Águas residuais vão ajudar a prever novos surtos de covid-19
E se fosse possível prever com alguns dias de antecedência uma segunda vaga de covid-19 - e uma terceira, ou quarta, quem sabe - através de uma simples análise de rotina às águas residuais?
As vantagens de um sistema de alerta desse tipo são evidentes. Isso daria a folga necessária para lançar medidas que permitissem travar um novo surto antes mesmo de ele surgir, minimizando o seu impacto na saúde pública e na comunidade. Este sistema de alerta ainda não existe, mas já está em marcha um projeto de investigação - o Covidetect - para que ele se torne realidade já no próximo ano.
"Detetar vestígios de vírus e micro-organismos nos efluentes que chegam às ETAR [estações de tratamento de águas residuais] não é uma coisa nova, já se faz uma vigilância de rotina de parâmetros microbiológicos", diz Mónica Vieira Cunha, professora e investigadora da Faculdade Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).
O que é novo, agora, é o próprio vírus - o SARS-CoV-2. Por isso, o método para a sua deteção nas águas residuais e o processo para, a partir daí, prever um eventual novo surto da doença têm de ser criados de raiz. É o que está a ser feito com este projeto.
O Covidetect foi lançado em 20 de abril por um consórcio liderado pela Águas de Portugal, com a coordenação científica da FCUL. Mónica Vieira Cunha, que lidera um grupo de investigação no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (CE3C), na mesma faculdade, é a coordenadora científica do projeto.
"Ainda não sabemos exatamente quantos dias poderemos antecipar um eventual novo surto da doença, a partir dessas análises, mas os dados de referência na literatura científica apontam para cinco dias, que podem ser preciosos para implementar medidas de contingência", adianta a investigadora.
O projeto decorre neste momento a bom ritmo. O método de deteção e quantificação do coronavírus nos efluentes está concluído e validado, e o trabalho acaba de entrar numa segunda fase, em que estão a ser feitas análises diárias nas cinco ETAR envolvidas no projeto: as de Serzedelo e Gaia Litoral no Grande Porto, e as de Beirolas, Guia e Alcântara na região de Lisboa.
Durante os próximos seis meses a equipa vai colher e tratar dados, a partir dos quais desenvolverá, paralelamente, os modelos ecoepidemiológicos de previsão para a covid-19.
"Concluímos a primeira fase do trabalho, na qual validámos um método de análise robusto para detetar e quantificar vestígios do vírus nos efluentes", refere Mónica Vieira Cunha.
A colheita de amostras é feita no ponto de chegada às estações de tratamento, antes de os efluentes serem tratados, e os dados mostram que há ali vestígios do SARS-CoV-2, o que "não é surpreendente", como diz a coordenadora científica do projeto.
As pessoas infetadas excretam vírus nas fezes e, eventualmente na urina, e como as estações de tratamento de águas residuais que participam no projeto servem populações onde há circulação do vírus, esse era um resultado expectável.
Na prática, o que os investigadores encontram nos efluentes domésticos é o material genético do vírus, ou seja, as moléculas de RNA de que ele é feito. E, como sublinha Mónica Cunha, "à luz do conhecimento atual, não há nenhuma evidência de que, naquelas circunstâncias, o vírus esteja viável".
A fase de monitorização regular dos efluentes para o coronavírus já decorre há mais de uma semana, com a colheita de amostras diárias das águas que chegam às cinco ETAR. "Estamos a quantificar os vestígios do vírus e a gerar dados, e durante os próximos seis meses vamos processar essa informação."
Será com base nisso que a equipa vai construir os modelos de previsão - a base do sistema de alerta precoce para eventuais novos surtos do coronavírus.
"Investimos muito num bom plano de amostragem, no trabalho estatístico e numa elevada sensibilidade do método para podermos lidar com a incerteza dos dados e a complexidade da situação", explica Mónica Vieira Cunha. "Quanto maior for a série de dados, mais robustos serão os modelos ecoepidemiológicos, que nos vão permitir estabelecer a correlação entre a carga viral detetada nas águas residuais e o número de pessoas infetadas numa determinada população. A ideia, depois, é olhar para os dados num dado momento e conseguir estimar o número de pessoas infetadas", resume a investigadora.
"O que é relevante aqui é que isto tem potencial para corrigir a informação sobre a circulação do vírus que é obtida a partir do número de casos conhecidos com base nos testes de diagnóstico, uma vez que há um grande número de doentes assintomáticos ou ligeiros, e a maioria da população não é testada."
Nos efluentes também desagua essa presença silenciosa do vírus na comunidade e é por isso que este sistema "será muito útil no futuro para corrigir os números de infetados e para antecipar uma eventual segunda vaga", estima Mónica Vieira Cunha.
Já não seria pouco, mas as potencialidades desta investigação não se esgotam no sistema de alerta. A par da colheita e modelação dos dados, a equipa pretende fazer também durante esta segunda fase do projeto a caracterização molecular do vírus cujos vestígios estão a chegar às ETAR.
"A ideia é fazer a caracterização molecular dos vírus para tentar perceber a sua diversidade genética e reconstruir as cadeias de transmissão, incluindo os infetados assintomáticos, que não chegam a ser diagnosticados", adianta a investigadora.
Esse trabalho de sequenciação e reconstrução dos genomas do vírus a partir do material genético detetado nas ETAR será feito na própria FCUL, com recurso às tecnologias de bioinformática da faculdade, e deverá iniciar-se dentro de uma ou duas semanas.
Mais uma vez, esta é uma abordagem complementar à sequenciação de genomas do Sars-cov-2 que está a ser feita em Portugal a partir de amostras de pessoas diagnosticadas com covid-19, por vários grupos de investigação do Instituto Nacional Ricardo Jorge, Instituto Gulbenkian de Ciência e do instituto I3S, da Universidade do Porto, como o DN já antes noticiou.
Uma hipótese real é a de surgir nos efluentes domésticos material genético de estirpes do Sars-cov-2 que ainda não foram estudadas, por provirem de doentes assintomáticos ou ligeiros que ficaram por diagnosticar. Se isso acontecer, abre-se a oportunidade de estudar esses genomas, no que será com certeza um contributo novo para um conhecimento mais amplo do vírus e da pandemia.
Além disso, como sublinha a investigadora, fica feita a prova de conceito de todo o processo, que pode ser aplicado no futuro a outros agentes patogénicos.
Para Mónica Vieira Cunha, fazer a coordenação científica deste projeto, no qual participam outros investigadores da FCUL, do CE3C e do Centro de Estatística e Aplicações da Universidade de Lisboa (CEAUL), e também do Instituto Superior Técnico, é como "fechar um ciclo" no seu próprio trabalho de investigação.
O foco do grupo que lidera no CE3C, sobre investigação, epidemiologia da paisagem e doenças infecciosas dos animais, é justamente o da avaliação da saúde dos ecossistemas, o que inclui a saúde humana, ambiental e animal. Estudar um novo vírus nas águas residuais acaba por ser uma sequência natural desse percurso.
A ideia para este estudo, conta Mónica Vieira Cunha, "surgiu de uma conversa informal" com um engenheiro da Águas de Portugal com quem já trabalhava noutros projetos. "Começámos a discutir ideias e percebemos que era possível fazer isto."
O Covidetect arrancou por vontade e com o esforço financeiro dos próprios parceiros do consórcio - que conta ainda como parceiros com a Águas do Norte, a Simdouro e Águas do Tejo Atlântico -, que entretanto concorreu a verbas do programa Portugal 2020. A equipa soube na semana passada que o projeto teve financiamento aprovado para um ano - perto de 300 mil euros.
Concluídos e testados os modelos de previsão, o que deverá acontecer dentro de seis meses, o objetivo "é alargar depois o processo a todo o país, para que o novo conhecimento possa ser implementado por outras entidades gestoras de estações de tratamento de águas residuais", adianta Mónica Vieira Cunha. E, para que o sistema de alerta possa funcionar em tempo real, vai ser desenvolvida também uma plataforma de informação na qual serão disponibilizados os dados para as autoridades de saúde. Até lá, ainda há muito trabalho pela frente.
Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por abbvie.pt