"Cobardia", "cancelamento": académicos indignados com "censura" de artigo sobre Boaventura  

Decisão de editora científica britânica Routledge de "despublicar" artigo sobre o CES e Boaventura de Sousa Santos que faz parte de coletânea sobre assédio nas universidades choca académicos ouvidos pelo DN: "É um precedente perigoso". Autoras e coordenadoras da obra preparam reação concertada.
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"Fico incrédulo com a decisão. A não ser que a Routledge admita que publica livros de forma negligente e sem o devido processo de arbitragem científica pelos pares, não vejo que outro nome dar a isto que não o de censura."

As palavras são do economista Luís Aguiar-Conraria, professor catedrático na Universidade do Minho, referindo a decisão da editora científica britânica Routledge de retirar da coletânea Sexual Misconduct in Academia (Má Conduta Sexual na Academia), publicada a 23 de março, o capítulo The walls spoke when no one else would (As paredes falaram quando ninguém se atrevia). O qual, sem identificar pessoas ou a instituição, descreve alegados acontecimentos ocorridos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Lisboa (CES), com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (diretor do centro até 2019) como protagonista.

Como o DN já noticiou, de acordo com as coordenadoras da obra, as académicas britânicas Erin Pritchard e Delyth Edwards, a 31 de agosto a Routledge informou as autoras do capítulo - a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Myie Nadia Tom - de que, em virtude de ter recebido várias cartas de queixa, a primeira das quais de um advogado português, e pelo menos uma de "aviso" de processo judicial (uma carta de cease-and-desist) pretende, após ter retirado o livro de publicação em junho (nessa altura a pretexto de "revisão"), reverter os direitos de autor do capítulo e "despublicá-lo". A editora nunca revelou quem enviou as queixas/cartas.

Em reação, Pritchard e Edwards acusaram a Routledge de "apoiar o abuso de poder na academia" e de "se pôr do lado de quem quer silenciar o livro", exigindo à editora que se explique publicamente. Segundo o que foi relatado ao jornal, as duas coordenadoras e as mais de 20 autoras do livro estão a concertar uma posição coletiva, para a qual só parece haver duas alternativas: ou aceitam a decisão da editora, e o livro, que deixou já de estar disponível em todas as plataformas online, incluindo a Amazon, voltará a ser colocado à venda, ou recusam e tal implicará a "despublicação" total da obra.

Entretanto, e malgrado a insistência do DN, nem a Routledge nem a empresa editorial que a detém, a Taylor & Francis, deram qualquer esclarecimento sobre o motivo que as levou a apagar a página do livro dos respetivos sites, nem confirmaram ou infirmaram a informação que as coordenadoras deram ao jornal.

Uma atitude que todos os académicos ouvidos pelo DN consideram inaceitável. "A Routledge não pode não explicar; não explicar é o total descrédito da editora, um aviltamento do processo científico, um atropelamento de valores científicos", verbera a socióloga Ana Nunes de Almeida, investigadora coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

O presidente da Associação Portuguesa de Sociólogos e pró-reitor da Universidade de Coimbra, Paulo Peixoto, faz coro: "Neste campo da retração, quando há artigos ou publicações retirados, é curial haver uma explicação. É aliás o padrão no mundo académico. Parece-me estranho que a editora não explique, não é nem adequado nem aceitável retirar o capítulo sem uma explicação ou só com a explicação de que foram postos juridicamente em causa." Trata-se, sublinha este investigador do CES, que já desempenhou várias funções de gestão no centro, de algo inédito: "Uma editora como a Routledge publicar e despublicar um livro sem dar explicações é um caso de estudo."

Um caso que, diz Ana Nunes de Almeida, "abre um precedente para toda a ciência: quando os resultados não interessam, retira-se. Está-se a ceder a interesses económicos, de género, de poder - ora a ciência não pode ser submetida a outros critérios que não os científicos".

O jurista Miguel Lemos, que ficou conhecido por, enquanto docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do respetivo Conselho Pedagógico, pugnar pela denúncia pública dos casos de assédio de que os alunos da escola se queixam, concorda e assinala a gravidade do facto: "A retirada do livro de circulação, nos termos em que decorreu, é um precedente perigoso ainda para mais no seio de uma pressuposta comunidade científica. O artigo em causa descreve uma dinâmica social, passada numa instituição de investigação, e nem a instituição nem nenhum dos intervenientes é identificado. Se o facto de alguém se considerar retratado, nessas circunstâncias, num artigo científico, lhe dá a pretensão a um direito a "cancelar" uma obra estamos a abrir um precedente perigoso. E é particularmente condenável a posição da editora Routledge que, perante um caso destes, deveria proteger os seus autores e não, face à iminência de uma ação judicial, retirar-lhes o apoio cancelando, objetivamente, o livro."

Claro, aduz Luís Aguiar-Conraria, "que há artigos científicos que são, de quando em quando, retractados. Mas isso acontece por razões científicas (por exemplo, resultados inventados ou dados manipulados). No capítulo em causa nem há dados nem resultados. Há apenas um exercício de (auto)etnografia. Uma editora científica com o arcaboiço da Routledge devia ter capacidade para não se deixar intimidar com ações judiciais."

"E tinha a obrigação de defender o seu procedimento científico", ajunta a também economista Susana Peralta, da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE). "Há aqui uma mistura de âmbitos que é extremamente problemática".

Esse processo, informa Ana Nunes de Almeida, implica que "depois de submetidos para publicação os artigos passam por referees ("árbitros") especialistas na área, para certificação científica. Os referees, que permanecem anónimos para os autores, apontam inconsistências, pedem explicações, etc, e é só quando são satisfeitas as suas exigências que os artigos vão para publicação; se o referee fizer uma má avaliação o artigo pode não ser publicado."

E a investigadora, a quem o país conheceu recentemente como uma das autoras do relatório sobre abusos sexuais na Igreja Católica, questiona: "Mas depois disso tudo, de o artigo ter o OK, e ser publicado de acordo com as regras científicas, há pessoas que protestam e retira-se? Mas isto é a ciência ao sabor de que interesses? Porque o que está aqui em causa, e me choca brutalmente, é a utilização de critérios não científicos. Podia dar-se o caso de se ter descoberto um plágio, isso sucede. Mas não é isso que está em causa na retirada deste texto. Que critérios não-científicos são estes da Routledge?"

Susana Peralta reforça: "O que a Routledge está a fazer não é do âmbito da ciência. Porque a editora já caucionou cientificamente o texto, ao publicá-lo, o que está a acontecer é do âmbito de uma pressão legal que coloca em causa a natureza do exercício científico, o que é muito problemático."

Como Conraria, a economista vê a atitude da Routledge como censora: "Até termos explicações de quem é responsável pela obra do ponto de vista científico, para mim é um ato censório."

"Censura" é uma qualificação que o diretor do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Nova, José Neves, "tem dúvidas" em usar. Mas, certifica, "é um ato de falta de seriedade profissional e de cobardia editorial."

Neves, que trabalha com uma das autoras do artigo (Catarina Laranjeiro é investigadora no IHC), sublinha o mesmo que os outros académicos ouvidos: tendo o texto sido aprovado pelo sistema de avaliação por pares que é o fundamento da atividade editorial académica, e não estando a editora a pôr em causa o caráter científico do texto, a decisão de retirar o capítulo "é errada". Mesmo sendo uma empresa privada, aponta Neves, "a Routledge nunca devia colocar preocupações financeiras, inerentes a um eventual processo judicial, diante do seu respeito pelos procedimentos de avaliação académica."

Tanto mais que, considera Paulo Peixoto, "se retiram o artigo estão a aceitar que quem acusa tem razão, que fizeram uma coisa que não deveriam ter feito."

Luís Aguiar-Conraria pega nessa asserção: "Imagino que o CES e Boaventura de Sousa Santos (BSS) estejam muito felizes. Afinal, isto parece confirmar a acusação de BSS de que este capítulo de livro não é mais do que uma acusação criminal disfarçada de publicação científica. É particularmente irónico, porque a principal acusação que se faz ao CES é o de ser um centro de ativistas disfarçados de cientistas sociais e que a investigação que fazem mais não é do que ativismo político disfarçado. Quando, pela primeira vez, esse ativismo disfarçado de ciência atingiu o CES, o CES conseguiu silenciá-lo."

Mas Miguel Lemos adverte: "Se o artigo científico não pode ser entendido como uma nota de culpa face aos visados que, de resto, se identificaram como tal, também a sua retirada de circulação que visa, uma vez mais, o encobrimento de determinadas práticas que, a serem verdade, põem em causa a credibilidade de décadas de produção científica e de atribuição de graus académicos no CES, não deve ser lido como uma prova de inexistência destes problemas. Aquilo a que assistimos, por via deste cancelamento é, uma vez mais, à tentativa de encobrimento destas realidades e ao silenciamento de quem, independentemente da forma como o faz, sobre ele decide falar."

De silenciamentos dizendo respeito a assédio sexual na academia e whistleblowers (denunciantes) sabe Miguel Lemos. Era professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do respetivo Conselho Pedagógico em 2022, quando as queixas dos alunos relativas à existência de casos de assédio sexual e moral por parte de docentes sobre alunos o levaram a, no seio do referido Conselho, propor, entre uma série de outras medidas, um inquérito anónimo para avaliar o problema. O resultado - a denúncia de 10% dos docentes da FDUL por assédio e discriminação - foi manchete do DN em abril de 2022. Mas esta revelação acabaria por ter como resultado um processo disciplinar contra si, instaurado pela reitoria a pedido da direção da faculdade, por alegadamente ter acusado falsamente um catedrático de pressionar a presidente da associação académica para deixar cair o assunto.

Num caso em que houve docentes alvo de múltiplas denúncias (sete concentraram mais de metade das 50 queixas validadas), o único processo disciplinar tornado público foi contra quem tentou contribuir para a revelação e resolução do problema. O processo acabaria arquivado, mas Lemos, que era docente contratado, acabou por sair da escola - foi ele, afinal, o "cancelado".

Ironicamente, o capítulo e o livro agora "despublicados" apresentaram-se, precisamente, como uma forma de "romper o silêncio".

No prefácio, as académicas americanas Sarah Ives e Annie Bartos escrevem: "Queremos gritar este 'segredo' para que todos oiçam, até ficarmos roucas, até que ninguém possa negar o problema e até que toda a gente se sinta em segurança."

Na introdução, as coordenadoras - uma das quais assina um dos capítulos do livro, sobre a experiência de assédio sexual que viveu enquanto antropóloga em trabalho de campo - martelam a mesma ideia: "Enquanto homens em posição de privilégio podem regularmente falar abertamente sobre a comissão de atos de violência sexual, as vítimas são muitas vezes forçadas a manter o silêncio. (...) O objetivo maior deste livro é criar uma rede ou espaço de apoio permanente para as autoras partilharem as suas experiências."

O facto de este objetivo ter sido comprometido e de um livro sobre o tão silenciado tema do assédio sexual na academia estar a ser ele próprio silenciado não parece porém agitar a academia britânica/anglo-saxónica, à qual pertencem as duas coordenadoras e outras autoras, nem os coletivos feministas a ela associados.

Uma das autoras do livro, Anna Bull, que assina o posfácio, e que além de docente de Educação e Justiça Social na Universidade de York é fundadora e dirigente do The 1752 Group - um grupo de lobbying e ativismo contra o assédio sexual na academia fundado em 2016 -, já qualificou, em declarações ao DN, em agosto, após a Routledge ter suspendido a venda do livro para alegada "revisão" e quando a retirada do capítulo já se prefigurava, a atuação da editora como "silenciamento". Mas agora, questionada pelo jornal sobre se o Grupo 1752 vai enquanto tal reagir à decisão da Routledge, diz apenas que este irá "apoiar a posição que as autoras do livro tomarem como coletivo".

Essa posição, informa, está em preparação, após uma reunião que teve lugar esta terça-feira.

Ana Nunes de Almeida não percebe aquilo que vê como passividade da academia britânica e de quem, no seio dela, visa combater o assédio. "No pasa nada?", perguntou no Twitter esta quarta-feira. "Que silêncio ensurdecedor."

Ao DN, a socióloga releva a estranheza de tanto "sossego", a fazer lembrar o encobrimento dos casos de abuso na Igreja Católica: "A falta de reação é ao mesmo tempo surpreendente e não é. São relações de poder que não se quebram. Estamos a falar de um universo de pessoas que fazem ciência e deviam fazê-lo em liberdade mas que estão tolhidas por relações de poder, porque a Routledge é uma editora poderosa, e as pessoas da academia precisam de poder publicar artigos científicos, não querem uma guerra. É a liberdade científica que está a ser posta em causa - e não há reação."

Pior ainda porque, lembra Susana Peralta, se pode vir a descobrir que as "queixas" apresentadas à editora, assim como a carta do advogado português e a carta de cease-and-desist, foram enviadas por ou em nome de uma instituição científica ou cientistas - que neste caso estão a colaborar com a censura. "É estranhíssimo não haver uma palavra sobre isto", reitera a economista.

Recorde-se que foi o próprio Boaventura de Sousa Santos a assumir, ao DN, em abril, ser ele a pessoa retratada, como "Professor Estrela" - a quem são atribuídos comportamentos de assédio, incluindo a proposta, a uma estudante de doutoramento estrangeira (que entretanto veio a público confirmar a acusação; trata-se deputada estadual brasileira Isabella Gonçalves, do Partido Socialismo e Liberdade), de trocar apoio académico por "intimidade" - no capítulo The walls spoke when nobody would. Outro investigador do CES, Bruno Sena Martins, declarou também ao DN que a personagem "O Aprendiz", à qual é imputada uma agressão sexual, pretende descrevê-lo. Ambos começaram por negar ter tomado alguma iniciativa legal junto da editora, mas quando, já após a decisão de retirada do capítulo, o DN os contactou, perguntando de novo se as cartas/queixas a que a Routledge se refere são deles, não responderam.

O facto de se terem assumido retratados no capítulo e de terem confirmado que o centro nele descrito é o CES, permitindo ao DN noticiar o capítulo nesses termos, possibilita a Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins que se possam apresentar - se foi o caso - junto da editora como alvo de imputações atentatórias da honra e bom nome.

Algo que as coordenadoras do livro quiseram claramente evitar. "Não quisemos levar as autoras a partilhar algo que pudesse indispô-las ou que pudesse ter implicações éticas, porque todos conhecemos o problema da culpabilização das vítimas no que diz respeito ao assédio sexual", escrevem Pritchard e Edwards na introdução. "Como em qualquer investigação empírica, o anonimato é totalmente garantido através da utilização de pseudónimos e não nomeando as instituições académicas. Sentimos que era ainda mais importante esse anonimato porque nos casos de má conduta sexual muitas vezes as pessoas que denunciam são alvo de descrença. No caso da experiência de uma das coordenadoras [Pritchard], houve até ameaça de processo por ter falado de ter sido agredida sexualmente (...). A experiência de Pritchard implicou que ela estava em condições de aconselhar as autoras sobre a importância do anonimato de modo a minimizar a reação de organizações e indivíduos a que aludiam nos seus capítulos."

Este cuidado aconselhado pelas coordenadoras seria sempre requisitado pela Routledge/Taylor & Francis, já que a editora tem no site uma página sobre processos de difamação na qual dá exemplos de situações em que foi deles alvo e advertindo: "Requeremos que os autores garantam que o seu trabalho não contém nada de difamatório, e que todas afirmações de facto são verdadeiras; e que a verdade de tais afirmações pode ser demonstrada através de referências a fontes ou justificada de outro modo."

Não se trata, na verdade, de um pedido - de acordo com o que se lê na referida página, a editora obriga a isso os autores mediante cláusula contratual: "Esta garantia, que faz parte do contrato que todos os nossos autores assinam, obriga os autores a indemnizar a Taylor & Francis "contra quaisquer perdas ou danos e ações, custas e procedimentos". (...) Por outras palavras, se a Taylor & Francis for processada por qualquer difamação contida no trabalho, em violação da garantia dada pelo autor, e perder, podemos reclamar do autor o custo total de quaisquer indemnizações que tenhamos de pagar e quaisquer custos legais."

E assevera: "Não publicaremos o seu trabalho se houver alguma suspeita de que o material pode ser difamatório."

O DN não conseguiu saber se as três autoras do capítulo "censurado" assinaram um contrato com estas características e se, tendo-o feito, se deram disso conta.

É em todo o caso um pouco difícil aceitar que um livro sobre assédio sexual na academia, com capítulos descritos como exercícios de "auto-etnografia", ou seja, consistindo na descrição de experiências das autoras na dupla condição de sujeitos/participantes e observadoras/cientistas, não fosse, pelo seu potencial explosivo, passado a pente fino pela editora. A não ser, claro, que escudando-se na garantia exigida aos autores no contrato, esta faça exatamente aquilo que diz não querer ser acusada de fazer: "Embora a garantia e a exigência de indemnização [que impomos aos autores] pareça um pouco pesada, a alternativa - de não impor a garantia - poderia deixar a T&F à mercê da acusação de que publicamos de forma negligente, irresponsável e sem o cuidado necessário."

Uma académica que prefere não ser identificada comenta: "Com a norma existente na academia, que é "publicar ou perecer" - a progressão dos académicos depende da publicação de artigos nas revistas e livros científicos - estas editoras têm um enorme poder. E são máquinas de fazer dinheiro - basicamente querem é fazer dinheiro." Outro académico, que igualmente solicita a não identificação, concorre: "É uma longa discussão, a forma como trabalham estas editoras - este caso é só mais um a evidenciar os problemas."

Seja como for, face a estas informações, é de questionar se autoras e coordenadoras chamaram a atenção da Routledge/T&F para o risco representado pelo capítulo The walls spoke when nobody would - o jornal não conseguiu obter esse esclarecimento.

"Elas devem ter tido alguma suspeita de que o capítulo pudesse causar problemas", reflete Paulo Peixoto. "Anonimato não é só não dizer o nome, mas também não fornecer elementos que permitam identificar de quem se fala. A questão do anonimato é mais complexa." E este investigador do CES acrescenta: "Quando o livro saiu, muita gente percebeu que aquele capítulo era sobre o CES."

Confessando-se curioso por saber como vão as coordenadoras e o coletivo de autoras agir perante o ultimato da Routledge (ou sai o capítulo ou o livro todo), o presidente da Associação Portuguesa de Sociologia põe-se no lugar de Pritchard e Edwards: "Se fosse coordenador de um livro e me dissessem "temos de tirar este capítulo", teria dificuldade em aceitar uma decisão dessas a não ser que achasse que tinha havido ali uma coisa menos bem feita. Se elas aceitarem retirar o capítulo para manter o livro, ficarão um pouco fragilizadas. Acho que ficariam mais na história, teriam mais impacto académico, se não aceitassem."

Susana Peralta e Ana Nunes de Almeida subscrevem. "Se eu sou editora cientifica de uma obra coletiva, atravesso-me pelos procedimentos de revisão por pares e outros que me levaram a incluir aquele capítulo", diz a economista. "Ou não me atravesso e faço uma declaração a dizer "enganei-me". Há sempre a possibilidade de haver falhas, temos de admitir essa hipótese."

O que faria? Ana Nunes de Almeida repete a pergunta, em eco. "Sinto-me um pouco desconfortável ao dizê-lo, porque parece que estou a armar-me, mas as pessoas não se podem calar. Sou uma investigadora, guio-me por princípios científicos e éticos - fazerem tábua rasa do meu trabalho não admitiria."

Termine como termine esta novela editorial, recorda José Neves, alguma coisa pode ter mudado. "A decisão da Routledge tem pouca importância no que respeita ao combate às práticas de assédio na universidade. O texto em causa levou o próprio CES a criar, e bem, uma Comissão Independente de averiguação de eventuais situações de assédio na instituição, comissão cuja criação respeita quer a credibilidade das autoras do texto quer a presunção de inocência dos visados."

Como escreve Anna Bull no posfácio deste livro que esteve à venda menos de três meses, citando a escritora americana Rebecca Solnit, "a esperança é um recurso indispensável para os ativistas. (...) É um dom que não tens de entregar, um poder que não tens de alienar. (...) Quando reconheces a incerteza, reconheces que podes influenciar o resultado - tu só ou tu em concerto com umas dezenas, ou vários milhões. A esperança é o abraço ao desconhecido e ao incognoscível, uma alternativa às certezas de otimistas e pessimistas."

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