Uma firmeza de carácter que poderia ser entendida com juízos contraditórios, tanto mais que ele raramente sorria. Conheci-o em 1977, durante o 11 de Junho, na Guarda. Fora enviado à cidade alta, para relatar, em uma página do Diário Popular, o que se me afigurava fastidiosamente desinteressante. Não o foi. E, em vez da página combinada, a qualidade comovente dos acontecimentos impeliram-me a escrever um suplemento de dezasseis. A acompanhar-me, Rocha Pato, correspondente do jornal em Coimbra, estimado camarada e jornalista fora do comum. O homem aparentemente distante, recém-eleito Presidente da República, foi à sala da imprensa. Quando lhe disse o meu nome, ele respondeu: "Sei muito bem quem o senhor é." E apertou-me a mão com firmeza e calor. António Ramalho Eanes. Ficámos amigos até hoje. Com ele viajei por Portugal e ao estrangeiro. Aprendi que ele dispunha de um sentido de ironia por vezes devastador, e que, apenas com uma frase era bem capaz de definir um homem e o seu cunho. Em épocas menos airosas da minha vida, havia sempre umas palavras, pelo telefone ou em carta. Certa vez, estava eu a passar pelos atropelos de uma insídia, ele telefonou e disse-me: "Não se esqueça de que só apedrejam as árvores que dão fruto." Não esqueci..Um homem como este, que desperta a estima em pessoas tão diferentes como Miguel Torga, Jorge de Sena, Vasco da Gama Fernandes ou Manuel da Fonseca e Augusto Abelaira, terá de possuir algo de distinto e até de oposto aos hábitos e vícios da época. Num tempo desvairado, onde a mentira e a omissão se sobrepõem aos valores da integridade, da honra e da decência, Ramalho Eanes é peça quase única. Eu, pelo menos, conheço poucos ou nenhum que se lhe equipare. Ele é um homem com a respeitabilidade antiga, daqueles para quem o aperto de mão constituía um compromisso irrefragável; um desses raros cavalheiros da velha fidalguia de província que jamais quebra o pacto de decoro e de brio estabelecido consigo mesmo. De contrário, seria "uma vergonha." .A homenagem que lhe fizeram vem na hora própria porque abre um parêntesis de memória virtuosa no lamaçal em que se pretende afogar-nos. O Marcelo, como lhe é costume, tentou confundir a reunião da Aula Magna com o tributo a Eanes, demarcando uma como de Esquerda e outra de Direita. Astúcias frequentes no comentador, tal o velho palhaço Chacrinha, na televisão brasileira, que dizia: "Estou aqui para complicar; não para explicar." A verdade é que tanto Soares como Eanes, se não obtêm unanimidades, conquistaram o afecto de muita gente de Direita e de Esquerda, indiscriminadamente. Viu-se, aliás, nos dois acontecimentos aludidos. E se esse afecto não é determinado pelos mesmos motivos e razões, outros há, de certeza, que aclaram e justificam a sua peculiar natureza. Uma certeza: nenhum destes dois está no outro lado da História.