Portugal vai ter testes de imunidade. O que são e como podem ajudar a economia?
Já lá vão cerca de três meses desde que o mundo conheceu o vírus e a doença dele decorrente que vieram abalar o bem-estar de todos os países. Com perto de 64 mil mortes confirmadas globalmente, grande parte das nações foi obrigada a parar as suas escolas, as suas empresas e fronteiras. E já é certo que as mazelas deixadas pela pandemia de covid-19 serão devastadoras na economia mundial. Mas "o país não precisa de parar na totalidade" se procurarmos uma solução na ciência, além da vacina (que parece estar longe de se conhecer), lembra o infecciologista Jaime Nina.
Falamos de testes de imunidade, que a Direção-Geral de Saúde (DGS) admitiu este sábado, em conferência de imprensa, já estarem em estudo. Não sendo testes de diagnóstico, "são importantes para saber quantas pessoas já tiveram a infeção" e, assim, "poder por uma parte do país a regressar à normalidade", diz o especialista.
"Imagine que falamos de ratos nas nossas casas" e que este é, em forma de analogia, o vírus a combater. "Um teste direto [aquele que utilizamos para diagnosticar a covid-19] serve para ver se o rato está lá em casa, mostra-nos a fotografia dele a um canto, comprovando a sua presença", explica o infecciologista Jaime Nina. Mas há ainda os "testes indiretos", através dos quais "seguimos as pegadas do animal, mesmo que ele não esteja visível por lá". "Se não conseguirmos ver ratos, mas virmos coisas roídas ou fezes correspondentes ao animal, podemos saber que ele anda pela casa", acrescenta. Estes são os testes imunológicos.
Os atuais testes de diagnóstico "são ótimos para detetar a doença aguda, mas péssimos para dizer qual a percentagem da população que é resistente". Ou melhor, aquela que desenvolveu anticorpos - moléculas fabricadas pelo sistema imunitário, "que funcionam como balas que eliminam os agentes invasores". E aqui vale lembrar que "os anticorpos são estimulados pelo vírus", por isso, só serão desenvolvidos após o mesmo ter passado pelo nosso sistema e ter sido, posteriormente, combatido. O que os testes de imunidade são capazes de mostrar é se estes anticorpos existem no organismo do doente. No caso de a resposta ser positiva, considera-se a pessoa em causa imune ao vírus.
O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, juntamente com outros países, vai avançar com a produção destes exames. Mas já estão a ser aplicados em países como Singapura e China, além de que foi aprovado pela FDA, a agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, alguns testes também pela Agência Europeia do Medicamento. Contudo, por cá, "aguardamos a aprovação do Infarmed".
Raramente os testes de diagnóstico concluem falsos positivos, mas pode acontecer e com os testes imunológicos não é exceção. Ao fazer a examinação, o teste pode "fazer cruzamentos com outros tipos de coronavírus, que provavelmente todos nós já tivemos", representando assim um falso positivo. Lembre-se que a covid-19 é a doença decorrente de um tipo específico de coronavírus.
Mas é precisamente a pensar nos falsos positivos e nas consequências daí decorrentes que a aplicação destes testes é antecedida por estudos, "para sabermos se são fiáveis ou não". Porque "mesmo que tenhamos falsos positivos numa percentagem relativamente baixa", estes dados iriam "falsear completamente a imagem que se tem do país".
Também devido ao falso diagnóstico é que o especialista Jaime Nina receia que os testes sejam vendidos através das farmacêuticas, "que não são agentes beneméritos, procuram lucro". "Pode dar uma falsa sensação de segurança a quem compra o teste, que tem falso positivo", concluindo erradamente que tem os anticorpos necessários para combater o vírus.
Até agora, diz, "um dos grandes obstáculos na investigação deste vírus é não ter sido encontrado um bom modelo animal" para auxiliar a mesma. "Ratos estão fora de questão", porque são resistentes ao vírus. "O chimpanzé pode ser um ótimo candidato, porque é parecido com o Homem, é um animal grande e com uma vida longa, mas é um animal caríssimo para se ter em laboratório", explica.
Quando a DGS a anunciou os estudos que estavam em curso para a criação de exames imunológicos, não indicou detalhes sobre como seria a sua aplicação nem quem teria prioridade no processo. No entanto, Jaime Nina acredita que há dois grupos principais a ter em conta.
Um deles são as crianças, "possibilitando a reabertura das escolas" e menos improvisos no sistema de ensino, que afetam milhares de famílias. Por outro lado, aqueles que estão na fila da frente do combate, os profissionais de saúde. "Se garantirmos que são imunes, podemos gerir os recursos de forma completamente diferente", diz o especialista. Aliás, na quinta-feira, o secretário de Estado da Saúde avançava que havia 1124 profissionais de saúde entre o total de infetados em Portugal. Sete médicos e um enfermeiro estavam internados nos cuidados intensivos.
Esta pode não ser a única forma de fazer com que as cicatrizes na economia do país e do mundo sejam menores, "mas é a mais segura", garante o infecciologista. Por isso mesmo, diz que "era um teste que estava a faltar" e que "é fundamental para tomar decisões de saúde pública".
O que nos pode dar, afinal, a introdução destes testes? Um regresso, ainda que lento, à normalidade, diz o especialista. "Por exemplo, uma das primeiras medidas tomadas em Portugal (e em grande parte do mundo) foi fechar as escolas e mandar as crianças e jovens para casa. Nós sabemos que há muito poucas crianças diagnosticadas, mas não são testadas porque não têm sintomas ou porque são naturalmente resistentes ao vírus? Neste momento, ninguém sabe. O que a realidade nos mostra é que elas são normalmente assintomáticas quando contraem o vírus e se isso for verdade significa que já estão vacinadas, já não irão contrair o vírus. Se fizermos testes de imunidade a todas e descobrirmos que 80% já teve a infeção, qual é a lógica de as manter em casa e com as escolas fechadas?", esclarece.
Além disso, quando comparados com os testes de diagnóstico, "são mais rápidos, porque há maneiras de os transformar em testes que permitam respostas em 10 ou 15 minutos". E também "muitíssimo mais baratos": se "os testes diretos são avaliados em centenas de euros [apesar de serem subsidiados], os indiretos medem-se em cêntimos e não euros", relativamente ao preço que é vendido às farmácias.
O que são três meses na história de uma pandemia? Tempo insuficiente para conhecer o seu criador. Por isso mesmo, pouco se sabe sobre o novo coronavírus e nem aqueles que integram a contagem de casos recuperados têm certezas sobre o que lhes reserva o futuro. Podemos ou não ser imunes? E contraí-lo novamente?
Jaime Nina diz que "há alguma evidência indireta de que uma pessoa que foi infetada provavelmente não voltará a estar", mas no caso de acontecer já criou os anticorpos necessários para o combater. Também "a evidência de outros agentes diz-nos que sim: as pessoas que tiveram SARS [coronavírus relacionado à síndrome respiratória aguda grave] são naturalmente resistentes e nunca mais se infetam, ficaram imunizadas para o resto da vida", acrescenta.
No seguimento desta lógica, países como a Suécia e, num período inicial do surto, também o Reino Unido, procuraram combater o vírus através da imunidade de grupo. Uma tática que fez soar os alarmes na Organização Mundial de Saúde (OMS). "Não sabemos o suficiente da ciência do vírus, não está na nossa população há tempo suficiente para sabermos o que faz em termos imunológicos", disse a porta-voz da OMS, Margaret Harris, numa entrevista à Rádio BBC 4.
"Não é disparatada. Se protegermos os grupos de risco, podemos deixar que a restante franja da população se infete para ganhar imunidade e o país não ser obrigado a parar", comenta Jaime Nina. "E se a pandemia voltar, quando acharmos que já está tudo seguro? O país volta a fechar?", lança a questão.
A diretora-geral da Saúde disse este sábado, em conferência de imprensa, que está a ser estudado "como é que esses testes podem ser feitos e quando é a altura ideal", lembrando que "o histórico deste vírus é muito curto" e que "temos de aguardar que o tempo passe para sabermos mais coisas". Graça Freitas alertou que é provável que os estudos tenham de ser posteriormente repetidos, para se verificar a duração desta imunidade.