Defesa. A "tempestade" que dois ministros não viram a instalar-se

Os sinais estavam todos lá, houve avisos públicos e acórdãos do Tribunal de Contas, mas o ministro Cravinho e depois Helena Carreiras mantiveram a confiança em Marco Capitão Ferreira e Alberto Coelho, hoje os dois principais arguidos da operação "Tempestade Perfeita", que investiga corrupção no ministério da Defesa.
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De outubro de 2018 (XXI Governo) a março de 2022 (XXII Governo) o ministro da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, teve uma "Tempestade Perfeita" no seu ministério. E durou todo o seu mandato.

Além de 45 contratos feitos pela Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional - de 2019 a 2021 - que foram investigados na operação judicial com esse nome, houve outras situações (ver lista em baixo), não criminais, para já, no mínimo insólitas.

Como a de ter uma "comissão clandestina", noticiada pela Visão, que garantiu ser pro bono, para fazer um estudo sobre a economia de defesa. A coordená-la estava o ex-secretário e Estado, Marco Capitão Ferreira, alvo de buscas e arguido no já referido inquérito criminal.

Também não soube, segundo garantiu aos deputados na audição parlamentar, que Capitão Ferreira, o homem que escolheu para protagonizar uma reestruturação na indústria pública de defesa, tinha recebido, noticiou o Expresso, 61 mil euros por cinco dias, para escrever um parecer sobre um negócio que estava anulado.

Esse pagamento foi autorizado por Alberto Coelho, ex-diretor-geral da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), um dos 73 acusados da operação "Tempestade Perfeita".

João Gomes Cravinho entregou o ministério a Helena Carreiras, já com a investigação judicial em curso, com Coelho sob suspeita por causa da derrapagem nas obras de reabilitação do antigo Hospital Militar de Belém (HMB), mas também com a tão apregoada reestruturação da IdD - Portugal Defence (holding que gere as participações do Estado na indústria de defesa) sem contas apresentadas.

A confiança em Marco Capitão Ferreira e Alberto Coelho era sólida para a nova Ministra. Até porque ambos tinham sido seus convidados para dar aulas no Instituto de Defesa Nacional (IDN), quando ainda o dirigia em 2021.

Nesta altura, recorde-se, Coelho já tinha sido alvo da auditoria da Inspeção-Geral da Defesa Nacional (IGDN) e eram-lhe imputadas várias responsabilidades e ilegalidades financeiras, que foram noticiadas publicamente.

Foi Helena Carreiras que convidou, segundo assumiu a própria no parlamento, Capitão Ferreira para secretário de Estado e ainda o apoiou num recurso contra a decisão do Tribunal de Contas, que chumbou um contrato de cinco milhões a pagar à IdD pela Marinha, para a gestão das aquisições dos navios patrulha oceânicos.

Só recentemente e em reação as casos que foram vindo a público, Helena Carreiras anunciou ter reforçado os mecanismos de fiscalização no seu ministério, assim como pedido ao TdC uma auditoria à IdD, cuja gestão nunca questionou, apesar dos sinais de alerta.

Operação "Tempestade Perfeita"

Os 45 contratos sob suspeita que foram apresentados na acusação do Ministério Público (MP), deduzida no passado dia 10 de agosto, foram todos executados no mandato de João Gomes Cravinho.

O primeiro em setembro de 2019 e o último no início de 2021. Foram acusadas 73 empresas e pessoas, sete com responsabilidades no MDN, entre as quais Alberto Coelho, o ex-diretor-geral da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional; Paulo Branco, ex-diretor de serviços da gestão financeira; e Francisco Marques, ex-diretor de serviços de infraestruturas e património.

A conjugação destes três dirigentes proporcionou, no entender do MP, a tal "Tempestade Perfeita" para os alegados esquemas, que decorreram em plena pandemia, a troco de contrapartidas, nas contratações de empresas que terão lesado o Estado em cerca de um milhão de euros.

A derrapagem no Hospital Militar de Belém

É quase um "case study" de, no mínimo, um exemplo de teimosia. Já era público e notório que tinha havido uma derrapagem nos custos das obras de reabilitação do antigo HMB - de 750 mil euros para 3,2 milhões - e Cravinho continuava a debitar no parlamento frases como "isso é dinheiro que não se perde" e que representava "um importante ativo para o país".

Ainda nomeou, por sugestão de Marco Capitão Ferreira, para presidente do Conselho de Administração de uma das empresas de defesa participada pelo Estado, a ETI, Alberto Coelho, que uma auditoria da IGDN já tinha sinalizado como responsável pelo desvio. Admitiu, mais tarde, que essa nomeação tinha sido um "erro", mas justificou-a pelo facto de, nessa altura, não haver suspeitas de crimes.

Contrato de cinco milhões

O contrato arquitetado por Marco Capitão Ferreira para financiar em cinco milhões a IdD, que presidia a convite de Cravinho, tinha evidentes ilegalidades. Nem o ministro, nem o restante governo, que o aprovou em Conselho de Ministros, viram a evidência.

Previa o pagamento pela Marinha de cerca de cinco milhões de euros à IdD para a gestão do programa de aquisição dos seis navios patrulha oceânicos. Um serviço que a Armada tem competência técnica e legal para fazer, sem encargos. Foi chumbado duas vezes pelo Tribunal de Contas.

A reestruturação das indústrias de defesa

Prometida em 2020, com Marco Capitão Ferreira à cabeça da holding IdD, a restruturação das indústrias públicas de defesa ainda está para acontecer.

Depois de gastar 330 mil euros no primeiro ano em obras (parte delas feitas por uma das empresas envolvidas na Tempestade Perfeita) na nova sede e consultorias, ainda deixou uma dívida de 3,6 milhões de euros às Finanças.

Parecer a peso de ouro

Em março de 2019, Marco Capitão Ferreira recebeu 61 mil euros por um parecer que fez em cinco dias, pago por Alberto Coelho, sobre os contratos de manutenção dos helicópteros EH-101, depois destes terem já sido revogados pelo Ministro. Cravinho disse no parlamento que desconhecia.

Assessor fantasma

Em fevereiro de 2021, Marco Capitão Ferreira contratou José Miguel Fernandes, ex-presidente do Arsenal do Alfeite que se tinha demitido do cargo por "motivos pessoais", para assessorar a IdD e elaborar um estudo, no qual, segundo o semanário Expresso, não terá participado. Terá sido uma assessoria 'fantasma', pela qual recebeu sem trabalhar.

Ilegalidade do contrato chumbado

Três meses depois de tomar posse, o Tribunal de Contas chumbou um contrato de cinco milhões de euros que obrigava a Marinha a pagar à IdD a gestão do concurso para a compra dos seis navios patrulha oceânicos (NPO´s).

A ideia tinha sido de Marco Capitão Ferreira, quando presidiu a IdD, com o apoio de Cravinho. Porém, a Ministra ignorou os avisos que vieram a público, não só de especialistas em declarações ao DN, como do acórdão do próprio TdC, e apoiou o seu secretário de Estado no recurso contra a decisão.

"Riscos de inibição da concorrência", "grande permeabilidade entre cargos governativos no setor da defesa e cargos de gestão nas empresas controladas pelo Estado nesse mesmo setor", "possíveis financiamentos encobertos de entidades/sociedades públicas" e "situações de distorção do mercado interno", foram alguns desses alertas.

E o Tribunal de Contas voltou chumbar, sublinhando que este contrato estava "fulminado de nulidade".

Aulas no IDN

Alberto Coelho tinha sido alvo da auditoria da Inspeção-Geral da Defesa Nacional (IGDN) e eram-lhe imputadas várias responsabilidades e ilegalidades financeiras, que foram noticiadas publicamente, quando Helena Carreiras, como diretora do Instituto de Defesa Nacional (IDN), em 2021, o convidou para lecionar uma aula numa pós-graduação em direito de Defesa Nacional.

"A nova abordagem de investimentos decorrente da Lei de Programação Militar", foi o tema.

Também Marco Capitão Ferreira foi convidado para dar duas aulas nesse curso sobre "Gestão de Economia de Defesa".

Contas da IdD

Quando convidou Marco Capitão Ferreira para secretário de Estado este tinha deixado a IdD, que prometera reestruturar, com as contas de 2020 e 2021 por aprovar (as de 2021 só vão ser aprovadas na assembleia geral em setembro), com uma dívida às finanças de 3,6 milhões e com uma despesa em obras, mobiliário e consultorias no valor de 330 mil euros; e sem nenhuma renda paga (até hoje), apesar de estar instalado num imóvel do Estado violando o princípio da onerosidade, previsto na Lei de Orçamento do Estado.

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