Presidenciais. Cinco contra um ou quatro contra dois?
Numa campanha marcada pela distância social imposta pela pandemia, os debates nas televisões irão ganhar ainda mais relevância do que aquela que já normalmente têm - e estão quase a começar. No dia 2 será o primeiro frente-a-frente, entre Marcelo Rebelo de Sousa e Marisa Matias, na RTP1.
Marcelo será aliás o único dos seis candidatos - ele, Marisa Matias (BE), João Ferreira (PCP), Ana Gomes (PS mas sem apoio do partido), Tiago Mayan (Iniciativa Liberal) e André Ventura (Chega) - a ter sempre os seus debates em canal aberto. Esses frente-a-frente terminarão no dia 9. Depois, já no período oficial da campanha deverá haver um último, com os seis na mesa, organizado pelas rádios - mas com transmissão televisiva.
A campanha inicia-se com Marcelo a ter todas as sondagens garantindo-lhe uma reeleição segura à primeira volta (24 de janeiro) mas muito longe dos 70% (e mais de 3,5 milhões de votos) obtidos por Mário Soares na sua reeleição presidencial de 1991.
O Presidente da República recandidato já assegurou que nunca esse sonho lhe passou pela cabeça. "Tenho vários defeitos mas não sou burro nem louco", afirmou, em entrevista à SIC. O antigo comentador explicou que Soares obteve os tais 70% com o apoio de um PSD que na altura tinha 50%. E, além disso, "não havia pandemia".
Tudo aponta, portanto, para uma reeleição mais ou menos tranquila do atual Presidente - seria uma gigantesca surpresa se assim não fosse. Todos os presidentes até agora - Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva - foram reconduzidos sem problemas. Marcelo já sabe que vai ter o apoio oficial do PSD e do CDS - como foi aliás na primeira eleição - mas agora com os centristas muito divididos.
Do que se trata então é de saber a votação que os outros candidatos obterão. As sondagens dizem que Ana Gomes (que tem o apoio do PAN mas não do seu PS) ficará em segundo. Porém, nalguns desses estudos de opinião o seu resultado anda taco a taco com o de André Ventura. Este, por sua vez, surge sempre à frente tanto da candidata do BE, Marisa Matias, como do candidato do PCP, João Ferreira.
Num cenário normal, a campanha e os debates tenderiam a ser o que sempre foram nestas circunstâncias de reeleição: todos contra um (o Presidente recandidato). Porém, a candidatura de André Ventura - o candidato que há mais tempo se apresentou - provocou um redesenho da geometria do confronto. Haverá em simultâneo cinco contra um (Marcelo) mas também quatro contra dois (Marcelo e Ventura).
Daria posse a um governo apoiado no Chega? A pergunta foi feita a Marcelo Rebelo de Sousa, na SIC, e este disse que sim, argumentando que nada poderia fazer contra um partido legalizado no Tribunal Constitucional.
Mas depois a mesma pergunta foi feita também a Ana Gomes e Marisa Matias e ambas disseram que não - a candidata do PS até afirmou que o Chega nunca deveria ter sido legalizado pelo Tribunal Constitucional. Mas foi. Notoriamente, travar o populismo radical de direita que Ventura protagoniza é um dos propósitos de Ana Gomes. A ex-diplomata e ex-eurodeputada divide o seu tempo essencialmente em duas partes: ou critica Marcelo ou critica o líder do Chega. Este, por sua vez, já recuou na sua promessa de deixar a liderança do seu partido se ficar atrás de Ana Gomes. Afinal poderá ficar, caso o partido lho peça.
Mais do que chegar à segunda volta - um objetivo que todas as sondagens tratam como lunático -, o que Ana Gomes pretende é ficar claramente à frente no campeonato dos segundos - e assim também manter-se à tona nos equilíbrios de forças internos no PS, provavelmente já pensando no que será o partido quando um dia António Costa deixar a liderança. É um cenário para já longínquo dado que o líder do PS já tornou claro que quer ser recandidato a um terceiro mandato como primeiro-ministro.
O que também seria interessante, do ponto de vista da antiga eurodeputada, seria destronar o histórico Manuel Alegre como campeão da rebeldia socialista. Nas presidenciais de 2006 - as primeiras que Cavaco Silva venceu -, Alegre avançou contra o candidato oficial do PS, Mário Soares, e ficou-lhe à frente (20,7% contra 14,3%), obtendo cerca de 1,14 milhões de votos. Esta seria uma fasquia que a antiga eurodeputada gostaria de ultrapassar - mas nenhuma sondagem aponta nesse sentido.
O que afinal poderá estar em causa nas presidenciais é, antes do mais, uma espécie de terceiro ato na recomposição em curso da direita (tendo sido o primeiro ato a eleição de um deputado do Chega em 2019 e o segundo as eleições dos Açores, que permitiram ao partido de Ventura integrar o arco da governabilidade regional, numa geringonça de direita liderada pelo PSD).
Ventura quer aproveitar as presidenciais para provar, pelo seu crescimento eleitoral, que não será possível dispensar o Chega numa maioria de direita. E Rui Rio já disse que admitiria falar com Ventura, se este se moderasse. Resultado: o líder do Chega já faz exigências de ministérios num futuro governo liderado por Rio: quer a Justiça, a Administração Interna, a Segurança Social e a Agricultura.
No Bloco de Esquerda, o tempo é de algum sufoco. Nas presidenciais de há cinco anos, Marisa Matias obteve o melhor resultado alguma vez obtido pelos bloquistas numa eleição nacional: 10,12% (cerca de 470 mil votos). A fasquia está portanto altíssima - mas não há uma única sondagem que dê a candidata do BE sequer perto de repetir esse resultado. E não só não dão isso como até revelam a possibilidade forte de Marisa ficar atrás de Ventura - prova de que a recomposição da direita em curso pode também atingir a esquerda.
O que falta saber é se o movimento que o BE ensaiou de rutura em relação ao PS - e que se traduziu no voto contra o OE 2021 - atingirá ou não a candidatura de Marisa Matias. Surgiram estudos de opinião constatando que o partido perdia apoio eleitoral por se pôr de fora da geringonça (assim como foi duramente penalizado por ter contribuído para a queda de José Sócrates em 2011).
Mas as sondagens dizem ainda pior, na perspetiva da eurodeputada do BE. É mesmo possível que o candidato do PCP, João Ferreira, fique à sua frente. A luta de Marisa Matias parece portanto estar rodeada de grande dramatismo.
Para o candidato do PCP, pelo contrário, a fasquia de 2016 é baixíssima: ultrapassar os 3,95% (183 mil votos) obtidos por Edgar Silva - o pior resultado presidencial alguma vez obtido por um candidato comunista.
Mas pelo que mostram atualmente as sondagens, a noite eleitoral de João Ferreira poderá ter um sabor agridoce: pelo lado azedo, ficar atrás de André Ventura; pelo lado doce, ficar à frente de Marisa Matias. Depois resta saber como o partido avaliará a sua prestação para efeitos de tirocínio na sucessão de Jerónimo de Sousa. As presidenciais parecem ser as primárias do PCP para a escolha do sucessor do atual líder.
Com tudo isto, há alguém que permanece, aparentemente, tranquilo: o primeiro-ministro. O único resultado que verdadeiramente o perturbaria seria Ana Gomes passar à segunda volta - mas nada aponta para isso. Para o líder socialista só falta mesmo saber se no próximo quinquénio Marcelo cumprirá ou não a promessa de ser "exatamente o mesmo" que foi desde 2016: um PR cooperante e solidário com o governo. O histórico demonstra que nunca nenhum Presidente foi "exatamente o mesmo" do primeiro para o segundo mandato.