Da euforia à rutura. Livre em Congresso para acabar com o caso Joacine e "aperfeiçoar" as primárias

Da euforia da eleição à iminente rutura com Joacine Katar Moreira, o Livre abre este sábado o nono congresso sob o signo da divisão interna.
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Pouco mais de três meses depois de uma histórica eleição para a Assembleia da República, o Livre abre este sábado o seu nono congresso a discutir o impensável na festejada noite de 6 de outubro - a rutura com Joacine Katar Moreira, uma decisão que ameaça remeter novamente o Livre para a condição de partido sem representação parlamentar.

A proposta de retirar a confiança política a Joacine chega à reunião magna nada menos que pela mão da Assembleia, o órgão máximo entre congressos. Logo na manhã deste sábado, os militantes terão de decidir o que fazer com a proposta. E das três, uma: vai a votos e é aprovada; vai a votos e é chumbada; ou é remetida para apreciação posterior dos órgãos que forem eleitos neste fim de semana. Para que este último cenário se concretize basta que um dos participantes no congresso proponha sujeitá-lo a votação.

Já se a resolução for aprovada cabe a Joacine Katar Moreira decidir se abdica do lugar de deputada em favor do número dois do Livre por Lisboa, ou se passa a independente na Assembleia da República. Segundo o DN apurou, até ao final da tarde de sexta-feira o Livre não tinha qualquer eco da deputada quanto à resolução da Assembleia, mas no partido não é esperado que Joacine abdique - o documento que propõe a retirada da confiança política não aponta, aliás, nesse sentido, falando antes na perda de representação parlamentar.

Se a resolução for chumbada pelos congressistas, a direção eleita fica obrigada a procurar ainda um caminho de convergência com Joacine Katar Moreira. Uma tarefa que se adivinha espinhosa, até porque muitos dos membros dos órgãos dirigentes são recandidatos ao lugar - e a resolução da Assembleia teve a solidariedade dos vários órgãos do Livre. A longa e pesada lista de acusações que constam do documento também não deixa muito espaço a uma inflexão de rumo. "Isto tem sido um processo doloroso e cada vez mais irrecuperável", diz ao DN fonte do Livre, defendendo que o partido fez tudo o que podia para manter aberta a via do diálogo com a deputada.

Até ao final da tarde de sexta-feira, Joacine - que não integra a lista da direção (o Grupo de Contacto), nem se candidatou à Assembleia do partido - não se tinha ainda inscrito no congresso. Mas, segundo fontes internas, se marcar presença não será impedida de entrar e falar na reunião magna, mesmo na ausência de inscrição.

O "desconforto" mora em casa

O "desconforto" que o Livre e Joacine Katar Moreira prometeram trazer para a política nacional - o famoso "pontapé no estaminé" da campanha às legislativas - nunca chegou, afinal, a sair de casa. Isso é notório na resolução aprovada pela Assembleia, um longo libelo acusatório contra a deputada, a quem é apontado um comportamento de desrespeito e deslealdade para com o partido.

Mas o documento não conta tudo. Conforme o DN apurou, quando em novembro eclode o primeiro conflito público entre a direção e Joacine, depois da abstenção da deputada num voto do PCP sobre a Palestina, as relações internas já estavam bastante azedas. Nos dias anteriores, as duas partes entraram em divergência por causa de um outdoor que o partido queria colocar na rua. Joacine queria que o cartaz fizesse referência a Aristides de Sousa Mendes (a trasladação para o Panteão do antigo cônsul em Bordéus foi a primeira iniciativa apresentada na Assembleia da República pela parlamentar), mas a direção entendia que não, que o outdoor deveria versar sobre a esquerda verde europeia. Foi na sequência desta divergência que Joacine cortou relações com a direção, o que vem a refletir-se depois na incomunicabilidade entre as duas partes que conduziu ao episódio da Palestina, que viria a ganhar enorme repercussão, dando azo a uma troca pública de acusações.

Outro focos de tensão foram a Lei da Nacionalidade e depois o Orçamento do Estado - a resolução da Assembleia acusa a deputada de se ter reunido com o governo sem dar conhecimento prévio ao partido, ao qual também não terá comunicado os resultados desse encontro.

No Livre fala-se numa atitude deliberada de confronto por parte da deputada, mas as divergências não são apenas de forma. A secundarização de bandeiras de sempre do partido, como a Europa ou a ecologia, em favor de uma agenda personalista e identitária é outra queixa recorrente, que até já levou à saída de militantes fundadores.

O DN tentou insistentemente, ao longo do dia de sexta-feira, contactar Joacine Katar Moreira e o seu assessor parlamentar, sem sucesso. Em vésperas do congresso, também o Grupo de Contacto do Livre se remeteu ao silêncio.

Moções contra e a favor de Joacine

O conflito com Joacine ameaça tomar conta dos dois dias do congresso do Livre, que se inicia nesta manhã no Centro Cívico Edmundo Pedro, em Lisboa. A debate vão estar 19 moções (uma global, da direção, que já não integra Joacine, e 18 setoriais), boa parte delas com referências mais ou menos explícitas à relação do partido com a deputada. Uma das moções - que, significativamente, tem por título "Recuperar o Livre, resgatar a política" - propõe igualmente a retirada da confiança à deputada. Em sentido contrário, um outro texto defende Joacine, enunciando "Um compromisso do Livre com as lutas emancipatórias".

O texto apresentado pela direção, que sustenta a lista única candidata à direção executiva, também se refere à questão, ainda que de forma implícita, ao sublinhar que a eleição de um representante para a Assembleia da República "levantou várias questões de funcionamento dos órgãos do partido". A defesa de decisões colegiais como prática do Livre não deixa também de ser um reparo a Joacine Katar Moreira.

Outra discussão paralela que é aberta nos textos ao congresso refere-se à forma como são escolhidos os candidatos do Livre, em eleições primárias abertas a não militantes. A questão é abordada na moção global, que fala em aprofundar e melhorar vários aspetos do funcionamento do partido, caso do "processo de primárias e da sua aplicação". Numa das moções setoriais lê-se que "o processo de primárias precisa de ser aperfeiçoado, nomeadamente assegurando que o partido se reveja nos candidatos selecionados e que estes se revejam nos programas que defendem".

O cenário de rutura: Livre perde projeção, Joacine perde subvenção

Se o "divórcio" entre o Livre e Joacine Katar Moreira se concretizar, com a deputada a passar à condição de "não inscrita" na Assembleia da República, ambas as partes ficam a perder, e em mais que um aspeto.

Em caso de rutura, o partido perde a voz no palco privilegiado de representação política que é a Assembleia da República. Mas mantém inalterados os valores da subvenção estatal, decorrente dos 56 940 votos alcançados nas legislativas de 6 de outubro. O que significa que continuará a receber, anualmente e até ao final da legislatura, 165.414, 50 euros.

Joacine Katar Moreira perde nos dois campos, na medida em que mudança de Deputada Única Representante de um Partido (DURP) para deputada "não inscrita" (sem vínculo a qualquer partido) lhe retira tempo de intervenção e também subvenção estatal.

À luz do Regimento da Assembleia da República, recentemente alterado para conferir mais direitos aos DURP, enquanto deputada não inscrita deixa de intervir nos debates quinzenais com o primeiro-ministro e perde a possibilidade de definir a agenda de uma sessão plenária em cada legislatura. Também deixa de ter assento na conferência de líderes, que decide os agendamentos das sessões.

Em termos financeiros a deputada mantém o direito a receber a subvenção atribuída aos grupos parlamentares, deputados únicos e não inscritos, mas sofre um corte assinalável. De acordo com dados da secretaria-geral da Assembleia da República, enquanto DURP a deputada tem direito a uma subvenção anual no valor total de 117 845 euros, paga mensalmente num montante de 9820 euros.

Se passar a não inscrita, a subvenção atribuída a Joacine passa a ter um valor total anual de 57 044 euros, o que corresponde a 4753 euros mensais, menos 5067 euros que o valor que recebe atualmente para fazer face aos custos de assessoria e comunicações.

O Livre em cinco atos

Rui Tavares foi o principal fundador do Livre, em 2014, depois de quatro anos como eurodeputado eleito numa lista do BE. Tentou levar o partido ao Parlamento mas falhou. Joacine Katar Moreira conseguiu-o.

BARNABÉ
Rui Tavares, historiador, nascido em Lisboa em julho de 1972 (tem 47 anos), surge em 2003 no espaço público escrevendo no blogue Barnabé, que fundou com Daniel Oliveira, ex-jornalista, então dirigente e funcionário do BE (que tinha ajudado a fundar mas de que já não é militante), hoje comentador político (SIC, Expresso, etc.).

EUROPA À BOLEIA DO BE
Rui Tavares integra como independente, em terceiro lugar, a lista do BE candidata ao Parlamento Europeu, atrás de Miguel Portas e Marisa Matias. Inesperadamente, é eleito. Dois anos depois rompe com o BE, acusando o líder do partido, Francisco Louçã, de ser avesso a independentes. Fica no BE até ao fim do mandato.

NASCE O LIVRE
Em 2013, Rui Tavares começa a tratar de fundar um novo partido, que é criado no Tribunal Constitucional em janeiro de 2014. Vai a votos pela primeira vez nas Europeias de junho desse ano. Tavares é o cabeça-de-lista mas falha a eleição. Com 2,18% (cerca de 71,6 mil votos), o Livre foi o maior partido dos que não elegeram eurodeputados. Mais tarde forma-se o Livre/Tempo de Avançar, que integra dissidentes de várias origens (do BE, do PCP, etc).

ANTEVER A GERINGONÇA
Nas legislativas de 2015, Tavares é cabeça-de-lista por Lisboa. O Livre sublinha a importância do diálogo à esquerda: uma antevisão da geringonça. O historiador volta a falhar a eleição (e vê o PAN conseguir um eleito, pela primeira vez). O resultado é pior do que nas europeias de 2014: 39,3 mil votos (0,73%). Fica atrás do PDR (de Marinho e Pinto) e do MRPP.

EFEITO JOACINE
2019. Nas europeias, Tavares é novamente cabeça-de-lista e volta a falhar a eleição. Recusa depois ir às primárias do partido para ser candidato a deputado nas eleições legislativas. Avança Joacine Katar Moreira. Com 57,1 mil votos (1,09%), o Livre chega finalmente à Assembleia da República. Depois foi o que se viu.

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