Exclusivo "Uma presença muito visível da NATO perto das fronteiras russas permite consolidar o poder autocrático de Putin"

Foi secretário-geral adjunto das Nações Unidas, trabalhando na sede em Nova Iorque mas sobretudo em diversos países africanos. Em conversa com o DN, o português Victor Angelo faz a análise do embate América-Rússia, da ascensão da China, das ambições da União Europeia e também de desafios globais como a pandemia da covid-19 e as alterações climáticas.

Surpreendeu-o o primeiro ano de Joe Biden como presidente? Nota francas diferenças na política externa americana em relação a Donald Trump?
No geral, este primeiro ano da presidência Biden foi positivo, também na área da política externa. Sobretudo para quem olha para Washington a partir da União Europeia. A frequência dos encontros entre responsáveis americanos e europeus aumentou significativamente. E de modo construtivo. Mas também houve alguns erros, que deixaram marcas profundas. O mais grave: a maneira da retirada do Afeganistão, decidida e executada unilateralmente pela administração Biden, sem consultas políticas nem coordenação operacional com os dirigentes europeus. A afronta à França pelo arranjo trilateral entre os EUA, a Austrália e o Reino Unido, foi outro mau exemplo. Levou à anulação de um contrato de cerca de 55 mil milhões de euros em submarinos que os franceses deveriam ter construído e à subalternização da França na cena do Indo-Pacífico. Esse tipo de erros não se esquecem facilmente. Joe Biden não esteve atento e foi ligeiro, apesar da sua experiência política. Comparando com Donald Trump, é evidente que a política externa americana aparece agora mais coerente e previsível. Mas, na realidade, pouco mudou. Por exemplo, Joe Biden deveria prestar mais atenção à América Central. Na minha ótica, as maiores ameaças externas à estabilidade dos EUA provêm dessa região: migrações em massa, desespero humano, drogas, insegurança, violência, corrupção política, tudo isso tem um potencial explosivo às portas dos Estados Unidos. Ainda, Biden deveria enviar a Vice-presidente Kamala Harris mais frequentemente ao estrangeiro, para reforçar os contactos de alto nível e mostrar a presença e a solidariedade americanas. Isso serviria, igualmente, para consolidar a imagem da VP e permitir-lhe o impulso necessário para que no futuro possa ser a primeira mulher eleita presidente dos EUA.

A ascensão mas últimas décadas da China, sobretudo do ponto de vista económico mas também militar, permite-lhe ambicionar a liderança mundial ou há limites quando se é uma superpotência em vias de desenvolvimento?
A China tem ambições globais. Não apenas na área militar - a sua frota naval já é a maior do mundo, com 355 navios de todo o tipo à sua disposição, e isso só contando os de primeira grandeza - mas nos mais diversos domínios. A Nova Rota da Seda, lançada pelo Presidente Xi Jinping em 2013, não é apenas um programa gigantesco de investimentos em infraestruturas através do globo. É uma visão da China que se inspira na sua história milenar e que a quer colocar, de novo, no centro das relações internacionais. E o país joga com vários trunfos: a dimensão demográfica; o nacionalismo enraizado numa civilização antiga e distinta; e uma classe política que se pode dar ao luxo de pensar a longo prazo, sem receio das surpresas que as eleições sempre acarretam nos regimes democráticos. Mas as vantagens também se podem transformar em problemas e prejudicar a imagem internacional. A dimensão atemoriza, a sua força económica cria arrogância e dependências difíceis de aceitar por outros povos, as diferenças culturais geram, tantas vezes, reações xenófobas. Podemos estar perante um gigante que gostaria de ser querido, mas que na realidade mete medo. É nessa fase que agora estamos, quando na realidade todos ganharíamos se se construíssem mais pontes entre as grandes potências.

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