O primeiro mês de covid-19 em Portugal. A "simples gripe" que afinal é uma pandemia

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O primeiro mês de covid-19 em Portugal. A "simples gripe" que afinal é uma pandemia

Faz um mês que foi diagnosticado o primeiro caso de coronavírus em Portugal. Não foi óbvio para Casimiro Sousa nem para a maioria dos primeiros infetados portugueses a dimensão da doença. Hoje, com o país em estado de emergência, o discurso é outro.

Passou um mês desde que foram confirmados os primeiros casos de covid-19 em Portugal. O boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde (DGS) chegou no dia 2 de março. Trazia a notícia de dois doentes no norte do país e muitas dúvidas sobre a forma como Portugal ia conter o surto. "Eu nem para a Saúde 24 liguei, porque achei que não tinha sintomas do vírus", diz um dos primeiros doentes, também o recuperado número um. Hoje, continuam a faltar certezas e a análise da curva epidemiológica é feita com muitas reticências, mas a maioria dos portugueses já sabe que para combater a pandemia é preciso ficar em casa e seguir os conselhos das autoridades de saúde.

Portugal tem agora 8251 casos de infeção pelo novo coronavírus, 187 mortes e 43 recuperados, segundo o boletim epidemiológico da DGS desta quarta-feira. O número de doentes aumentou 10,9% em relação a ontem e o de mortos 16,9%. "O grau de incerteza é grande. Ainda é cedo para avaliar a tendência", assumiu logo o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, durante a conferência de imprensa diária, acrescentando que o governo está disponível "para não abrandar estas medidas", referindo-se ao encerramento das escolas, por exemplo, ou ao prolongamento do estado de emergência nacional.

Ricardo Mexia, o presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, também não tenta uma interpretação mais alargada sobre a evolução dos casos no país. "É difícil de analisar sem ter a certeza de que os números refletem a realidade. Temos de fazer uma análise mais cautelosa enquanto não houver estabilização dos números", diz ao DN. Apesar de o aumento de novos casos ter diminuído durante o fim de semana e na segunda-feira, tendo chegado a ser de 7,5%, "temos algumas dúvidas em relação à forma como devemos olhar para os dados", indica Ricardo Mexia.

A redução desta semana "pode ser real ou pode ter que ver com a dificuldade na realização dos testes ou até com a forma como os dados estavam a ser contabilizados", explica o especialista, que integra a equipa de epidemiologistas do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. "No princípio tivemos uma política muito restritiva no que toca aos testes e quando entrámos na fase de mitigação [que já prevê contágio comunitário] decidiu-se alargar a qualquer pessoa que tenha sintomas. Os casos são validados pela linha SNS 24, recebem a mensagem, mas as pessoas não têm onde fazer o teste. Já me falaram em casos de pessoas a quem estão a marcar os testes para dia 9, o que é muito complicado".

Entretanto, na terça e na quarta-feira, os números de infetados por dia voltaram a aumentar. Para o infecciologista Jaime Nina, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, esta subida estará relacionada também com a meteorologia. "Nas últimas 48 horas, a curva deu um pulo por causa da humidade, que conta muito na perspetiva do vírus que melhor sobrevive ao ambiente húmido. Com a chuva, com o tempo coberto de nuvens e passagem de menos raios ultravioleta, o vírus pode sobreviver horas. Quanto mais quente for o tempo, mais depressa as gotículas expelidas se evaporam. Se o vírus for exposto à secura ambiente, morre com mais facilidade", refere o especialista.

Há, no entanto, um número que se tem mantido inalterado nos últimos sete dias: o de recuperados, que são 43. Segundo o secretário de Estado da Saúde, isto acontece por se tratar de um "doença de convalescença lenta" e por ser mais difícil ainda dar alta a quem está internado em casa, até porque são necessários dois testes de despistagem negativos.​​​​

"Primeiro dizia que era uma simples gripe, mas enganei-me"

Casimiro Sousa, 50 anos, é um dos primeiros infetados em Portugal e também a primeira pessoa recuperada. Vive em Lousada e trabalha em Felgueiras, na região norte (a mais afetada pela pandemia, com 4910 casos e 95 mortes). Terá contraído o vírus em Milão, no norte de Itália, quando se deslocou com o patrão da fábrica de sapatos onde trabalha a uma feira de calçado internacional, no final de fevereiro.

Na altura, o covid-19 era uma doença distante para si. Era um vírus que se apanhava na China (país onde o surto começou no final do ano passado). "Quando fomos não se ouvia muito falar disto. Se já se falasse não teríamos saído de casa. Pensávamos que estava só na China. Quando a feira acabou é que comecei a ouvir falar em Itália e a bomba explodiu", diz ao DN.

Nunca chegou a manifestar todos os sintomas, nunca teve febre, por exemplo, o que dificultou a sua perceção de que precisava de ir ao hospital. "O único motivo que me fez ir ao médico foi uma dor no peito que tinha. Achava que era uma constipação normal. Eu nem para a Saúde 24 liguei. Achei que não valia apena, porque não tinha sintomas do vírus."

"Primeiro dizia que era uma simples gripe, mas enganei-me", admite. O diagnóstico levou pelo menos uma semana a ser feito e até lá terá contagiado terceiros, iniciando o primeiro grande foco de contágio do país em Lousada e em Felgueiras, municípios que começaram por decretar o isolamento social.

Casimiro Sousa foi internado no Hospital de São João, no Porto, onde esteve até ter dois testes de despiste negativos, mesmo assim fez uma quarentena de 14 dias em casa e os médicos continuam a telefonar-lhe para saber sobre o seu estado de saúde. O susto, porém, ainda não passou.

"Descansado, descansado não estou. Até porque a minha mulher e as minhas filhas não tiveram [covid-19] e mesmo eu estou sempre com um pé atrás", explica, pedindo a todos "que façam o que as autoridades de saúde mandam e fiquem em casa".

"O que é absolutamente assustador é o desconhecimento"

Pela mesma altura - no final de fevereiro - um colega do marido de Margarida chegava a Portugal também vindo Itália, Bergamo. Este colega sabe-se hoje que é assintomático, mas transmitiu o vírus ao casal do Porto, também incluído na estatística dos recuperados.

"O que é absolutamente assustador é o desconhecimento. E não sabermos exatamente perante que tipo de vírus é que estamos e ninguém estava preparado, incluindo a Saúde 24. O meu marido andou uma semana a ligar para a linha e o algoritmo que tinham não conseguia identificá-lo como um caso de covid", diz Margarida. "Os enfermeiros perguntavam por tosse, hemorragias e o meu marido não tinha nada disso. Sabia que não estava bem, porque não era a sintomatologia a que ele estava habituado quando tem uma gripe. O desconforto era algo como ele nunca tinha tido. No meu caso também foi assim."

Segundo Margarida, o marido começou a ter sintomas no dia 26 de fevereiro, mas só ao final de uma semana confirmou a expectativa: era o sétimo infetado português. Foi internado pela primeira vez na vida, no Hospital de São João, para onde está a escrever agora uma carta de agradecimento pela forma como foi tratado. Já Margarida teve sintomas mais ligeiros e, portanto, fez o tratamento em casa como cerca de 90% dos doentes em Portugal.

Desinfeta todos os dias com lixívia a casa de banho, objetos pessoais como escovas de dentes e a cozinha. Mantiveram, desde o primeiro momento, a distância da filha pequena, que não foi infetada. "Eu comia na cozinha e deixava-a comer na mesa da sala a ver televisão, cada uma usava o seu sofá. Nós soubemos logo que alguma coisa não estava bem, ainda antes de termos a confirmação dos testes, e começámos a fazer uma vida completamente diferente da que fazíamos. Eu deixei de ir ao ginásio, deixámos de cumprimentar as pessoas no local de trabalho. Só vamos conseguir ultrapassar isto se cada um de nós ficar em casa e cumprir as recomendações da DGS."

Portugal e os outros países

A curva do primeiro mês de covid-19 em Portugal sugere que o país está abaixo dos números relatados por outras nações onde os focos do surto se intensificam, como Itália ou Espanha, que têm o maior número de mortes no mundo. O primeiro com 13 155 e o segundo com 9053, de acordo com os dados oficiais disponíveis às 21.30 desta quarta-feira. Mas isto não significa que Portugal não venha a aumentar ainda mais o número de casos e mortes, até porque o pico da pandemia no país continua previsto para abril/maio.

Também é cedo para avaliar o impacto das medidas tomadas por Portugal para conter a pandemia, como o fecho de escolas ou a declaração do estado de emergência - decretado pela primeira vez na história da democracia portuguesa - e que deverá ser prolongado até 17 de abril, com um regime sancionatório mais consistente e com uma tentativa de proteção dos direitos dos trabalhadores. Mas o primeiro-ministro já fala num "ritmo de crescimento menor" - sem, no entanto, descartar a preocupação. O "levantamento das restrições terá de ser lento, porque quando isso acontecer o perigo de contaminações sobe. Ainda não é possível ver a luz ao fundo do túnel", afirmou António Costa, nesta quarta-feira.

O infecciologista Jaime Nina não olha para a curva epidemiológica da mesma forma, mencionando que esta continua a subir, sem fugir às expectativas. "Para os responsáveis de saúde pública é de alguma forma frustrante, porque países como o Reino Unido, que ao início não tomaram medidas de contenção como as nossas, acabam por ter uma curva muito parecida. Não estão nem muito pior nem muito melhor", diz.

O Reino Unido é, neste momento, o oitavo país com mais doentes de covid-19: 29 474 e 2352 mortos. À frente estão, por ordem, os Estados Unidos da América, a Itália, a Espanha, a China, a Alemanha, a França e o Irão. O mundo já ultrapassou a fasquia dos 900 mil infetados e das 45 mil mortes.

Portugal é o 16.º país com mais casos confirmados e o 15.º com mais mortes, na maioria pessoas com mais de 70 anos.

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