Na apresentação do relatório final sobre os abusos sexuais na igreja, praticamente todos os elementos da Comissão Independente choraram ao som da pianista Maria João Pires. Foi a satisfação de dever cumprido e a dureza do tema?.Senti uma espécie de descalabro emocional, certamente muito tocado e encorajado pelo Impromptus [Schubert] da Maria João Pires. É uma música que me diz muito e tem a ver com o ambiente que se criou, parecia que depois daquele lodo, daquelas tragédias, emergia uma sensação de beleza, de esperança. Tocou-me imenso. Foi um turbilhão de emoções, o final de um ano de trabalho muito intenso sob todos os pontos de vista. É como se estivesse um ano inteiro a conter-me, a proceder como um investigador, um cientista, que o que faz é analisar o objeto com protocolos científicos, em que tem de se deixar as emoções à porta para poder ter capacidade analítica, interpretativa, etc. Naquele palco, aquela música, depois de termos dado voz às vítimas através dos testemunhos, foi extraordinariamente emocionante, muito especial..Ficou tudo ali?.Nos dias seguintes senti-me, e ainda sinto, muito afetada por toda a experiência que vivemos ao longo de um ano. Foi um processo transformador, o contacto com níveis de sofrimento atrozes, que deixam uma devastação muito grande, definitiva, na vida de uma pessoa. Pessoas iguais a nós, próximas..Fizeram questão de sublinhar essa proximidade quando leram alguns dos testemunhos..Quando fizemos esse intercâmbio, percebemos que a vítima podia ter a idade do Vasco [Ramos, sociólogo], ser meu filho, etc. Pensámos que muita gente presente na Gulbenkian não tinha noção do que estava em causa e poderiam associar a questão dos abusos sexuais às famílias pobres, desfavorecidas, ao Portugal profundo, longe das grandes cidades, dos meios favorecidos. Os testemunhos eram de uma plateia qualificada do ponto de vista da escolaridade, são de famílias privilegiadas, pois bem, estas coisas acontecem a todos..Sentiram que era fundamental ler esses testemunhos?.É evidente que foi discutido na equipa, mas é preciso enquadrar essa leitura metodologicamente. O princípio da Comissão Independente foi dar voz ao silêncio, pôr a vítima no centro da narrativa. Todo o modelo de análise foi construído em torno da experiência da vítima e o nosso lema era "dar voz ao silêncio". Tivemos uma abordagem quantitativa, em que explorámos toda a parte estatística, depois, a abordagem qualitativa foi conseguida através da análise de conteúdo das respostas às perguntas abertas do inquérito. Havia várias e as pessoas responderam com muito detalhe, com muito empenho. É espantoso esse acervo de respostas. Nenhuma pergunta aberta era de resposta obrigatória, mas tiveram o cuidado de responder..Testemunhos enquadrados nos locais onde os abusos ocorreram..Encontrámos sete espaços sociais de abuso, desde o seminário ao confessionário, achámos que era interessante ilustrar cada um deles. Os testemunhos eram ilustrativos dos tipos de abuso que tínhamos vindo a descrever e tornava-se necessário lê-los, por outro lado, tratava-se de dar a voz às vítimas..Vozes que revelaram a crueldade do abusador, com a transposição de todos os pormenores, havia até uma dureza na linguagem..Foi o que se passou, mas o que diz é interessante. Alguns setores, sobretudo os mais conservadores da Igreja criticaram os números do relatório, por várias razões, não vou entrar em discussão, todas elas podem ser contra-argumentadas, mas ninguém pôs em causa a veracidade dos testemunhos. Queríamos que as pessoas vissem do que se trata quando estamos a falar de testemunho (512 ). É claro que nem todos são contados com esse detalhe, mas têm uma consistência interna e que nos leva a crer que são verídicos. Ninguém inventa uma coisa daquelas..Esses testemunhos são de pessoas qualificadas, do ponto de vista académico e profissional, o que também pode querer dizer que são as que têm mais ferramentas para falarem do que sofreram..Era difícil chegarmos a meios desfavorecidos, às gerações mais velhas, às pessoas mais desqualificadas, que vivem no interior de Portugal, etc. Tentámos por vários meios, contactámos a Associação Nacional de Farmácias, centros de saúde, municípios, jornais locais, mas é claro que é preciso ter uma certa familiaridade com o inquérito online, ter voz, coragem. Muitas pessoas que não conseguiram preencher o inquérito telefonavam, também temos essas franjas na amostra. Mas temos a noção que quem respondeu é uma população socialmente privilegiada..As origens dessas pessoas não são assim tão privilegiadas, desde logo, porque grande parte foram abusadas nos seminários, que era uma forma das famílias pobres porem os filhos a estudar..Estamos a ver a posição social das vítimas hoje. Se compararmos com as profissões dos pais, não têm nada a ver, nem os níveis de escolaridade, o que também atravessa a mudança do Portugal contemporâneo, da massificação escolar, etc. Muitas delas vinham de meios desfavorecidas. Mas é de realçar que os níveis de escolarização da amostra são muitíssimo mais elevados que a população portuguesa (licenciatura, mestrado, doutoramento), o que também demonstra que estas coisas acontecem em meios com pessoas que hoje ocupam posições de relevo socialmente..Podemos concluir que conseguiram ultrapassar esse trauma de infância?.Não sei se conseguiram ultrapassar, conseguiram tomar a palavra. Mesmo as que falaram, mesmo as altamente escolarizadas, muitas delas ficaram com vida completamente destroçada, a nível afetivo, sexual, nem sequer estou a falar só da sexualidade. Marcou a vida afetiva, a capacidade de construírem um projeto de vida realizável. É algo que as persegue diariamente, sentem culpa, vergonha, é muito impressionante..É investigadora na área da família, de outras situações problemáticas, foi o trabalho mais duro do ponto de vista emocional?.Sem dúvida, estudei os maus-tratos a crianças nos anos 1990, o lado sombrio e perverso da realidade familiar, também a pobreza, um país tão profundamente desigual, mas nunca tive contacto com níveis de sofrimento tão grande..O que é que custou mais?.O que me custou mais foi ver a devastação que os abusos causam na vida de uma pessoa. Não tinha dúvidas que Portugal não era uma exceção, que iríamos encontrar situações de abuso sexual semelhantes às de países onde a Igreja encomendou estes estudos. O número não me surpreendeu e é muito maior que o que apontámos, o que surpreendeu foi ver a devastação na vida das pessoas. Tinha na minha cabeça uma espécie de escala de sofrimento, que relações de penetração destruiriam completamente a vida a uma pessoa comparativamente a outras situações de abuso, como toques; que são diferentes as situações que se prolongam no tempo das que acontecem uma e duas vezes. Pensava que havia uma devastação maior nos primeiros do que nos segundos, isso foi completamente posto de pernas para o ar. Há pessoas com a vida destruída por situações que se julgariam mais ligeiras, não são. Sentir o corpo tocado por alguém, que é um adulto, que está numa relação de poder, numa situação de domínio, é devastador..O poder do adulto versus a fragilidade da criança....Em geral, o abusador é uma pessoa sedutora, de quem se gosta, um adulto. A criança vê nessa pessoa alguém em quem pode confiar. É alguém de Igreja, uma espécie de representante de Deus na terra. E, de repente, vê-se no meio de uma situação de abuso. Perguntei muitas vezes nas entrevistas presenciais: "Percebeu o que tinha acontecido, que foi vítima de abuso sexual?" Respondiam que tinham a sensação de que era qualquer coisa muito estranha, que não deveria acontecer, agora, não sabiam dar nome às coisas. Tanto assim era, que a maior parte não contou ao pai, à mãe, sentiram que era qualquer coisa de terrível..Também manifestaram que se sentiam culpados..Muitas vezes, culpados por não conseguir fugir, não ter dito que não. Se calhar, era qualquer coisa neles próprios, por serem diferente dos colegas, ser tímido, que atraíram a atenção da pessoa abusadora, pôs-se a jeito. É evidente que, muitas vezes, a pessoa abusadora traduz aquilo que se está a passar para a criança como se o ónus fosse dela e não seu. "É a vontade de Deus, Deus quer que faças isto..."»..E um padre é alguém cujo comportamento a sociedade em geral não põe em causa..Exatamente. A criança tem medo de contar aos pais e algumas das que contaram levaram uma tareia. "O que estás a inventar? Não falas assim do senhor padre". Não acreditavam no que a criança estava a dizer. Os poucos que o denunciaram à hierarquia da Igreja não foram ouvidos, são camadas e camadas de ocultação..Entregam amanhã à Confederação Episcopal Portuguesa os nomes dos abusadores no ativo..Mas os bispos e os provinciais das congregações já têm todos os nomes. São os historiadores que vão entregar a lista de nomes em envelope fechado, assinaram um contrato de confidencialidade, de parte a parte. Os membros da CI não conhecem a lista de nomes. A mim não me interessam os nomes, trabalhei com perfis de abusadores, com a caracterização sociodemográfica dos abusadores, dos espaços dos abusos..Fala-se em 30 sacerdotes..Não vamos falar sobre números..Mas a Igreja já sabe quem são?.Sabe porque o trabalho nos arquivos fez-se com base em nomes retirados da nossa base de dados através dos testemunhos e que foram cruzados com o ano e o local de abuso. Consegue-se saber quem está na paróquia nesse ano. Nunca se pede à pessoa para escrever o nome do abusador - há quem o escrevesse, também quem decidiu identificar-se dizendo que estavam disponíveis para serem contactados. Os historiadores conseguiram chegar aos nomes através do cruzamento dos sítios e dos anos em que ocorreram os abusos, tinham de ir com os nomes para perceber o que se fazia quando havia uma denúncia de abuso..Ficaram com a sensação que os abusos são sistémicos, que seminaristas, padres e bispos passaram todos por isso?.Não se pode dizer que o abuso é sistémico, que aconteceu esmagadoramente, nem pensar. Agora, sistémica é a ocultação e isso permitiu que as formas de abuso se reproduzissem no silêncio, não houve travão. As estratégias tomadas pela hierarquia quando tinham conhecimento destas situações passavam por mudar o padre de paróquia, afastá-lo uns tempos, descredibilizar a vítima. E há evidentemente espaços que favorecem que estes abusos aconteçam..Que tipos de espaços?.Espaços de grande fechamento, com muitas crianças à guarda de um conjunto de adultos, onde há hierarquias de poder muito definidas, regras rígidas a que as crianças obedecem, onde não são consideradas como seres com direitos, é claro que estes meios são propícios a que aconteçam estes abusos. E quem fala em seminários, fala em confessionários fechados, a sacristia, a casa, ao carro do padre, etc, etc. Há contextos que favorecem estas situações e, por isso, tivemos a preocupação em caracterizá-los..Isso é sublinhado nas recomendações, que se devem diminuir esses espaços fechados..Exatamente, quando há abertura ao exterior, há um controle. Porque é que a família consegue esconder o que se passa no seu interior, porque é considerado um espaço privado. Quando se fecha a porta de uma casa, é difícil as pessoas aperceberam do que se passa lá dentro, nomeadamente em situações de violência doméstica. As pessoas abusadoras são muito ardilosas na forma de montar a teia de domínio..Perguntaram aos bispos se se tinham confrontado com situações de abuso sexual?.Havia dois tipos de perguntas e não foi só aos bispos [19 que responderam], também aos superiores das congregações religiosas (13 provinciais), uma sobre os abusos sexuais na igreja em geral e outra sobre se tinham conhecimento direto. Notámos logo uma diferença, os provinciais, talvez por estarem mais inseridos no terreno, estavam mais familiarizados com os abusos sexuais das crianças, mesmo que não fossem dentro da igreja. Agora, bispos que tivessem conhecimento direto, apenas oito o referiram e que falaram num total de 13 casos, o que é pouquíssimo comparado com os casos que recebemos. E disseram que tiveram contacto com abusos quando se tornaram bispos, não enquanto eram párocos, foi enquanto bispos e herdaram processos do antecessor ou lhes vieram parar às mãos queixas..Porque é que não terão admitido mais?.Falámos com os bispos quando estávamos a arrancar, em fevereiro. Foi a primeira vez que foram postos perante os casos, ainda estavam a familiarizar-se com o tema, muitos estavam desconfiados quando pedimos estas reuniões. Depois, quer eles quer nós, considerámos os momentos das entrevistas muito interessantes. A reconstituição das biografias dos bispos foi um material espantoso do ponto de vista sociológico..Falou-se se teriam sido confrontados com esses abusos enquanto seminaristas?.Não, nenhum referiu isso. Os que frequentaram os seminários menores [formação específica até ao secundário e que já não existe] disseram que nunca tinham ouvido falar. Falaram da disciplina, houve quem se referisse o livro Manhã Submersa [de Vergílio Ferreira], diziam que tinham passado por muitas daquelas situações, nunca se referindo a abusos sexuais mas à disciplina, à violência física..Tem grande expectativa em relação ao que a CEP vai dizer amanhã?.Não tenho altas expectativas nem baixas. Estamos à espera. Como investigadora, espero que tirem elementos de informação do relatório para intervir sobre a realidade, que este seja socialmente útil, que a questão dos abusos sexuais das crianças seja tida em conta em outros espaços, como a família..Criticou o bispo Américo Aguiar, responsável pelas Jornadas Mundiais da Juventude, por dizer que os abusos sexuais na igreja não "mancham" o evento. Defende que o tema deve fazer parte do debate..É um problema que não é ao lado ou fora da Igreja. Se a Igreja quer que se fale de abusos na Igreja e não dos abusos da Igreja, tem que deixar de ocultar estas situações, tem que trazer este problema para o seu núcleo duro, não é para ficar de fora das JMJ. Tenho muita curiosidade em ver o que se vai passar..Quais as pontas do estudo para pegar em termos científicos?.Deixa duas pistas muito interessantes. Por um lado, tentar apanhar outras franjas da população. Dever-se-ia fazer um estudo a nível nacional com uma amostra representativa da população portuguesa, com 18 ou mais anos, no sentido de saber a incidência e características dos abusos sexuais na infância e em vários locais de socialização familiar, como fizeram os franceses: família, amigos, escolas, acampamentos, colónias de férias, etc, Por outro lado, os historiadores deveriam ter mais tempo para estarem nos arquivos e fazerem um estudo mais completo, tiveram três meses para trabalhar..---.Conferência dos bispos Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa estará de manhã em Fátima, a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para esclarecimentos sobre o relatório e recomendações sugeridas à Igreja, entregando também, e por Dioceses, a lista nominal dos alegados abusadores referenciados pelas vítimas, realizada a partir dos dados obtidos pelo seu trabalho bem como pelo Grupo de Investigação Histórica. Ministério Público À tarde, entregam à Procuradoria Geral da República idêntica lista (só de quem ainda se encontra no ativo). Governo A CI reúne-se posteriormente com as ministras da Justiça e da Solidariedade Social, a pedido destas e a propósito das recomendações dirigidas à sociedade civil no relatório. Encerramento Não estão previstas declarações. Cessam assim as funções relativas ao estudo que lhes foi solicitado pela CEP em dezembro de 2021..ceuneves@dn.pt