É preciso recuar quase 40 anos, mas foi um momento tão impactante que guardo com nitidez cada detalhe daquele dia invernoso. Um dia que, ao mesmo tempo, se tornaria tão quente que ainda hoje me reconforta. Ao final da tarde, caía sobre o Montijo um enorme temporal. Como era hábito, o regresso a casa após as aulas era feito a pé, por um longo caminho quase descampado e que hoje se encontra praticamente todo coberto por prédios e asfalto. Assim que abri o frágil guarda-chuva, o vento forte encarregou-se de o dobrar ao meio, mas desconfio que mesmo intacto de pouco me serviria perante tanta água. Mal entrei na minha rua, molhado da cabeça aos pés, notei que à janela do meu quarto estavam duas mulheres a olhar na minha direção. Florinda e Rosalina, as minhas avós. Ao aproximar-me do portão, do saudoso L4 do Bairro da Liberdade, acenaram-me e recolheram ao interior da casa. Subi a escada e a porta já estava aberta. No rosto delas, uma mistura de espanto, alívio e alegria que gravo com carinho. Os momentos que se seguiram foram de pura ternura. Enquanto uma me ajudava a secar, a outra trazia-me roupa para vestir; enquanto uma retirava da minha mochila livros e cadernos ensopados, a outra preparava-me o lanche. E, assim, num instante, já estava confortavelmente sentado da sala, com uma torrada e chá quente nas mãos, a ver desenhos animados. Esta é uma razão muito pessoal, mas está longe de ser a única, porque tanto me custa ver como a população idosa é hoje tratada no país, sem toda a dignidade que merece.Nos últimos dias, duas notícias o atestam. Primeiro, os dados da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) que mostram um aumento de 29% no número de vítimas acima dos 65 anos que são apoiadas pela instituição, após serem alvo de maus-tratos de companheiros e outros familiares, como filhos ou irmãos. Depois, como noticiou o jornal Público, está também a subir o número de idosos que permanecem internados em hospitais, sem necessidade clínica, por não terem resposta da Segurança Social quanto à colocação num lar.Some-se agora a isto a solidão. A dificuldade crescente no acesso a cuidados de saúde. A digitalização acelerada de inúmeros serviços, que obriga idosos que mal sabem mexer num telemóvel a ter de falar com robots quando precisam de ajuda. As parcas reformas que recebem e que não acompanham a subida de preços dos bens de primeira necessidade e dos medicamentos, resultando no aumento da taxa de pobreza entre os mais velhos (conforme revelou a Pordata em outubro). É fácil concluir que, nas últimas décadas, o voto da população idosa é disputado nas campanhas eleitorais, com promessas e garantias de todo o tipo, mas, depois, pouco ou nada de verdadeiramente estrutural é feito para resolver os seus problemas.O que vemos, traduzido nas notícias e estatísticas oficiais, é que a situação só tende a agravar-se. As Florindas e Rosalinas deste país merecem mais. E essa é uma questão de Justiça Social e de bons princípios humanos a que as futuras gerações não podem ficar alheias.Editor Executivo do Diário de Notícias