Hospital de Belém. Memorando interno revela início da derrapagem
A derrapagem nas obras de requalificação do antigo Hospital Militar de Belém (HMB), atualmente designado Centro de Apoio Militar de Belém covid-19 (CAMB), começou logo no início da empreitada e o acréscimo de custos terá sido autorizado pelo próprio ministro da Defesa Nacional, segundo um documento oficial do ministério.
A despesa com estas obras, recorde-se, foi de mais do triplo da previsão inicial, atingindo os 3.2 milhões de euros (com IVA). João Gomes Cravinho garante que não aprovou nenhuma despesa a mais que o orçamentado.
De acordo com um memorando interno a que o DN teve acesso, assinado pelo major-general Jorge Corte-Real Andrade, subdiretor da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), datado de 27 de março de 2020 (os trabalhos tinham sido iniciados a 20), "o âmbito original dos trabalhos" consistia na "renovação dos pisos 2, 3 e 5 criando capacidade potencial de até 150 camas para apoio a situações clínicas de gravidade ligeira ou assintomática, ou a situações de fragilidade socioeconómica", com um "orçamento de 750 mil euros".
DestaquedestaqueO Exército, a quem foi atribuída a coordenação das obras, solicitou logo à partida "trabalhos extra"
No entanto, segundo este documento, endereçado aos gabinetes de João Gomes Cravinho, e do secretário de Estado Jorge Seguro Sanches, o Exército, a quem foi atribuída a coordenação das obras, solicitou logo à partida "trabalhos extra" no valor de "cerca de 420 mil euros: na rede elétrica; equipamentos de climatização; estores; gás e águas sanitárias; quatro elevadores" .
Após uma visita ao local, a 26 de março, do major-general médico Carlos Lopes, chefe da direção clínica deste CAMB, foram ainda somados mais 470 mil euros em "trabalhos adicionais", com a reabilitação de mais um piso, para reuniões, armazém e farmácia, segurança privada, a reativação da morgue e "alimentação com serviço de nutricionista".
Ao todo houve, logo em março, estavam as obras a começar, um desvio de mais 890 mil euros em relação aos 750 mil indicados, mas que acabou por, no final, crescer para 1,8 milhões a mais (2,4 com IVA).
"A DGRN, na sequência do despacho de autorização de SEXAMDN e das orientações de SEXASEADN, tem dado seguimento aos trabalhos atrás mencionados, dentro dos prazos estabelecidos", informa memorando.
Confrontados com estas informações de um documento oficial, tanto o ministro como Seguro Sanches negam ter permitido os "extra" citados. "Não foram autorizados nem tão-pouco propostos ao governo trabalhos extra do Exército", diz o gabinete de Gomes Cravinho.
"Nunca foi autorizada nem proposta nenhuma despesa extra acima dos 750 mil euros. Não é verdade o que está neste documento. O Exército nem sequer tutela a DGRDN, que nunca podia ter autorizado esta despesa", garante o secretário de Estado da Defesa.
Citaçãocitacao"Foi por causa destas e de outras irregularidades detetadas neste processo que o senhor ministro decidiu, sob minha proposta, ordenar uma auditoria e enviar o seu relatório ao Tribunal de Contas."
Seguro Sanches vai mais longe: "Foi por causa destas e de outras irregularidades detetadas neste processo que o senhor ministro decidiu, sob minha proposta, ordenar uma auditoria e enviar o seu relatório ao Tribunal de Contas." Cravinho disse a 17 e a 23 de fevereiro que o tinha remetido, mas, segundo fonte oficial do tribunal, só chegou esta quinta-feira àquela instituição.
Num despacho enviado, em julho ao ministro, a que o DN teve também acesso, Seguro elenca um vasto conjunto de procedimentos sobre esta empreitada que lhe suscitam suspeitas, "questões não esclarecidas, "informação incompleta", dando nota da dificuldade em obter informações do então diretor da DGRN, um sénior do ministério, Alberto Coelho" - entretanto afastado do cargo por Cravinho, que não lhe renovou a comissão de serviço no final do mês passado.
Citaçãocitacao"É claro no processo que as aberturas de procedimento por ajuste direto, a escolha dos contratantes e as autorizações de despesa são despachados pelo Sr. DGRDN, sem que haja qualquer menção quer no despacho, quer no processo, ao seu pedido de autorização à tutela"
"É claro no processo que as aberturas de procedimento por ajuste direto, a escolha dos contratantes e as autorizações de despesa são despachados pelo Sr. DGRDN, sem que haja qualquer menção quer no despacho, quer no processo, ao seu pedido de autorização à tutela", frisa o secretário de Estado.
Neste despacho, que Cravinho assina um "concordo" e assinala ter visto com "elevada preocupação", a 23 de julho de 2020, o secretário de Estado Seguro Sanches conclui que "todas as aberturas de procedimentos e adjudicações foram feitas pelo Sr. DGRDN tendo as mesmas sido comunicadas a 13 de julho (e após insistência nesse sentido)", propondo o "envio desta informação à Inspeção-Geral de Defesa Nacional para a realização de uma auditoria".
A título de exemplo, são incluídos dois despachos, assinados pelo diretor de serviços, Paulo Branco, com a aprovação de Alberto Coelho, no mesmo dia (5 de abril) a autorizar uma adjudicação de 750 mil euros, sem IVA, a uma empresa e adjudicações a três empresas, no valor de 1 848 064,46 euros, a que acresce IVA.
O ministro João Cravinho tem sido confrontado no parlamento com esta derrapagem, principalmente pelo PSD, mas publicamente assumiu sempre uma atitude de desvalorizar a situação (o que acaba contrastar com a "elevada preocupação", com que concordou com o despacho de Seguro).
Primeiro, surpreendeu os deputados afirmando que custos acrescidos "é dinheiro que não de perde". Na última audição interrogou-se sobre "o que é uma derrapagem".
Está prevista a cedência deste imóvel à Câmara Municipal de Lisboa e à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para a criação de uma Unidade de Cuidado de Saúde Continuados, na qual um dos pisos poderá ser reservado para antigos combatentes.
Não se conhecem ainda os contornos deste processo, sendo que João Cravinho tem deixado implícito nas suas intervenções sobre o desvio do orçamento, que o imóvel ficará valorizado nesta transação.