Bibliografiazinha para Aguiar-Branco (e outros insignes juristas)

O presidente do parlamento decretou a liberdade total de expressão dos deputados (desde que sem tutear) para ali exprimirem racismo. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o Conselho da Europa, até a nossa Constituição, discordam veementemente. Se calhar Aguiar-Branco não reparou. Não faz mal: mando bibliografia.
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“A nossa Constituição proíbe organizações fascistas ou racistas, mas não proíbe a expressão individual de alguém em relação ao racismo ou ao fascismo. Porque isso seria um exercício de censura, e não podemos ter uma censura que acabou no dia 25 de abril.”

Estas palavras do presidente do parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, foram ditas a jornalistas na sequência de outros seus esclarecimentos, na sessão plenária de sexta-feira, sobre o direito que reconhece aos deputados para, no parlamento, efetuarem pronunciamentos racistas (desde que, bem entendido, não tratem ninguém por tu; isso já deixou claro não admitir).

Recordemos: depois de, no plenário, o líder do partido de extrema-direita ter mencionado um alegado pouco apego do povo turco ao trabalho, o BE protestou, considerando que a qualificação pejorativa de um povo/nação nao tem lugar no debate parlamentar. Aguiar-Branco (AB) respondeu: “O debate democrático é precisamente cada um poder exprimir-se exatamente como pode fazê-lo. Não serei eu o censor de nenhum dos senhores deputados.” A líder da bancada socialista, Alexandra Leitão, insistiu: “Se uma determinada bancada disser que uma determinada ‘raça’, ou que uma determinada etnia é mais burra, mais preguiçosa ou menos digna, também pode?”. E AB clarificou: “Senhora deputada, no meu entender, pode. A liberdade de expressão está constitucionalmente consagrada. A avaliação do discurso político que seja feito aqui nesta casa será feita pelo povo em eleições”.

Uma vez que o Regimento da Assembleia da República estabelece, no artigo 89º ("Modo de usar a palavra”), que “o orador é advertido pelo Presidente da Assembleia quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”, conclui-se das afirmações de AB que não considera o discurso racista ou xenófobo “injurioso ou ofensivo” (caso contrário, seria obrigado a advertir, pois a advertência, como resulta do artigo 89º, não é opcional).

Como começar? Pode uma mera jornalista, que nem cursou Direito, atrever-se a comentar as opiniões jurídicas do “insigne jurista” AB (como o qualifica André Coelho Lima, outro jurista, ex-deputado do PSD, esta segunda-feira no Público)? Muito atrevimento meu, mas, convicta de que o direito é sobretudo, como um dia me disse o constitucionalista Jorge Reis Novais, uma questão de bom-senso (e de saber ler), arrisco.

E começo em casa, pela Constituição. Que no seu artigo 37º assegura, é certo, o direito à liberdade de expressão, certificando não poder ser impedido por “nenhum tipo ou forma de censura”. Mas acrescenta: “As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social (…), nos termos da lei.”

A Constituição também proíbe, como AB referiu, no artigo 46º, as organizações racistas - incluindo, é claro, partidos racistas. E como se definirá um partido racista? De duas formas: pelo seu programa e propostas e/ou pelas declarações e atos dos seus dirigentes.  

Fará sentido a Constituição proibir partidos racistas mas a segunda figura do Estado considerar que a expressão do racismo deve ser livremente permitida aos deputados no parlamento, cabendo aos cidadãos, nas eleições, decidir se premeiam ou não esse racismo? Podemos até não concordar com a proibição de partidos racistas e crer que o racismo, como qualquer outra ideologia, deve ir a votos - mas para isso era, quiçá, de mudar primeiro a Constituição. 

É precisamente a esse propósito, o do discurso público, que a lei ordinária estabelece, no artigo 240º do Código Penal (“Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”), ser crime “publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação (…) difamar ou injuriar/incitar à discriminação  (…) contra pessoa ou grupo de pessoas pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica”. Ora dizer, no parlamento, e portanto “publicamente”, que uma determinada ‘raça’, ou que uma determinada etnia é mais burra, mais preguiçosa ou menos digna”, parece encaixar, em princípio, nesta descrição do tipo criminal. Beneficiando os deputados de imunidade, quer o presidente do parlamento estatuir que um discurso criminalizável se emitido publicamente por um não deputado tem licença sua para, em São Bento, ser berrado para todo o país sem sequer uma advertência?

De facto, talvez tudo isto seja demasiado complexo para uma não-jurista. Será então melhor, por mais seguro, recorrer a juristas. Por exemplo assim: “A tolerância e o respeito pela dignidade igual de todos os seres humanos é um dos pilares de uma sociedade democrática e pluralista. Sendo assim, por princípio, pode ser considerado necessário em certas sociedades democráticas sancionar ou até prevenir todas as formas de expressão que divulguem, incitem, promovam ou justifiquem ódio baseado na intolerância”. 

É uma citação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), do caso Erbakan contra a Turquia (julho de 2006). Em consonância com este princípio, o TEDH estabeleceu, em 2019 (Pastörs contra a Alemanha), que pronunciamentos públicos antissemitas ou discriminatórios efetuados por membros de um parlamento não estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão porque o seu conteúdo é contrário aos princípios da Convenção Europeia dos Direitos Humanos

A jurisprudência do TEDH, vinculativa, estabelece assim que, para exercerem o direito à liberdade de expressão, os políticos têm de respeitar os deveres impostos pela Convenção, em particular o dever de combater a discriminação racial (a qual inclui a discriminação em função da origem étnica). A liberdade de expressão dos políticos, diz o tribunal, pode assim ser restrita “de acordo com a lei nacional” e “quando necessário numa sociedade democrática”, nomeadamente para proteção da reputação e dos direitos de outros.  

Na mesma senda, o Comissário dos Direitos Humanos do Conselho da Europa apelou a "tolerância zero" em relação a "qualquer tipo de discurso de ódio", incluindo o veiculado por políticos. E o Comité de Ministros do Conselho da Europa - que, incrível, inclui Portugal - adotou em 2022 um conjunto de recomendações aos estados-membros sobre o combate ao discurso de ódio, identificando representantes do Estado, eleitos e partidos políticos como atores cruciais para o prevenir e combater, e para promover uma cultura de inclusão.

Quem se encontra em posições de liderança, prescrevem as recomendações, não só deve “evitar participar, viabilizar ou disseminar discurso de ódio” como assumir um papel ativo na sua condenação firme e pronta. É igualmente aconselhada a criação de códigos de conduta de forma a preveni-lo na política, particularmente em campanhas eleitorais e em debates, o obstar a qualquer expressão que favoreça a intolerância e o  seu repúdio claro. 

E se há parlamentos - caso do francês - que retiram a palavra e até expulsam dos trabalhos um deputado que exprima discurso de ódio racista ou xenófobo, o Parlamento Europeu deixa muito claro no seu regimento que o discurso ofensivo ou injurioso que ali é proibido inclui, nos termos do artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, linguagem difamatória, discurso de ódio e incitamento à discriminação com base na ‘raça’, cor, etnia, pertença a uma minoria nacional, ou nacionalidade. 

Supor-se-ia que o presidente do parlamento português deveria, até por ser um insigne jurista, conhecer tudo isto. Mas, como deu mostras de total ignorância, talvez este modesto artigo lhe possa ser útil para não fazer mais figuras.

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