Acusar um morto (Jorge Coelho), que antes tanto elogiou como símbolo do que deve ser a responsabilidade política por se ter demitido após a queda da ponte de Entre-os-Rios, de ter encoberto os problemas da ponte e fugido às responsabilidades? Check. Insinuar que um acidente de 2018 no elevador da Glória não foi objeto de relatório pelo Gabinete de Investigação de Acidentes Ferroviários por, quiçá, pressão política ou encobrimento? Check. Fazer-se de vítima de ataques de “assassinos a soldo” (“sicários”) e do “aproveitamento político de uma tragédia”, para, precisamente, cravar a sua adaga sonsa e lacrimosa na principal adversária nas eleições autárquicas (Alexandra Leitão, que se distinguiu por uma postura ponderada face ao ocorrido)? Check. Criar um novo conceito de responsabilidade política, completamente ao arrepio do que antes defendera para um adversário (Fernando Medina, cuja demissão exigiu em 2021 por causa da ação de um departamento camarário), porque agora é a sua responsabilidade política, e portanto a sua eventual demissão, que está em causa? Check. Garantir que — ao contrário de aos seus adversários, esses malandros oportunistas sem coração — a ele não lhe interessam nada, nadinha, as eleições, porque a única coisa que lhe interessa é a dor dos que perderam entes queridos? Check.Tudo isto Carlos Moedas, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa e candidato pela coligação AD-Iniciativa Liberal ao mesmo lugar, fez em entrevista à SIC este domingo. Uma entrevista na qual se apresentou com ar sofrido, voz trémula, em espécie de guerreiro indómito, estoico, pelos direitos das famílias enlutadas, a começar pela do guarda-freios André Marques, a quem erigiu como herói por “ter, naqueles segundos, feito tudo aquilo que podia”.O malogrado André Marques, uma das 16 vítimas mortais do elevador da Glória, tentou, como aponta o relatório preliminar do Gabinete de Investigação de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), travá-lo. Usou para tal os meios de que dispunha — e que não funcionaram. Não funcionaram porque, somos forçados a concluir, a única segurança existente naquele elevador era o cabo que se soltou: tudo o resto era inútil. É disso, e não de elegias que raiam, no seu excesso, a pornografia, que a sua família deverá querer saber, porque foi isso que o matou, e aos outros que ali morreram; é isso que deveria preocupar o presidente de Câmara que se apresenta como mero “acionista” da Carris, a empresa detentora do elevador, um “acionista” cuja principal preocupação é garantir que sente muito muito tudo mas responsabilidade não tem nenhuma porque, proclama, não cometeu “um erro” que tenha resultado na desgraça.Foi para isso que serviu esta entrevista: não para elencar o que não se sabe e se tem de saber, não para garantir que doravante os elevadores da capital passarão a funcionar com segurança acrescida, não para, por exemplo, anunciar como vão ser arbitradas as indemnizações, mas para Carlos Moedas dizer que nada do que sucedeu lhe pode ser assacado. Que fez tudo bem, que até aumentou o investimento em manutenção (não será bem assim), que está a ser injusta e traiçoeiramente atacado e que se há responsabilidade política só pode ser de outros, de preferência (adivinhem) do PS.Sim, foi isso mesmo que quis dizer quando manifestou “estranheza” por um acidente anterior do elevador, um descarrilamento em 2018, quando o PS era governo e detinha a presidência da Câmara de Lisboa, não ter sido objeto de relatório do GPIAAF. “Andei à procura do relatório e não encontrei”, afirmou. De facto, como o DN esta terça-feira noticia, procurando no site do GPIAAF não se encontra qualquer relatório sobre esse acidente. O que se encontra são as regras de funcionamento do gabinete, nas quais se lê que só são obrigatórias as investigações de acidentes dos quais resultem mortos ou mais de cinco feridos graves ou prejuízos de mais de dois milhões de euros. Mas, lê-se também, “por decisão própria, o GPIAAF pode ainda investigar acidentes ou incidentes que, em circunstâncias diferentes, poderiam ter conduzido a acidentes graves (…)”. Não tendo o descarrilamento em 2018 causado mortos ou feridos (quanto ao montante dos prejuízos, não se sabe), a investigação não seria obrigatória; poderia, no entanto, ter existido, se o gabinete, que é independente, o tivesse decidido. Mesmo se em 2018, aparentemente, o que impediu maior gravidade no acidente foi o cabo que agora se desprendeu, faz todo o sentido perguntar por que não existiu essa investigação — o que não faz sentido é o presidente da Câmara apresentar, todos estes anos depois, quando está desde 2021 no cargo, tal inexistência como suspeita. O que não faz decerto sentido é, ao mesmo tempo que assevera querer saber toda a verdade, “doa a quem doer”, sobre o atual acidente, e dá como fidedigno o relatório preliminar do GPIAAF, insinuar que este gabinete poderá em 2018 ter dado “um jeitinho” e olhado para o lado. O que é obsceno é, ao mesmo tempo que se queixa de ser vítima de tentativas de “aproveitamento político”, usar toda a sua primeira entrevista pós tragédia para isso mesmo.Aliás, se algo salta à vista é que desde o primeiro momento que a principal prioridade de Moedas foi a gestão política. O que vimos, desde a sua presença num Conselho de Ministros no dia a seguir à tragédia (para fazer o quê, para além da “conferência de imprensa” final sem perguntas na qual Luís Montenegro introduziu pela primeira vez o tema do “aproveitamento político”?) ao passeio pós-missa com o presidente da República e o primeiro-ministro, para culminar nesta entrevista, foi uma esforçadíssima performance de pré-campanha, dentro da lógica “a melhor defesa é o ataque”.Ainda estava toda a gente zonza com a desgraça, a aguardar a contabilidade e identificação de mortos e feridos e uma primeira explicação para o sucedido, e já tínhamos Moedas e Montenegro em concertação na postura vitimista, estilo “nós é que somos os únicos sérios”.Sem dúvida: o que não falta a Carlos Moedas é seriedade, como demonstrou naquele que fica para os anais como um dos momentos mais soezes (e se há concorrência) da política portuguesa. Para se afastar daquilo que em 2021 disse a propósito do Rússiagate (a comunicação pelos serviços da Câmara de Lisboa, então presidida por Fernando Medina, a determinadas embaixadas, incluindo a da Rússia, da identidade dos organizadores de protestos relacionados com os países respetivos) — que o presidente da Câmara deveria demitir-se — veio agora certificar que o exemplo de probidade que apresentou contra Medina foi afinal exemplo de outra coisa. Em 2021, Moedas elogiou o político socialista Jorge Coelho (desaparecido precisamente nesse ano) pela sua demissão, 20 anos antes, de ministro do Equipamento Social na sequência da morte de 59 pessoas na queda da ponte de Entre-os-Rios. Agora, acusa-o de ter sabido, antes do desastre, dos problemas de que a fonte padecia, e de se ter demitido por isso. Ou seja, de ter de facto responsabilidade na queda da ponte.Naturalmente, e porque é uma pessoa séria, o presidente da Câmara de Lisboa não viu gravidade suficiente na afirmação para explicar a fonte — limitou-se a afirmar “é conhecido” (de quem?) — e a entrevistadora também não perguntou. Igualmente, não perguntou por que motivo usou o seu entrevistado a expressão “sicários” quando acusou Alexandra Leitão de ser “cínica”, pondo outras pessoas do PS a pedir a sua demissão enquanto ela diz que não faz sentido, no momento, pedi-la. Sicário vem do latim “sica”, adaga, nome dado a um grupo de assassinos que andava com esta arma escondida para, no meio da multidão, matar adversários políticos. Algo que, reconheça-se, não se aplica a Carlos Moedas: pode ter a ilusão de que esconde a sua baixeza, mas não podia estar mais à vista.