Corrupção. Quatro GNR condenados. Um deles esteve envolvido no caso de Tancos

O Tribunal de Relação reverteu a absolvição de 1.ª instância e condenou quatro militares da GNR por corrupção em sucateiras. O processo foi investigado pela PSP que deteve os militares em 2014, deixando indignado o comando-geral da Guarda
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O Tribunal de Relação de Lisboa (TRL) arrasa a decisão de 1.ª instância de absolvição de quatro militares da GNR que tinham sido detidos pela PSP em 2014 por suspeitas de extorsão e corrupção. No acórdão proferido a 23 de janeiro passado, a que o DN teve acesso, os militares acabam condenados por crimes de corrupção. Um primeiro-sargento a quatro anos de prisão, um cabo-chefe, um cabo e um guarda principal, a três anos - todos com as penas suspensas por cinco anos. As vítimas eram sucateiros brasileiros da zona do Estoril que acabaram por os denunciar.

Os militares, que pertenciam a uma equipa especial criada pela Procuradoria-Geral da República para a investigação dos furtos de cobre, tiveram como testemunha abonatória a procuradora Cândida Vilar, recentemente titular do inquérito à invasão da Academia de Alcochete e alvo de processos disciplinares, um deles relacionado com o caso de Tancos.

Os militares aguardaram o julgamento, que se realizou em 2018, em liberdade, tendo sido absolvidos pelo Juízo Central Criminal de Cascais, da Comarca de Lisboa Oeste. O Ministério Público (MP) recorreu e agora viu o TRL dar razão aos protestos. Os juízes desembargadores reanalisaram as provas e os testemunhos e consideraram que, ao contrário da conclusão da 1.ª instância, eram suficientemente fortes para os condenar.

Um dos militares agora condenados, o primeiro-sargento que era o 'cabecilha' do grupo, foi logo em 2015 para a Polícia Judiciária Militar (PJM) e acabou por se ver envolvido na operação de recuperação do material furtado em Tancos, na Chamusca, a 18 de outubro de 2017. O militar, que não é arguido, era na altura em que foi detido na operação da PSP, coordenador de investigação criminal da Direção de Investigação criminal da GNR. Desde setembro de 2015, está na PJM como perito em exame ao local do crime no Laboratório de Polícia Técnico-Científica.

Foi nesta qualidade que, no dia na encenação da recuperação do material, estava na equipa de piquete que foi chamada à Chamusca. Depois de terem sido detidos vários militares da PJM, entre os quais o diretor, e da GNR por envolvimento nesta operação à margem da lei, este 1.º sargento também foi interrogado, mas negou sempre ter conhecimento da farsa. Não conseguindo provar o contrário, o MP não o chegou a constituir arguido.

No entanto, esta sua participação na recuperação do material, serviu para o tribunal que o absolveu valorizar a seu profissionalismo. "Como forma de salientar a competência e eficácia, enquanto investigador, do arguido C., o Tribunal 'a quo' fez mesmo questão de fazer constar expressamente do acórdão que o arguido C. recuperou o material de Tancos'", escrevem os desembargadores do TRL. "Tal foi expressamente referido pela testemunha Óscar Manuel do Nascimento Rocha, coronel que afirmou na sessão da audiência e julgamento do dia 24-5-18 ao minuto 7.00 a 8.00 e referindo-se ao arguido C. e ao furto do material de guerra ocorrido em Tancos disse que "foi ele essencialmente que permitiu a recuperação do material", é acrescentado. Óscar Rocha foi assessor para a Segurança no gabinete do primeiro-ministro, António Costa, na legislatura anterior.

GNR criticou PSP

Os desembargadores sublinham, porém, que o acórdão de Cascais "ocorreu antes das notícias vindas a público sobre a eventual existência de ilícitos criminais relacionados com a forma como terá sido feita a recuperação do material de guerra desaparecido em Tancos e encontrado na Chamusca e sobre a qual decorre uma investigação criminal, com arguidos detidos e aos quais foram aplicadas várias medidas de coação, incluindo prisão preventiva". A operação em que foram detidos os militares da GNR e da PJM foi a 25 de setembro de 2018.

A detenção dos quatro militares provocou um conflito tenso entre a GNR e a PSP. O comando-geral chegou a fazer um comunicado lamentando as fugas de informação que estavam "a denegrir, de forma séria, o nome dos militares detidos e da própria instituição".

A GNR fez questão em manter os militares exatamente nas mesas funções depois de, apesar de terem sido constituídos arguidos, terem saído em liberdade apenas com Termo de Identidade e Residência. "O comando-geral tem absoluta confiança nestes militares. Fazem parte da "elite" da Guarda e não há nada, até este momento, que nos faça duvidar disso. São dos melhores militares da GNR", garantiu na altura ao DN uma fonte da hierarquia.

Os desembargadores deram como provado que os militares exigiram dinheiro a, pelo menos, quatro brasileiros que tinham pequenas sucatas, em troca de fazer "vista grossa" às licenças em falta, chegando a ameaçar alguns deles e as respetivas famílias. Os valores rondavam os 200 / 600 euros por semana.

O TRL sublinha que "o ar assustado e constrangido do ofendido G. no seu depoimento em Tribunal em frente aos 4 arguidos era tão evidente que não pode passar despercebido ao tribunal, o que levou a juíza auxiliar Dra. Anabela Ferreira a dizer-lhe expressamente que tinha um ar perdido e assustado". No entanto, assinala, os desembargadores, "o acórdão ignorou por completo estes manifestos constrangimentos de depoimentos revelados pelas testemunhas (...), apesar destes confirmarem os factos da acusação e pronúncia".

A justificação dada pelo 1.º sargento de que o dinheiro que a vigilância da PSP confirmou que tinha recebido das mãos de um dos sucateiros era para pagar uma máquina de lavar velha que lhe tinha vendido, não foi considerada válida. Os desembargadores deram como provado que já tinha recebido dinheiro antes e continuou a receber.

"O tribunal retirou infundadamente credibilidade aos depoimentos dos ofendidos e atribuiu, infundadamente, total credibilidade aos depoimentos dos arguidos apesar das contradições destes com os restantes elementos dos autos. O depoimento deste ofendido é corroborado por todas as gravações feitas nos autos, pelos depoimentos dos restantes ofendidos e pela investigação e vigilâncias da PSP", salientam os juízes desembargadores.

"Teoria da conspiração" refutada

Para os magistrados também "não colhe a versão dos arguidos de que queriam afastá-los da investigação, já que nem nas visitas surpresa que fizeram - no inicio - encontraram indícios de qualquer tráfico de cobre. Apenas eventual pequena atividade de recetação e sem alvará para sucateiros. Trata-se de uma invocada teoria da conspiração em que implica tudo e todos e lança suspeitas relativamente a agentes e graduados da PSP, que estariam conluiados com os ofendidos, que não colhe de todo".

Os juízes que assinam o acórdão salientam que "o crime de corrupção pelas suas consequências na confiança dos cidadãos na Administração Pública, provoca sempre grande repulsa". Neste caso, sublinham, "este concreto tipo de crimes e da forma como foram realizados não são resultado de uma irreflexão do momento, antes de uma predisposição refletida, pensada, assumida interiormente e por isso altamente censurável e inaceitável em membros de forças de segurança".

Entendem ainda que o facto de o principal arguido "ter sido um dos principais responsáveis pela recuperação do material de Tancos, não pode servir de valoração, face aos posteriores desenvolvimentos da situação".

Também consideram que "o percurso profissional dos arguidos merecedor de vários louvores em vez de ser atenuante é agravante já que lhe era exigível outro comportamento até porque foi dito pelos seus superiores de função da brigada a que pertenciam foram-no pelo seu currículo. De certa forma, indivíduos com o currículo profissional dos arguidos eram menos escrutinados e controlados pelos superiores, confiando na ética, lisura e licitude dos seus procedimentos".

De notar, assinalam ainda "que o comportamento dos arguidos foi reiterado durante meses e que a respetiva conduta não se deveu a uma tentação do momento, mas antes numa atitude proativa, de iniciativa própria, com reflexão sobre as mesmas como não podia deixar de ser. Os arguidos agiram com dolo direto e movidos com o propósito de obter vantagem económica".

O DN pediu ao comando-geral da GNR informações sobre a atual situação destes militares e se iam recorrer da decisão, mas o porta-voz oficial disse que ainda não recebeu o acórdão. Acrescenta que " contra os quatro militares correm, desde 7 de fevereiro de 2014, processos internos de acordo com a legislação em vigor, os quais se encontram suspensos, desde 20 de junho de 2014, aguardando-se decisão transitada em julgado".

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