"Tenho medo de que a legalização da canábis medicinal seja um presente envenenado"

Pais de crianças tratadas com canabidiol, um derivado de canábis, viram a aprovação, ontem, no parlamento, do uso terapêutico da planta com muita esperança. Mas também apreensão: alguns têm medo de que seja ainda mais difícil obter o produto.
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"Estou desejando que entre em vigor para ver os efeitos. Mas pelo menos tenho o alívio de já não estar a cometer uma ilegalidade, não é? Nesse aspeto fico completamente descansado. Já tenho a certeza absoluta de que ninguém me vai chatear."

Victor Mateus é vice-presidente da Associação Dravet e tem um filho de 15 anos com esta forma rara de epilepsia. Desde que em abril de 2017 lhe começou a dar óleo de canabidiol, um derivado da canábis conhecido pelo acrónimo CBD, notou extraordinárias melhoras: "Deixou de ter convulsões, começou a comer bem, a vestir-se sozinho, fala normalmente connosco. Tem tido uma evolução cognitiva extraordinária." Mas ele e a mulher estavam sempre angustiados por acharem que estavam a cometer um crime. Agora, crê, essa angústia acabou.

Teresa, que tem uma filha de um ano e meio com sindroma de West, outra epilepsia rara que causa dezenas de espasmos e convulsões, está menos confiante. "Eu ontem tremia com o resultado da votação. Ainda bem que aconteceu. Mas tenho um misto de sentimentos, porque tenho medo de que seja um presente envenenado, que isto traga uma série de burocracias e questões, e complique ainda mais. Será que me vão deixar continuar a dar o produto que estou a dar?"

Se até agora o estatuto legal do óleo de CBD é indeterminado - há loja e firmas portuguesas a importá-lo e a vendê-lo mas em abril um comerciante açoriano viu toda uma remessa proveniente de Espanha e fabricada na Eslovénia apreendida pela PJ, sob suspeita de conter THC (a componente estupefaciente da canábis) e a alfândega tem um comportamento errático no que respeita à importação --, a legalização do uso terapêutico poderá, teme Teresa, levar a que se restrinja a possibilidade de importação. "O projeto de lei aprovado diz que pode ser o laboratório militar a produzir os compostos para uso medicinal. O que é que isso quer dizer? O que é legalizar o canabidiol? Podemos importar? Ou só podemos consumir o que for produzido cá? Quero ser livre de poder dar à minha filha o que funciona, não é o que o Estado produz. Quem me diz que se for feito cá dá o mesmo efeito que aquele que estou a comprar nos EUA e que tanto bem está a fazer à minha filha? Repare, ela dantes só abria e fechava os olhos. Neste momento ela põe-se em pé. Está a começar a fazer fisioterapia para andar." Comove-se. "Ninguém vai fazer com que eu não chegue lá."

Proibido ou não?

Teresa tem a experiência de ver o produto barrado na alfândega portuguesa quando a filha tinha consumido a primeira embalagem e mostrado grandes melhoras. "Estava a tomar aquilo há um mês e meio e deixado de ter espasmos quando me disseram que o INFARMED [a autoridade portuguesa do medicamento] tinha de dar autorização para eu levantar aquilo." Tinha um papel da médica a dizer que era para uma criança com epilepsia mas não adiantava: tinha de ser o INFARMED a decidir, disseram-lhe. Contactou a autoridade do medicamento, primeiro por telefone e depois por mail. "Basicamente mandaram-me passear", contou ao DN, numa reportagem publicada em março.

Contactado pelo DN, na reportagem citada, o INFARMED não foi claro sobre se o produto é ou não proibido. "A substância química Canabidiol (CBD) não se encontra classificada como substância controlada nas tabelas das Nações Unidas (...) e por isso não consta das tabelas anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro [que elencam todas as substâncias psicotrópicas proibidas, ou seja, sujeitas a controlo]", diz o regulador, mas acrescenta: "A substância química Canabidiol (CBD), obtida por síntese química não é controlada, no entanto já o será enquanto extrato da planta" (o INFARMED publicou um desmentido sobre a reportagem do DN).

O óleo que Teresa manda vir dos EUA e o que Victor compra em Espanha são em princípio extrato da planta, o que fará deles ilegais à luz desta asserção. É essa a convicção da equipa médica que segue Duarte no Hospital de Santa Maria - de tal forma que não efetuam qualquer registo da terapêutica, a qual o chefe de pediatria do hospital, António Levy Gomes, disse ao DN ser muito eficaz. Porém em dezembro a Organização Mundial de Saúde exarou um comunicado certificando que, de acordo com uma revisão inicial da evidência científica, o canabidiol pode ter valor terapêutico, nomeadamente no controlo de espasmos e convulsões epiléticas. Estatui também que esta substância não tem potencial de abuso e dependência, pelo que não se justifica ser incluída nas tabelas de substâncias controladas associadas às Convenções da ONU sobre Estupefacientes.

Assim, de acordo com esta posição da OMS, o CBD não está incluído nas tabelas que servem de base à proibição das substâncias apelidadas "drogas" em Portugal, pelo que a sua produção, distribuição, venda e consumo não é ilegal. Mas não existindo para já uma certificação para uso terapêutico entra na categoria dos suplementos alimentares, o que significa que não é controlado como medicamento. A partir do momento em que lhe seja reconhecida essa qualidade, tal implicará, como teme Maria, um controlo mais apertado.

450 euros de CBD na Polónia

Victor Mateus está menos apreensivo. Espera que "as coisas mudem no hospital e que passe a estar disponível um produto melhor, purificado, para dar ao meu filho. Vi que nos EUA há um óleo mais puro mas é muito caro e ainda por cima é um risco mandar vir, porque pode ficar preso na alfândega."

Fora os portes, 450 euros. Foi o que Teresa pagou por cada par de "seringas" (é o nome que dá à embalagem, mas o óleo é ministrado oralmente) que foram barradas na alfândega polaca. "Tenho estado a mandar vir o canabiodiol dos EUA via Polónia [para evitar as complicações na alfandega portuguesa, já que se o produto entrar no país vindo de um país da UE não há controlo de importação] e passou duas vezes. Mas parece que mudou alguma coisa na lei polaca e pediram-me uma justificação. Enviei o papel da médica e eles disseram-me que como aquilo é para uso terapêutico mas não é para um cidadão polaco não podem desalfandegar."

Com óleo para duas semanas de administração à filha, Teresa sente-se "com a corda no pescoço. Se ela pára a medicação voltam as convulsões". Vale-lhe a empresa americana à qual compra o produto, que perante a atitude das autoridades polacas, que já tinham deixado passar duas encomendas, lhe disse que vai mandar mais uma remessa igual sem cobrar. "A diretora da empresa diz que isto é desumano. Conhece a situação da minha filha e quer ajudar, sabe que o canabidiol funciona."

O produto virá agora por outra rota europeia, a ver se passa. Exasperada, Teresa pede desculpa por falar alto ao telefone. "Fico tão perturbada... O que eu queria era ter um papel do INFARMED a dizer que posso importar para acabar com este filme, com este tráfico. O meu objetivo é só esse, ter uma autorização. Quanto à lei que foi aprovada, queria ter a noção do que é esta legalização." E confessa um sonho: que haja comparticipação. Pelo menos até que o único medicamento criado para o tipo de afeção de que a filha sofre, o Epidiolex (à base de canabidiol), tenha autorização de entrada no mercado europeu. Mas, por enquanto, tem medo. "De desembrulhar este presente, do que está lá dentro."

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