Surpreendeu-o o primeiro ano de Joe Biden como presidente? Nota francas diferenças na política externa americana em relação a Donald Trump? No geral, este primeiro ano da presidência Biden foi positivo, também na área da política externa. Sobretudo para quem olha para Washington a partir da União Europeia. A frequência dos encontros entre responsáveis americanos e europeus aumentou significativamente. E de modo construtivo. Mas também houve alguns erros, que deixaram marcas profundas. O mais grave: a maneira da retirada do Afeganistão, decidida e executada unilateralmente pela administração Biden, sem consultas políticas nem coordenação operacional com os dirigentes europeus. A afronta à França pelo arranjo trilateral entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido, foi outro mau exemplo. Levou à anulação de um contrato de cerca de 55 mil milhões de euros em submarinos que os franceses deveriam ter construído e à subalternização da França na cena do Indo-Pacífico. Esse tipo de erros não se esquecem facilmente. Joe Biden não esteve atento e foi ligeiro, apesar da sua experiência política. Comparando com Donald Trump, é evidente que a política externa americana aparece agora mais coerente e previsível. Mas, na realidade, pouco mudou. Por exemplo, Joe Biden deveria prestar mais atenção à América Central. Na minha ótica, as maiores ameaças externas à estabilidade dos EUA provêm dessa região: migrações em massa, desespero humano, drogas, insegurança, violência, corrupção política, tudo isso tem um potencial explosivo às portas dos Estados Unidos. Ainda, Biden deveria enviar a Vice-presidente Kamala Harris mais frequentemente ao estrangeiro, para reforçar os contactos de alto nível e mostrar a presença e a solidariedade americanas. Isso serviria, igualmente, para consolidar a imagem da VP e permitir-lhe o impulso necessário para que no futuro possa ser a primeira mulher eleita presidente dos EUA..A ascensão mas últimas décadas da China, sobretudo do ponto de vista económico mas também militar, permite-lhe ambicionar a liderança mundial ou há limites quando se é uma superpotência em vias de desenvolvimento? A China tem ambições globais. Não apenas na área militar - a sua frota naval já é a maior do mundo, com 355 navios de todo o tipo à sua disposição, e isso só contando os de primeira grandeza - mas nos mais diversos domínios. A Nova Rota da Seda, lançada pelo Presidente Xi Jinping em 2013, não é apenas um programa gigantesco de investimentos em infraestruturas através do globo. É uma visão da China que se inspira na sua história milenar e que a quer colocar, de novo, no centro das relações internacionais. E o país joga com vários trunfos: a dimensão demográfica; o nacionalismo enraizado numa civilização antiga e distinta; e uma classe política que se pode dar ao luxo de pensar a longo prazo, sem receio das surpresas que as eleições sempre acarretam nos regimes democráticos. Mas as vantagens também se podem transformar em problemas e prejudicar a imagem internacional. A dimensão atemoriza, a sua força económica cria arrogância e dependências difíceis de aceitar por outros povos, as diferenças culturais geram, tantas vezes, reações xenófobas. Podemos estar perante um gigante que gostaria de ser querido, mas que na realidade mete medo. É nessa fase que agora estamos, quando na realidade todos ganharíamos se se construíssem mais pontes entre as grandes potências..Assinalaram-se há dias os 30 anos do fim da União Soviética, mas atual tensão entre o Kremlin e o Ocidente parece do tempo da Guerra Fria. Os alargamentos da NATO a Leste são a justificação para a agressividade da Rússia? A Rússia e a NATO estão emaranhadas num impasse de desconfiança: nenhuma parte acredita na outra. Daqui nasce uma espiral de agressividade, que na realidade é favorável ao reforço do poder interno do Presidente Vladimir Putin. Permite-lhe vender aos seus concidadãos uma imagem de homem forte, de defensor da pátria e da cultura russa, de uma Rússia imperial, determinante na arena internacional. Uma presença muito visível da NATO perto das fronteiras russas permite, ao fim e ao cabo, consolidar o poder autocrático de Putin. Serve os seus interesses e as suas ambições de presidente para a eternidade. A NATO cresceu para Leste porque os Estados da região assim o quiseram, de modo soberano e democrático. E porque conseguiram atingir os critérios exigidos pela Organização: um sistema político democrático, uma economia de mercado, subordinação das estruturas militares à ordem constitucional e ao poder civil, e o compromisso de resolver os conflitos de modo pacífico. O desafio é agora, para a NATO, de encontrar um equilíbrio entre a defesa de cada estado-membro e a contenção operacional a Leste. Ou seja, é preciso evitar destacamentos excessivos de meios para zonas que possam provocar uma escalada militar do outro lado da fronteira. Para isso, há que negociar concessões e criar comissões mistas que permitam desfazer, pouco a pouco, o impasse da desconfiança. Convém lembrar que a Rússia é parte integrante da cultura europeia. O papel dos líderes é o de transformar essa realidade histórica num processo de desanuviamento e num futuro partilhado, de paz..Com o Brexit, confirmou-se que a União Europeia nunca será uma verdadeira potência, pois é muito menos do que a soma das partes e até perde algumas delas? A noção de potência evoluiu neste século. E ainda bem. Já não é simplesmente o resultado de uma projeção de força armada. A velha noção de poder militar perdeu muitas penas no Vietname e mais recentemente no Iraque e no Afeganistão e já não voa muito alto. Quem fala numa Europa da defesa deveria ter presente esses exemplos. Isso não quer dizer que as forças armadas não sejam importantes. Mas, nas relações internacionais, o que conta e é duradouro é o poder de influência. A capacidade e a habilidade de levar outros estados a adotar certas medidas, seguir determinados valores, olhar para nós como uma fonte de mediação de conflitos e de estabilidade, como um modelo de democracia. É nisso que a UE deverá apostar. No poder do convencimento, com base nos princípios da liberdade e dos direitos das pessoas. Penso também que com o tempo o Brexit pode ser entendido como uma vantagem. A saída de um país que na realidade nunca quis fazer parte do conjunto deve permitir o reforço da unidade e aguçar a identidade europeia. A identidade histórico-cultural é uma alavanca de poder. A Europa precisa de investir nessa via..A crise demográfica a Norte e a pobreza a Sul fazem das migrações uma realidade explosiva ou é possível conciliar a necessidade de gente que, por exemplo, a Europa tem com as aspirações a ter um projeto de vida de milhões de africanos? As migrações fazem parte da história: no nosso caso, fomos para o Brasil, para a América, para várias partes do mundo. E continuarão a fazer parte do futuro. Os fluxos serão diferentes dos que aconteceram no passado - agora do Sul para o Norte e do Leste para o Ocidente - mas as pessoas terão ambições semelhantes às das gerações de sempre. Partirão para fugir à fome e ao medo, como nós fizemos nos últimos séculos. A instabilidade e a insegurança, a pobreza e o crescimento demográfico acelerado vão empurrar muitos milhões de africanos para a emigração. A maioria dirigir-se-á para outros países do continente, nomeadamente para os estados litorais, onde sempre aparecem algumas oportunidades de vida. Muitos outros procurarão seguir as passadas dos que agora se arriscam a atravessar o Mar Mediterrâneo. A Europa continuará a ser o grande íman. Mas a chegada em massa de pessoas de aparência física e culturalmente diferente é um tema politicamente delicado. A partir de uma certa proporção pode ser aproveitado como um cavalo de batalha pelos extremistas de direita e os ultranacionalistas europeus. Ou seja, dá-lhes uma bandeira política e um pretexto para ganhar espaço de influência. Tudo isso deve ser bem pesado e entrar na agenda política. Com também será necessário ter em conta a escassez de mão-obra em certos sectores das economias europeias, incluindo no respeitante à prestação de serviços às pessoas de idade avançada. Aí, como na agricultura, veremos muitas caras novas, vindas de longe. Noutras áreas, a automatização e a digitalização contribuirão para que não se note o decréscimo da população europeia em idade ativa. Mesmo com semanas laborais mais curtas - semanas de quatro dias, 28 horas de trabalho por semana, esse é o sentido em que vamos - mas vivendo na era digital e do 5 ou 6G, a carência de mão-de-obra não será tão evidente. E será nesses sectores que os movimentos nacionalistas irão recrutar os seus militantes anti-imigração..De Joe Biden a Xi Jinping, de Jair Bolsonaro a Narenda Modi, passando por Vladimir Putin, Boris Johnson, Emmanuel Macron, Ali Khamenei, Cyril Ramaposa ou Fumio Kishida, concorda com quem diz que geral os líderes de hoje são uma sombra das grandes figuras do passado, mesmo recente? Os tempos são outros, é muito difícil fazer comparações. No passado, o poder e as relações sociais tinham a forma de pirâmides. Aceitava-se mais facilmente a hierarquia e o comando vindo do topo. Hoje, vivemos em sociedades tendencialmente horizontais, cada um vê-se como igual ao seu vizinho. A autoridade, para ser aceite, precisa de outros atributos, muito para além do formalismo das funções. Para mais, existe uma abundância de informação largamente acessível, mas geradora de confusões, de fragmentação das opiniões e de espaço oportunístico para os mais diversos manipuladores da opinião pública. Num mundo horizontal, confuso e fragmentado, só pode ser um líder aceite e positivo quem conseguir dar um sentido otimista e mobilizador ao contexto em que vivemos. O líder tem de saber explicar o que se passa, propor um rumo e dar esperança ao futuro.Quando digo liderança positiva, refiro-me a quem tenha uma agenda progressista e transformadora da sociedade, ao contrário de um Donald Trump, que também considero um líder, mas negativo. Também não estou a falar de líderes neutros, populares certamente, mas que não aproveitam essa popularidade para fazer avançar os seus países..A pandemia está a mostrar qualidades de dirigentes e de sociedades ou, pelo contrário, revelou inesperadas fragilidades dos países? Nunca se está verdadeiramente preparado para uma crise pandémica. Sobretudo para uma como a presente, que tem uma natureza global, um impacto profundo e que persiste ao longo de já mais de dois anos, e surge com novas mutações. Apesar de tudo, conseguiram-se progressos muito rápidos na descoberta de várias vacinas eficazes e desde então foi possível produzir doses em quantidades astronómicas. Nos países mais avançados, as campanhas de vacinação desenrolaram-se bem, embora seja surpreendente ver a percentagem relativamente elevada de pessoas que ainda não se vacinaram, podendo fazê-lo, em países como os EUA ou alguns Estados europeus. Noutros países, as decisões de confinamento e os fechos de fronteira foram tomadas ao sabor da política de curto prazo e sem atender às recomendações da OMS. O grande problema, no que respeita ao combate à pandemia, vive-se nos países mais pobres. A cooperação internacional é fundamental..A cooperação internacional tem funcionado no combate à covid-19, mostrando a importância de agências como a OMS? A resposta à Covid-19 só será eficaz se houver um esforço global. A cooperação internacional tem de ser intensificada, porque muitos dos países das regiões menos desenvolvidas não têm nem os recursos nem a logística necessária para organizar eficazmente campanhas nacionais de vacinação. Intensificar a ajuda a esses estados é uma prioridade absoluta para obviar o aparecimento de mais variantes e pôr um termo à pandemia. Existe um mecanismo de cooperação vacinal estabelecido pela OMS desde abril de 2020 chamado COVAX. Esse mecanismo é a melhor maneira de chegar aos mais pobres do mundo. Deve ser apoiado sem reservas e com os meios adequados..Considera que uma reforma do sistema das Nações Unidas é essencial para a tornar mais eficaz perante as grandes crises do planeta? As Nações Unidas integram várias agências, programas e fundos. A esse nível, tem havido reformas, reorganizações e adaptação aos novos desafios. Essas componentes do sistema, que incluem siglas conhecidas como o ACNUR, o PAM, a UNICEF, o PNUD, a OIM, os Capacetes Azuis e assim sucessivamente, funcionam bem e são altamente apreciadas por todo o mundo. A grande questão está ao nível do Conselho de Segurança. Por duas razões: o Conselho não reflete a relação de forças que atualmente existe no mundo; o direito de veto deveria ser limitado - partindo do princípio que é impossível proceder à sua abolição - a situações que pudessem na verdade pôr em causa a paz e a segurança internacionais. Neste momento, há um abuso do direito de veto por parte de certos membros permanentes do Conselho. Procuram assim proteger estados-clientes, ou seja, regimes que violam abertamente as normas internacionais e os direitos humanos. A reforma do Conselho de Segurança é um tema que daria, só por si, para uma longa entrevista. A realidade é que essa reforma, que está a ser tentada há mais de 30 anos, não irá acontecer tão breve. Por isso, é fundamental que as outras componentes do sistema, que não dependem diretamente do funcionamento do Conselho, continuem a dispor dos recursos necessários para cumprir os seus mandatos. E que o Secretário-Geral tome as iniciativas políticas que a Carta da ONU lhe permite e manda tomar..O combate às alterações climáticas está a ser feito de forma sincera pelos diferentes países, ou os interesses nacionais sobrepõem-se mesmo quando a ameaça é global? Não podemos ter ilusões. As grandes questões internacionais, mesmo as mais prementes como é o caso do combate às alterações climáticas, são sempre vistas pelos políticos a partir do prisma nacional. Os políticos nunca se esquecem que são eleitos pelos seus concidadãos e não pelas grandes assembleias globais que se reúnem aqui e acolá para discutir temas de impacto mundial. Apesar disso, penso que existe uma crescente pressão nacional, em muitos países, e na arena internacional também, para que as questões do ambiente e do clima façam parte das agendas nacionais e globais. Os movimentos de cidadania, com um notável papel desempenhado pelos jovens, os poderes ao nível municipal e local, as grandes empresas e certos partidos políticos têm feito avançar a ação climática. A COP26 correu melhor do que era esperado. Mas há sobretudo que acelerar o passo e continuar, quotidianamente, a insistir na urgência de um novo tipo de energias e de uma relação mais equilibrada entre a economia e a natureza..leonidio.ferreira@dn.pt