Bielorrússia. O autocrata, a surpreendente tradutora e 33 mercenários
"Alguns continuam a chamar as pessoas para virem à 'Maidan' nos dias 9 e 10 de agosto. Deus nos livre de acendermos uma fogueira no centro de Minsk e atirarmos brasas por toda a cidade. Não podemos e não vamos permitir isto", disse Alexander Lukashenko, em referência à praça central de Kiev, Ucrânia, onde eclodiu em 2014 a revolta que derrubou o presidente pró-russo Viktor Yanukovich.
O presidente da Bielorrússia, porém, não precisa de agitar fantasmas estrangeiros. Após as presidenciais de 2006, por exemplo, milhares de pessoas foram para as ruas no que ficou conhecido como a revolução da ganga. O mesmo aconteceu nas seguintes. No dia 19 de dezembro realizou o escrutínio e, à noite, uma multidão reuniu-se na praça de Outubro foi violentamente dispersada. Centenas de manifestantes foram presos, incluindo sete dos nove candidatos presidenciais.
Os resultados, como sempre, apresentam números tão invejáveis quanto irrealistas para o vencedor: mais de 80%. A original hipótese de votar contra todos fica em segundo, com 6,5%, e os nove candidatos alcançam percentagens residuais.
A Bielorrússia, na fronteira entre a União Europeia (Polónia, Lituânia e Letónia) e a Rússia, tem eleições, mas não é uma democracia. O seu único presidente desde as únicas consideradas livres, em 1994, tomou de assalto o poder desde então, ao ponto de se ter tornado um chavão dizer que é a "última ditadura na Europa".
A comissão eleitoral não só atua como primeiro órgão de prevenção contra possíveis candidatos sérios, excluindo-os, mas também não se exime de comentar, como fez em 2010, que os nove candidatos juntos não teriam metade dos votos de Lukashenko, como a Al Jazeera contou à época.
Nestas eleições nem sequer há observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.
Com maior ou menor grau de repressão, Lukashenko tem um longo historial de se desembaraçar dos adversários políticos. O homem que em 1991 votou no parlamento bielorrusso contra a dissolução da União Soviética poderá agora ter o maior desafio interno pela frente. Decerto contra todas as previsões, a última das cinco candidaturas admitidas, a de Svetlana Tikhanovskaya, gerou uma onda de esperança entre a oposição.
Depois de parecer ter o caminho para a vitória já trilhado, com a detenção e ou a exclusão dos principais candidatos da oposição, Lukashenko foi surpreendido pela ascensão de Svetlana Tikhanovskaya.
Se de início se mostrou desconfortável no papel, ou não se considerasse "uma mulher e uma mãe normal", a professora de inglês e tradutora de 37 anos acabou por arrastar multidões para os seus comícios.
Tikhanovskaya decidiu tomar o lugar do marido, Sergei Tikhanovsky, um ativista e youtuber cuja candidatura não foi aprovada e que foi preso em maio.
A sua equipa de campanha é composta em exclusivo por mulheres e inclui Veranika Tsapkala, mulher de Valery Tsepkalo, um opositor que foi excluído pela comissão eleitoral e Maryia Kalesnikava, diretora da campanha de Viktor Babariko, um banqueiro que também foi impedido de concorrer. Tsepkalo fugiu para a Rússia com os dois filhos enquanto Babariko está preso.
Tikhanovskaya e equipa realizaram uma campanha com comícios para multidões ao ar livre, por todo o país, e cujas palavras de ordem são "mudança" e "liberdade".
A candidata promete libertar figuras da oposição detidas, bem como convocar novas eleições com toda a oposição.
No campo do simbolismo, o movimento usa o punho no ar, o sinal do coração e um V de vitória, ao que se junta a utilização da antiga bandeira, branca com uma risca vermelha ao meio, e que costuma ser brandida por oposicionistas de Lukashenko. Na quinta-feira as autoridades da capital impediram a realização do último comício num parque, tendo alegado que estava já agendado um evento de comemoração das tropas ferroviárias.
Conta o Belsat que enquanto os militares faziam demonstrações para poucas centenas, Tikhanovskaya juntou-se a um evento oficial num jardim, e este acabou por se tornar numa manifestação dos opositores. Para desespero das autoridades, os responsáveis pelo som transmitiram um hino revolucionário russo, Peremen!, para gáudio do público. Os dois jovens acabaram detidos pela polícia.
Tikhanovskaya exortou os eleitores para combater a fraude eleitoral, não participando na votação antecipada, mas apenas no domingo. A votação antecipada começou no país de 9,5 milhões de pessoas na terça-feira, e três dias depois a taxa de participação era superior a 22%.
Em declarações à AFP, na sexta-feira, a candidata disse esperar a manipulação dos resultados, mas caso perdesse teria de abandonar o poder pacificamente. "Não seremos capazes de impedir falsificações. Vimos nos últimos dias o quão descaradamente esta eleição está a ser falsificada. Não há qualquer esperança de que elas contem honestamente. Temos de ser realistas".
Tikhanovskaya disse que a motivação principal para ter concorrido às eleições é devolver a liberdade ao seu marido e ao país.
Como medida de segurança, a filha de cinco anos e o filho de 10 anos foram levados para o estrangeiro, o que deixou a candidata sozinha. A própria disse emocionada que a campanha foi muito dura, em especial a separação dos filhos. "Tenho medo, todos os dias tenho medo." Em relação ao marido diz-se confiante de que irá superar as dificuldades.
Tikhanovskaya diz querer ajudar a construir uma nova Bielorrússia, mas não se vê como uma política, antes um símbolo. "Tornei-me na encarnação da esperança das pessoas, do seu desejo de mudança" de um país onde existe a pena capital e que é conhecido nos países vizinhos pela produção de tratores, de produtos agrícolas como as batatas, e pela lingerie.
A professora e tradutora acusou Lukashenko de desrespeito pelo povo durante a pandemia do coronavírus. O autocrata começou por dizer que era um embuste e em vez de tomar medidas para enfrentar a crise sanitária, Lukashenko encorajou os bielorrussos a beber vodka, a fazer sauna e a conduzir tratores como forma de ultrapassar o coronavírus.
Também recusou suspender a parada militar do Dia da vitória, que comemora a derrota da Alemanha nazi.
"Isso mexeu muito comigo", comentou. "Diz que ama o seu povo e o seu país, mas depois diz estas coisas." Segundo os dados oficiais, mais de 68 mil pessoas foram infetadas com covid-19, entre as quais morreram menos de 600 pessoas.
Entre os infetados conta-se o próprio presidente, que diz ter sido acometido pelo vírus mas que foi assintomático.
Entre críticas, o chefe de Estado foi chamado de "barata" que não tem mais do que 3% de popularidade. "Insultar pessoas não é permitido em país algum do mundo", reagiu.
"Acreditam realmente que um presidente em exercício pode ter 3%?"
Tikhanovskaya desafiou Lukashenko para um debate, mas o presidente recusou, acusando-a de estar a ser apoiada por interesses russos.
Golpe de génio, acaso ou nada disso: pelo meio de uma inédita campanha que estava a deixar o homem que manteve a economia centralizada agastado, surgiu no dia 29 de julho a notícia de que 33 russos foram detidos. O chefe dos serviços secretos bielorrussos (KGB), Valery Vakultchik, anunciou a prisão de 32 russos perto de Minsk, membros, segundo ele, da "organização paramilitar Wagner" (uma empresa militar propriedade de um próximo de Putin), e um outro homem foi preso no sul do país.
Segundo a agência Belta e o primeiro canal de televisão bielorrusso, estas detenções foram efetuadas após as autoridades terem tomado conhecimento da chegada ao território de 200 combatentes para desestabilizarem a situação durante o período da campanha eleitoral.
Na sexta-feira, e após um telefonema entre Vladimir Putin e Lukashenko, um comunicado do Kremlin dizia apenas que "o lado russo está interessado em manter uma situação política interna estável na Bielorrússia e na condução das eleições presidenciais num ambiente de serenidade".
Desde 1994 as relações entre Minsk e Moscovo foram marcadas pela visão de uma irmandade eslava, fazendo os dois países parte da União da Rússia e da Bielorrússia, na prática um tratado que previa o estabelecimento de uma federação, mas que se ficou na prática pela liberdade de movimentos dos cidadãos e pela união aduaneira.
Como a especialista em sociedades pós-soviéticas Anna Colin Lebedev retrata, em entrevista ao Le Figaro, Lukashenko tem "soprado quente e frio com Moscovo como estratégia permanente", ora aproximando-se do seu principal parceiro -- por exemplo, uma central nuclear construída pela Rússia e que está em fase de pôr o primeiro de dois reatores a funcionar -- ora mostrando que não abdica da independência do país, um tema que passou a recorrente quando viu o que Putin fez com a Crimeia e com o leste da Ucrânia.
Lukashenko reconheceu que existem certas tensões na relação com Putin.
"Sim, existem certas tensões, porque ambos somos pessoas de caráter forte, se não se importa que eu o diga", disse Lukashenko. "Considero Putin como o meu irmão mais velho, e acredito sinceramente que ele é meu irmão", disse Lukashenko numa entrevista televisiva. "Ele é realmente como um irmão mais velho em termos de idade e peso [político]... O papel de um irmão mais velho é o de ajudar, apoiar e aconselhar. Não para o fazer tropeçar, mas para lhe dar apoio".