Pequim tem preferência por Biden ou por Trump?

O atual presidente e candidato a novo mandato elegeu a China como a maior ameaça aos Estados Unidos. Mas o ex-vice-presidente, caso seja eleito, não deve mudar a política.

Como vê a China a eleição de dia 3 de novembro? Terá alguma preferência sobre quem estará na Casa Branca nos próximos quatro anos?

Enquanto Biden e Trump se digladiavam, o presidente chinês aproveitou a comemoração dos 70 anos da entrada na guerra da Coreia para avisar os candidatos, sem os nomear, que o unilateralismo, o protecionismo e a pressão máxima não funcionam. "E não só não funcionarão, como tudo isto acabará por levar a um beco sem saída", disse Xi Jinping.

O país mais populoso do mundo, com uma economia em crescimento vertiginoso e um regime político que se afirma no palco global, é um dos temas da campanha presidencial norte-americana. Afinal, foi o atual presidente e candidato a novo mandato quem elegeu a China como a maior ameaça aos Estados Unidos.

A decisão dos eleitores norte-americanos entre Donald Trump e Joe Biden não será necessariamente a que coincide com a de outros países, China incluída.

Durante a campanha eleitoral de 2004, que opôs o então presidente George W. Bush a John Kerry, dois norte-americanos lançaram uma página na qual os cibernautas de qualquer ponto do mundo simulavam a eleição. Para Kevin Young e David Frost todos os cidadãos do planeta deviam poder participar na escolha, uma vez que as decisões da Casa Branca afetam, de uma maneira ou de outra, o planeta. O voto do meio milhão de participantes tombou para o democrata (88%), em contraste com o voto popular dos eleitores norte-americanos, que elegeram o homem que declarou "guerra ao terror".

Paul Haenle, diretor do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy, disse que a administração Trump limitou-se a "evidenciar os problemas com a China", mas não tentou resolvê-los. "Não sei dizer qual é o objetivo. É mais uma atitude e menos uma política. É mais uma emoção. Não é bom para a segurança nacional dos EUA ter esse tipo de política", comentou ao Financial Times.

China no debate

No segundo e último debate entre os candidatos republicano e democrata, a China não podia ter deixado de ser referida. Ora para Trump insinuar que o oponente é corrupto (acusou Biden de ter recebido 3,5 milhões de dólares da Rússia através do filho Hunter), ao que o ex-vice-presidente disse que quem tinha uma "conta bancária secreta" na China era o adversário, como foi revelado pelo New York Times. Ora para puxar os galões sobre a guerra comercial com o gigante asiático,. Biden acusou a administração Trump de ter agravado o défice da balança comercial, o que não é verdade.

Sob o lema America first, Trump iniciou uma guerra comercial com a imposição de tarifas que inverteu a tendência que se registou até 2019. Em janeiro, os EUA e a China assinaram um acordo parcial que comprometeu Pequim a importar mais 200 mil milhões de dólares em produtos norte-americanos ao longo de dois anos.

No debate, Trump voltou a repetir a falsidade de que a China está "a pagar milhares de milhões de dólares" em tarifas. São as empresas importadoras que pagam as tarifas, refletindo-se em menores lucros ou num aumento do preço dos produtos. Daí que Biden tenha dito que são os contribuintes quem paga a fatura: neste momento a receita federal ultrapassou 65 mil milhões de dólares. Uma fatia considerável, 28 mil milhões, como o próprio Trump disse, está a ser canalizada para os agricultores que, graças à resposta de Pequim, deixaram de conseguir vender soja e, em menor grau, algodão no mercado chinês.

Mas a verdade é que a guerra comercial, aliada a ações concretas, como o fim do estatuto especial que Hong Kong gozava em relação ao comércio com Washington, a perseguição de empresas tecnológicas chinesas como a Huawei ou a aplicação TikTok, ainda a mais com a pandemia em curso, tem um custo para a China.

"A China perdeu enormemente no seu plano de comércio e tecnologia", reconhece o analista político Hua Po, baseado em Pequim, à AFP.

"Penso que existe um amplo reconhecimento no Partido Democrata de que Trump esteve muito certo no diagnóstico das práticas predatórias da China", disse Kurt Campbell, que foi alto funcionário no Departamento de Estado de Obama, ao Wall Street Journal.

"Biden herdará as tarifas, e tenho dúvidas de que as levantará de forma unilateral", afirma Bonnie Glaser, diretora do China Power Project no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. "Pequim terá provavelmente que ceder a outras exigências dos EUA se quiser que as tarifas sejam levantadas".

Na China olha-se para o candidato democrata com desconfiança. "Se Biden for eleito pode ser mais perigoso para a China, porque irá trabalhar com aliados para atingir a China, enquanto Trump está a destruir as alianças dos EUA", disse à Bloomberg News Zhou Xiaoming, um antigo empresário chinês.

5G divide

Washington vê a Huawei, líder mundial na tecnologia 5G da internet, como uma ameaça à segurança e tem feito uma campanha de pressão junto dos aliados, como Portugal, para que escolham entre a China e os Estados Unidos.

A China, cujo Estado policia os cidadãos através do maior número possível de tecnologias, terá de convencer os outros países de que o tratamento de dados é seguro. Nesta semana, a Suécia proibiu a utilização de equipamentos chineses na tecnologia 5G.

"A Huawei tem estado no radar dos EUA como uma ameaça à segurança, mesmo antes da presidência Trump", comentou Theresa Fallon, diretora do Centre for Russia Europe Asia Studies, à AFP. "Politicamente, será quase impossível para Biden inverter estas políticas."

Do ponto de vista chinês, a vitória de Trump, que neste momento não é o cenário mais provável, tendo em conta as sondagens e previsões, como a da FiveThirtyEight, poderia ser o menor dos males, segundo vários peritos.

Por um lado, a continuidade da política agressiva e unilateral de Trump é terreno fértil para a continuidade, por Xi Jinping, do plano Uma faixa uma rota, da qual Portugal faz parte, e na qual procura consolidar a ascensão do país como uma superpotência.

Numa das primeiras medidas na Casa Branca, Trump retirou os EUA do Tratado Trans Pacífico. Mais recentemente, os EUA anunciaram a saída da Organização Mundial da Saúde no auge da pandemia, responsabilizando a instituição por ter agido de forma cúmplice com a China, país onde foi detetado o novo coronavírus.

A China preencheu o espaço vazio onde os EUA recuaram: Xi apresenta o seu país como o líder do comércio livre e da luta contra as alterações climáticas. Quanto ao "vírus da China" ou "Kung flu", como a administração Trump tem chamado ao SARS-COV2, prometeu partilhar uma futura vacina com as nações mais pobres.

"Um segundo mandato de Trump pode dar à China mais tempo para se erguer como uma grande potência na cena mundial", crê Zhiqun Zhu, professor de ciência política e relações internacionais da Universidade de Bucknell, na Pensilvânia. Não falta quem concorde: Philippe Le Corre, da Harvard Kennedy School, diz que a política America first deu espaço de manobra à China, ao "separar parcialmente Washington dos seus aliados tradicionais".

Também na China se crê que o nacionalismo de Trump só ajudou a fortalecer o nacionalismo chinês e o sentimento de unidade. Nos meios de comunicação social Trump é designado como "Jianguo", o que significa "ajudar a construir a China".

Seja como for, a pressão de Washington e o facto de ambas as candidaturas serem encabeçadas por septuagenários são vistos em Pequim como um sinal de decadência. Eric Li, do Instituto da China na Universidade Fudan de Xangai, comparou os Estados Unidos aos anos que antecederam a implosão da União Soviética. O país está no meio de uma "rixa existencial entre dois quase octogenários", disse Li. "Lembra-se [dos antigos líderes soviéticos] de Brejnev, Andropov e Chernenko?"

Direitos humanos

Tendo em conta que a República Popular da China rege-se por uma ditadura, o respeito pelos direitos humanos é outro tema quente, em especial no que respeita às acusações sobre o tratamento da minoria muçulmana uigure e à lei de segurança em Hong Kong que põe em causa a autonomia do território.

A administração Trump, com os seus telhados de vidro no dossiê (a separação de pais e filhos imigrantes ilegais à cabeça na fronteira com o México), não tem sido um arauto na defesa dos direitos humanos. "É provável que Biden seja mais duro do que Trump em questões de direitos humanos em Xinjiang e no Tibete", disse Zhiqun Zhu. Biden já afirmou que centraria as questões dos direitos humanos e dos valores democráticos como Trump nunca o fez.

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