ONU declara oficialmente fome em Gaza. É a primeira vez no Médio Oriente
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ONU declara oficialmente fome em Gaza. É a primeira vez no Médio Oriente

Especialistas indicam que 514.000 pessoas estão a passar fome no enclave, número deverá aumentar para 641.000 até ao final de setembro. Situação podia ter sido evitada sem “obstrução de Israel”.
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A ONU declarou esta sexta-feira, 22 de agosto, oficialmente a fome na província de Gaza, a primeira a atingir o Médio Oriente, depois de os especialistas terem alertado que 500.000 pessoas se encontravam numa situação catastrófica.

O Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC, sigla em inglês), um organismo da ONU com sede em Roma, confirmou que uma fome estava em curso em Gaza e que deverá estender-se a Deir el-Balah e Khan Yunis até ao final de setembro.

"A 15 de agosto de 2025, a fome (Fase 5 do IPC) - com evidências razoáveis - foi confirmada na província de Gaza. Após 22 meses de conflito incessante, mais de meio milhão de pessoas na Faixa de Gaza enfrentam condições catastróficas caracterizadas por fome, miséria e morte. Outros 1,07 milhões de pessoas (54%) estão em situação de emergência (Fase 4 do IPC) e 396.000 pessoas (20%) estão em crise (Fase 3 do IPC)", lê-se no relatório.

A declaração foi feita após meses de alertas sobre uma situação de fome no território palestiniano devastado por uma ofensiva de Israel desde outubro de 2023.

O IPC indicou que 514.000 pessoas estão a passar fome no enclave, um número que deverá aumentar para 641.000 até ao final de setembro, tendo como base informações recolhidas até 15 de agosto.

A situação é mais grave na região norte, onde está localizada a cidade de Gaza - conhecida como província de Gaza, explica a Reuters -, uma vez que cerca de 280.000 pessoas estão numa situação de fome.

"Espera-se que quase um terço da população (641.000 pessoas) enfrente condições catastróficas (Fase 5 do IPC), enquanto aqueles em situação de emergência (Fase 4 do IPC) provavelmente aumentarão para 1,14 milhões (58%). Prevê-se que a desnutrição aguda continue a agravar-se rapidamente", refere o documento.

O organismo indica ainda que, "até junho de 2026, espera-se que pelo menos 132.000 crianças com menos de cinco anos sofram de desnutrição aguda - o dobro das estimativas do IPC de maio de 2025". "Isto inclui mais de 41.000 casos graves de crianças com risco elevado de morte. Quase 55.500 mulheres grávidas e lactantes desnutridas também necessitarão de uma resposta nutricional urgente", indica o relatório.

Grupos humanitários têm denunciado que as restrições impostas por Israel à entrada de alimentos e outros tipos de ajuda em Gaza, bem como a ofensiva militar, estavam a causar altos níveis de fome entre os civis palestinianos, especialmente crianças.

A fome em Gaza “podia ter sido evitada” sem “a obstrução sistemática de Israel”, acusou em Genebra o responsável pela coordenação dos assuntos humanitários das Nações Unidas, Tom Fletcher.

“Esta fome vai e deve assombrar-nos a todos”, insistiu.

"O meu pedido, o meu apelo, a minha exigência ao primeiro-ministro Netanyahu e a qualquer um que possa contatá-lo. Basta. Cessar-fogo. Abram as passagens, norte e sul, todas elas", sublinhou Fletcher, de acordo com a imprensa internacional.

A declaração do IPC, que confirma pela primeira vez uma situação de fome no Médio Oriente, vai certamente aumentar a pressão internacional sobre Israel, referiu a agência de notícias AP.

Israel, que está envolvido numa guerra com o Hamas desde que sofreu um ataque em 7 de outubro de 2023, anunciou que planeia tomar a cidade de Gaza e outros bastiões do grupo extremista palestiniano.

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É a deterioração mais grave da situação desde o início das análises do IPC na Faixa de Gaza

Os especialistas consideraram que a intensificação da guerra vai agravar a crise alimentar.

A província de Gaza representa cerca de 20% da área da Faixa de Gaza.

Somando Khan Yunis (29,5%) e Deir el-Balah (16%), a situação de fome poderá abranger cerca de dois terços da área total da Faixa de Gaza, um território de 365 quilómetros quadrados onde vivem mais de dois milhões de palestinianos.

De acordo com especialistas da ONU, mais de meio milhão de pessoas em Gaza enfrentam condições catastróficas, o nível mais elevado de privação alimentar do IPC, caracterizado pela fome e pela morte.

De acordo com o IPC, trata-se da deterioração mais grave da situação desde o início das suas análises na Faixa de Gaza.

Para o IPC, uma fome está em curso quando três elementos estão reunidos: pelo menos 20% dos lares (um em cada cinco) enfrentam uma escassez extrema de alimentos, pelo menos 30% das crianças com menos de 5 anos (uma em cada três) sofrem de desnutrição aguda e pelo menos duas pessoas em cada 10.000 morrem de fome todos os dias.

A situação é o resultado da escalada do conflito nos últimos meses, que provocou deslocações maciças da população, combinadas com o acesso restrito aos abastecimentos alimentares causado por Israel.

No início de março, Israel proibiu totalmente a entrada de ajuda humanitária em Gaza, antes de autorizar, no final de maio, o transporte de quantidades limitadas, provocando graves carências de alimentos, medicamentos e combustível.

Israel, que controla todos os acessos a Gaza, acusa o Hamas de saquear a ajuda humanitária, o que o grupo nega, e as organizações humanitárias de não a distribuírem.

As organizações humanitárias afirmaram que Israel impôs restrições excessivas e considerou muito perigoso distribuir a ajuda em plena guerra.

"Não há fome em Gaza", diz Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita

Israel considerou o relatório do IPC "falso e tendencioso". Para a COGAT, a agência militar israelita responsável pela coordenação da ajuda nos territórios palestinianos, o IPC baseou o seu inquérito em "dados parciais provenientes da organização terrorista Hamas", segundo a Reuters.

A "COGAT rejeita veementemente a alegação de fome na Faixa de Gaza, e particularmente na cidade de Gaza", afirmou a agência, caracterizando o relatório "pouco profissional". Para os militares israelitas, o relatório não leva em conta os esforços envidados nas últimas semanas para “estabilizar a situação humanitária na Faixa de Gaza”, nem as informações transmitida pelo Cogat aos autores do documento.

“Não há fome em Gaza”, afirmou o Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita num comunicado, ao reagir à declaração oficial do IPC.

O IPC “acaba de publicar um relatório feito à medida para a falsa campanha do Hamas”, disse a diplomacia de Israel num comunicado citado pela AFP.

Para Israel, que acusou o IPC de ter ignorado as próprias regras e critérios, o relatório baseia-se “nas mentiras do Hamas, branqueadas por organizações com interesses particulares”.

O ministério acrescentou que nas últimas semanas, a Faixa de Gaza “foi inundada por um afluxo maciço de ajuda em bens de primeira necessidade, o que provocou uma forte queda de preços”.

“Todas as previsões feitas pelo IPC sobre Gaza durante a guerra revelaram-se infundadas e totalmente falsas”, salientou o ministério.

“Esta avaliação também será deitada no lixo dos documentos políticos desprezíveis”, acrescentou.

Guterres fala num "desastre causado pelo homem" e em "fracasso da humanidade"

"Não podemos permitir que esta situação continue impunemente", sublinhou o secretário-geral da ONU, em reação à declaração de fome na Faixa de Gaza.

António Guterres apelou novamente "um cessar-fogo imediato, à libertação imediata de todos os reféns e ao acesso humanitário total e sem restrições".

Referindo-se à declaração de Fome, Guterres, citado pela AFP, fala num "desastre causado pelo homem" e num "fracasso da própria humanidade", enfatizando que Israel tem "obrigações inequívocas ao abrigo do direito internacional, incluindo o dever de garantir alimentos e suprimentos médicos à população".

"A fome declarada" pelo IPC "é o resultado direto das ações tomadas pelo governo israelita", diz comissário da ONU

Já o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos afirmou que "é um crime de guerra usar a fome como método de guerra".

Volker Türk referiu ainda que as mortes resultantes "também podem constituir um crime de guerra de homicídio doloso".

"A fome declarada hoje" pelo IPC "é o resultado direto das ações tomadas pelo governo israelita", considerou o comissário da ONU, citado pela AFP.

Para Türk, Israel "restringiu ilegalmente a entrada e a distribuição de ajuda humanitária e outros bens necessários para a sobrevivência da população civil na Faixa de Gaza".

"Já assistimos a mortes por fome e desnutrição em toda a faixa. O exército israelita destruiu infraestruturas civis essenciais e quase todas as terras agrícolas, proibiu a pesca e deslocou à força a população – todos fatores que contribuíram para esta fome", argumentou.

O ataque de 7 de outubro causou a morte de cerca de 1.200 pessoas e 250 reféns em Israel.

A ofensiva israelita em grande escala provocou mais de 62.190 mortes em Gaza, a maioria civis, de acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza, considerados fiáveis pela ONU.

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