou o ocorrido com Bruno Sena Martins e que foi respondido/feito.
Até ao momento da publicação deste texto, Paula Meneses não respondeu.
Na sequência do comunicado da direção do CES da tarde de sexta-feira, no qual se anunciou a decisão de suspender Sousa Santos e Sena Martins até ao final da investigação anunciada (um segundo comunicado surgiria depois, a certificar que tinham sido os próprios a "suspender-se") e que ficará a cargo de uma Comissão Independente cuja composição completa ainda não é conhecida, o DN pediu ao diretor da instituição, António Sousa Ribeiro, que esclareça se uma medida semelhante está prevista em relação a Meneses. Sousa Ribeiro não respondeu à pergunta.
Entretanto foi marcada uma reunião no CES para amanhã, 17 de abril, para a qual foram convocados todos os investigadores, assim como representantes dos "investigadores juniores", dos investigadores em pós-doutoramento, dos estudantes de doutoramento e dos funcionários. O objetivo é, segundo a convocatória, "proporcionar um espaço adequado para refletirmos sobre as questões que o atual contexto suscita, particularmente sobre as condições efetivas necessárias para um ambiente de trabalho científico igualitário e livre".
Mas, adverte-se, "não se pretende discutir as alegações sobre os casos particulares que são objeto do capítulo recentemente publicado [o artigo das três académicas]. Essa tarefa não nos compete. Para o efeito está a ser constituída uma Comissão Independente à qual caberá a identificação de eventuais falhas institucionais e a averiguação da ocorrência das eventuais condutas anti-éticas."
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