Um problema à distância

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Apesar de a política europeia estar frequentemente refém de eleições nacionais - coisa de que os europeístas se queixam muito -, o resultado das presidenciais portuguesas é praticamente irrelevante para o destino da Europa. Por um lado, porque o vencedor faz parte do desconhecido Grupo de Arraiolos, que de tempos a tempos junta os chefes de Estado que não têm competências em matéria de política europeia, mas que, ainda assim, gostam de se encontrar. Por outro, porque nunca houve, e continua a não haver, uma questão europeia nas eleições presidenciais portuguesas. Nem nas restantes, nos últimos anos. Mas começa a haver um problema.

Embora Marisa Matias e João Ferreira, ambos eurodeputados, sejam, publicamente, os mais críticos da União Europeia, e André Ventura faça parte do grupo político europeu onde estão Marine Le Pen e Matteo Salvini, ninguém sugere em Portugal uma saída da União Europeia ou sequer, realisticamente, do euro. Mas há desalinhamento.

A boa razão pela qual a Europa nunca está em causa nas eleições portuguesas é que a pertença à União Europeia (e à NATO e, de um modo geral, ao "Ocidente") é estruturante do Portugal democrático. As duas más razões são a dependência dos fundos e a convicção generalizada de que não vale a pena discutir a Europa porque as decisões se tomam lá longe e sem grande influência portuguesa. Esta mistura de modéstia e pobreza envergonhada é injustificada e sai-nos cara, mas não se resolve aqui.

Vistas de longe, estas eleições só não são mais inconsequentes para a Europa, então, porque há uma pista para o futuro que põe em causa o grande consenso europeu. Mais em Bruxelas do que em Lisboa.

Embora André Ventura não se diga antieuropeu ou sequer eurocético, os seus ideólogos são-no e, mais importante, o partido onde se sentariam os seus deputados europeus é o quarto maior partido no Parlamento Europeu e o mais eurocético. Mais, mesmo, do que o grupo onde estão o Bloco de Esquerda e o PCP.

A continuar assim, daqui a três anos o Chega aterra no Parlamento Europeu com dois ou mesmo três eurodeputados sentados no partido europeu de Le Pen, da extrema-direita alemã e de Salvini. E embora isso não seja suficiente para alterar a grande maioria europeia, só isso já deixa alguma gente preocupada em Bruxelas.

Entre a direita radical, a direita extrema, a direita populista e a extrema-direita, há duas grandes linhas divergentes quanto à União Europeia. De um lado, os que são tributários do soberanismo e do antieuropeísmo, que Marine Le Pen e alguns partidos radicais no norte da Europa alimentam. Do outro, os que dizem mal de Bruxelas, do centralismo bruxelense, do "cosmopolitanismo e globalismo" europeus ou das políticas migratórias, mas que não querem ir embora nem perder os fundos. Orbán, na Hungria, Kaczynski, na Polónia, são bons exemplos. Ventura provavelmente fará esse caminho, esteja em que partido europeu estiver. Se numas eleições legislativas voltar a ter perto de 10%, a preocupação em Bruxelas será ainda maior.

Em compensação, o resultado de Tiago Mayan faz crer que nem toda a direita se desloca para essa direita. E que mesmo quando a direita populista cresce, é possível crescer outra direita crescer. (Por mais que a Iniciativa Liberal não queira, o eleitorado coloca-a à direita do PS e do PSD.) Com este tipo de resultados, é perfeitamente razoável a Iniciativa Liberal ambicionar pelo menos um eurodeputado em 2024. Não anulando o crescimento do Chega, pode compensar outras perdas. Sentando-se no grupo europeu onde está Macron, isso é bem-vindo em Bruxelas.

Há, ainda, outra boa notícia a vir ontem de Portugal. Quase um ano depois de a pandemia ter começado, com uma crise económica praticamente já à vista e uma crise sanitária crescente, a enorme maioria dos portugueses não fugiu ao voto tradicional.

Ontem à noite, a bolha de Bruxelas deitou-se cedo e, por enquanto, não muito assustada. Se tiver com que se preocupar, será daqui a dois anos nas legislativas, ou daqui a três nas europeias. Se até lá ninguém fizer nada quanto a isso.

Consultor em assuntos europeus

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