Cravinho nomeou ex-diretor sob suspeita para empresa da Defesa

"Precipitada e imprudente" é como o PSD classifica a escolha de Alberto Coelho, o ex-diretor-geral do ministério que uma auditoria interna apontou responsabilidades na derrapagem de mais de 2 milhões de euros nas obras de reabilitação do antigo Hospital Militar de Belém.

O ministro João Gomes Cravinho nomeou o ex-Diretor-geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN) para Presidente do Conselho de Administração da ETI (EMPORDEF - Tecnologias de Informação, S.A), uma empresa do universo da holdind IdD Portugal Defence (Indústrias de Defesa), detidas pelo Estado.

No passado mês de fevereiro Alberto Coelho, um dos mais antigos quadros de topo do ministério da Defesa, não foi reconduzido no cargo que ocupava desde 2015 e a sua saída antecedeu em cerca de um mês o envio à Assembleia da República de uma auditoria interna da Inspeção-Geral do ministério da Defesa Nacional (MDN) que lhe apontou responsabilidades pela derrapagem de mais de dois milhões de euros na empreitada de reabilitação do antigo Hospital Militar de Belém, transformado em Centro de Apoio Militar para doentes com covid-19.

Em vez dos 750 mil euros que foram inicialmente avançados pelo Ministério da Defesa, acabaram por ser gastos 3,2 milhões (com IVA).

As alegadas irregularidades detetadas e os indícios de ilegalidades levaram mesmo Cravinho a enviar o relatório ao Tribunal de Contas (TdC), onde deu entrada a 3 de março, segundo fonte oficial deste organismo.

"Os atos e procedimentos administrativos e financeiros auditados denotam inconformidades legais", principalmente devido à "falta de evidência do pedido expresso à tutela para autorizar a despesa (...) e consequente ausência de competência por parte do Diretor-geral da DGRDN para autorizar a despesa, escolher as entidades a convidar, aprovar as peças do procedimento e decidir a adjudicação", concluía a auditoria confidencial enviada ao parlamento por João Cravinho a 31 de março e citada pela TSF a 7 de abril, que noticiou as principais falhas encontradas e centrava em Alberto Coelho a responsabilidade pelas mesmas.

Poucos dias depois destas conclusões se terem tornado públicas, numa fuga de informação que está a ser investigada pelo Gabinete Nacional de Segurança, "a 29 de Abril o Senhor Ministro da Defesa Nacional formalizou o pedido, à Presidente da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP), de avaliação curricular e de adequação de competências da seguinte personalidade indigitada para o Conselho de Administração da EMPORDEF - Tecnologias de Informação, S.A.: Alberto António Rodrigues Coelho - indigitado para Presidente", pode ler-se no relatório da CreSAP, entidade que avalia a curriculum e a adequação para o cargo dos gestores públicos indigitados pelo governo e deu luz verde à nomeação, não havendo qualquer referência no parecer à auditoria.

"Pessoa extremamente qualificada e capaz"

Sem aguardar pela avaliação do Tribunal de Contas, João Gomes Cravinho deu assim uma prova de confiança ao seu ex-diretor-geral em relação a quem, aliás, tinha proferido rasgados elogios no parlamento, quando informou os deputados de que não iria renovar a sua comissão de serviço, não porque estivesse em causa o seu desempenho, mas porque pretendia reformar a DGRDN.

No parlamento, onde, aliás, foi justificando o desvio e questionando se era mesmo uma derrapagem, o governante reiterou que Coelho é uma "pessoa extremamente qualificada e capaz" e "prestou enormes contributos ao Ministério, que lhe estará sempre grato".

Sobre as "eventuais irregularidades", frisou, "caberá ao Tribunal de Contas decidir". "Do meu lado, retirei uma consequência muito clara: os mecanismos instituídos não corresponderam àquele momento, àquela experiência e por isso estamos a desenvolver uma reforma naquela estrutura e no seu pessoal", sublinhou.

Nesta altura, o ministro já tinha recebido várias informações, designadamente do seu secretário de Estado, Jorge Seguro Sanches, em relação à atuação duvidosa de Alberto Coelho - descrito num memorando interno, noticiado pelo DN.

"Parece-nos, no mínimo, uma decisão precipitada e imprudente, principalmente porque vinda de alguém que tinha prometido tirar todas as consequências", assinala Carlos Eduardo Reis, vice-coordenador para a Defesa Nacional do grupo parlamentar do PSD.

Este deputado, que tem acompanhado este processo, não entende "como é feita esta nomeação quando ainda não se sabe qual a avaliação do TdC em relação a um desvio enorme de dinheiros do Estado". Recorda que foi o PSD quem "mais escrutinou" este caso e que "está expectante quanto às conclusões do TdC".

Quem tramou quem?

O Gabinete do Ministro remeteu as questões colocadas pelo DN sobre esta nomeação para a IdD, cujo presidente, Marco Capitão Ferreira, numa resposta validada por Cravinho, assegura que "a nomeação do atual Presidente do Conselho de Administração da ETI, S.A. cumpriu todos os preceitos legais, e desde logo os resultantes quer do regime jurídico das empresas públicas quer do Estatuto do Gestor Publico, tendo a nomeação, como é evidente, sido sujeita à apreciação da CRESAP, que emitiu parecer favorável, nos termos aplicáveis e no exercício das suas competências próprias, de forma independente".

Este responsável da IdD, que foi assessor jurídico do ex-ministro da Defesa Nuno Severiano Teixeira (igualmente de um governo PS) e é um dos exemplos da "porta giratória" de quadros do gabinete da tutela para empresas do setor, nega também que haja qualquer "conflito de interesses" entre as novas e as anteriores funções de Alberto Coelho, pois a ETI é 100% detida pelo Estado.

A apimentar ainda mais este caso está o facto de o ex-diretor-geral de Recursos da Defesa (um dos cargos mais poderosos do ministério) ser dirigente do CDS (é presidente do Conselho Nacional de Jurisdição) e de ter sido substituído pelo jurista Vasco Hilário que era "técnico especialista" no Gabinete de Seguro Sanches.

Entre os centristas próximos de Alberto Coelho, que não quis falar ao DN, ganha lugar a tese segundo a qual o secretário de Estado preparou o caminho para o seu adjunto, próximo do PS, ganhar aquela cadeira de poder.

Alberto Coelho, garante uma dessas fontes que acompanhou o processo, "nem sequer foi ouvido diretamente na auditoria da IGDN, tal como não foram ouvidos o responsável do Exército, que comandou as obras, nem a secretaria-geral do ministério, que autorizou os pagamentos, sem que tivessem identificado qualquer irregularidade".

A decisão de Cravinho, contraditória com as suspeitas levantadas da auditoria do próprio ministério e com a convicção de Seguro Sanches, é interpretada, pelos defensores de Alberto Coelho, como um "sinal claro de que foi pressionado" pelo secretário de Estado "e que está agora a tentar corrigir".

Num despacho enviado, em julho ao ministro em julho de 2020, a que o DN teve também acesso, Seguro elencou um vasto conjunto de procedimentos sobre esta empreitada que lhe suscitavam suspeitas, "questões não esclarecidas, "informação incompleta", dando nota da dificuldade em obter informações do então diretor da DGRN.

Segundo a TSF, na auditoria, é referido que Alberto Coelho, ainda DGRDN, alegou que "os procedimentos administrativos foram validados previamente pela Secretaria-Geral do Ministério da Defesa Nacional ao abrigo de uma alínea do Decreto-Lei 10-A/2020".

A alínea em causa diz que "os pedidos de autorização da tutela financeira e setorial, quando exigíveis por lei, consideram-se tacitamente deferidos, na ausência de pronúncia, logo que decorridas 24 horas após remessa, por via eletrónica, à respetiva entidade pública com competência para os autorizar".

No contraditório pedido pela Inspeção-Geral, Alberto Coelho nota que informou o ministro numa apresentação presencial sobre o início do procedimento e autorização para a realização de despesa, tendo recebido permissão da parte do ministro que num despacho de 20 de março de 2020 dava indicação para "avançar a todo o gás".

Mas a Inspeção entendeu que tem de haver um pedido formal de autorização de despesa e que "o avançar a todo o gás" presente no despacho é "uma mera orientação, não contendo as autorizações e as delegações de competências alegadas por aquela Direção-Geral".

Ao DN, quando confrontado com as informações contidas no memorando, que indicavam que Alberto Coelho tinha mesmo solicitado a respetiva autorização para despesas extra, a pedido do Exército, o Gabinete de João Cravinho refutou. "Não foram autorizados nem tão-pouco propostos ao governo trabalhos extra do Exército", declarou fonte oficial.

Resta ainda saber se o imóvel, em que foram investidos mais de três milhões de euros, será, tal como afirmou o Ministro, um investimento "que não se perde" e que vantagens trará ao Estado / Forças Armadas a sua anunciada cedência, por 50 anos, à Câmara Municipal de Lisboa e à Santa Casa da Misericórdia.

De acordo com a auditoria, as verbas despendidas saíram do orçamento da Lei para as Infraestruturas Militares (LIM)."Foi referido que o pagamento pela LIM ocorreu porque não havia orçamento de Estado disponível e que essa era a única fonte de financiamento disponível", lê-se no relatório, assinalando que estas despesas não podem ser afetas a esta lei.

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