Sobre música escocesa e focas que se transformam em pessoas

Publicado a

Uma foca parada na água gélida do grupo de ilhas escocesas conhecidas em português como Órcades (uma tradução de Orkney) é a primeira imagem que me ocorre quando me lembro do filme The Outrun (que em português será algo como A Evasão), de 2024, realizado por Nora Fingscheidt. Aquele animal plácido, a olhar para a câmara, é acompanhado pela voz da narradora e personagem do filme - Rona -, protagonizada pela atriz Saoirse Ronan, que naquele exato momento descreve hábitos relacionais das selkies, criaturas mitológicas que vivem no mar sob a forma de focas, mas que às vezes tiram a pele, transformam-se em pessoas e envolvem-se com humanos. Porém, o filme não é sobre focas.

Rona vive em Londres, tem um mestrado em Biologia e é alcoólica. A personagem vai afastando as pessoas que lhe são mais próximas, que não conseguem conviver com aquela adição que muda comportamentos, torna as relações imprevisíveis e condiciona vidas. Acaba por regressar a casa, nas Ilhas Órcades. É entre um presente de redenção e analepses que revelam o seu passado recente que Rona vai mostrando uma história realista e inesperadamente bonita.

O filme é baseado na obra homónima e biográfica da jornalista escocesa Amy Liptrot, que é também um poema sobre um mergulho ao submundo dos comportamentos aditivos.

Mas o filme é também sobre música, enquanto evasão, como quase tudo no filme. Fuga de qualquer coisa. Rona aparece muitas vezes a ouvir música, com headphones ou em discotecas. Sempre música eletrónica, profunda, intensa, alienante, como o próprio álcool. Considerando que a música proporciona ambientes, há um contraste entre aquilo que Rona ouve e a banda sonora serena extradiegética do filme. Ali, a inquietação surge apenas no silêncio ou na ausência de música, mas nunca na música.

Malin Lewis, à frente, com uma 'great highland bagpipe' (uma gaita escocesa), e dois dos músicos com quem toca.
Malin Lewis, à frente, com uma 'great highland bagpipe' (uma gaita escocesa), e dois dos músicos com quem toca.Foto: Sandy Butler/Facebook

Vamos afastar-nos um pouco do filme para falar sobre algo que parece não ter nada a ver com ele, mas já regressamos. Até dia 21 de dezembro de 2025, está em exibição no São Luiz, em Lisboa, a peça Prometo-me Moderna, da encenadora Alice Azevedo, que é baseada no livro Frankenstein, de Mary Shelley. A peça é um manifesto sobre o direito a ser, por isso, com um elenco quase na totalidade composto por atrizes transexuais - incluindo a encenadora -, é mostrada uma ligação, necessariamente chocante, entre o corpo das pessoas trans e o corpo dificilmente natural do monstro criado por Victor Frankenstein. Depois de ver a peça, pensei melhor sobre como a vida inspira a arte, ou o inverso, principalmente quando há um grito escondido sobre algo tão simples e tão aparentemente difícil de conseguir como é o direito a ser. E não deveria ser difícil. Não vou politizar o tema, não vou criticar quem acha que sabe mais sobre pessoas trans do que elas sobre si próprias, embarcando em discursos que limitam o seu direito a ser. Prefiro dar a conhecer a genialidade da arte queer, se é que podemos falar em arte queer. É arte como qualquer expressão verdadeira. Se calhar, só há arte.

Regressemos ao The Outrun. Parte da banda sonora do filme, aquela que é serena e que deixa Rona mais próxima da redenção, foi interpretada por Malin Lewis, artista trans que tem elevado os padrões de práticas de música tradicional do Reino Unido a um nível inédito. Malin Lewis, para além de ser violinista, constrói e toca gaitas de fole escocesas. No que diz respeito a smallpipes, que são gaitas de fole menos intensas do que as gaitas escocesas mais conhecidas - as great highland bagpipes ou Piob Mhór -, Malin Lewis criou um ponteiro (tubo melódico) que permite tocar mais notas do que as que tradicionalmente eram suportadas pelo instrumento. No fundo, isto permite ir ao encontro da inovação musical que Malin Lewis abraçou e emprestou ao universo de The Outrun, tão marcado por música. A serenidade da música de Malin Lewis, que transporta consigo toda uma estética inspirada por tradições ancestrais europeias e pela sua própria experiência enquanto artista queer, é também resultado dum processo filosófico, que culminou no seu primeiro álbum, intitulado Halocline. Em português, haloclina designa a diferença visível entre camadas de água com salinidades diferentes.

Tal como Amy Liptrot, que nasceu nas Órcades, Malin Lewis também vem dum universo insular escocês, mas da Ilha de Skye, onde o mito da selkie também convive com a população. Uma foca que, em momentos específicos, deixa a pele para trás e emerge do mar como uma pessoa, para chegar a outras pessoas. No entanto, diz a lenda, se a selkie não regressar ao mar num período específico fica presa sob a forma humana para sempre.

Sobre música escocesa e focas que se transformam em pessoas
‘Prometo-me Moderna’ ou a “monstruosidade” imposta a pessoas trans
image-fallback
Na morte, tal como na música e no teatro
Diário de Notícias
www.dn.pt