"Querido público.” É com estas palavras, que convidam à atenção, que a encenadora Alice Azevedo se dirige incessantemente a quem a ouve em Prometo-me Moderna, a peça que estreia esta quinta-feira, 11 de dezembro, no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, e que é uma reimaginação da obra imortal Frankenstein, de Mary Shelley. O nome do espetáculo encerra muito da intenção da também atriz, tendo em conta que o título original do livro, na sua forma completa, é Frankenstein or the Modern Prometheus, que numa tradução livre seria Frankenstein ou o Prometeu Moderno. À margem da mitologia grega, esta peça inclui um manifesto sobre o direito a ser mulher e mulher transexual, e, sem spoilers, “o fim é sobre elefantes e maternidade”, explica cirurgicamente Alice Azevedo ao DN..Prometeu era um titã que desafiou os parâmetros do Olimpo e roubou o fogo que permitia aos deuses criar vida, criando ele próprio vida. Pagou caro a ousadia com uma tortura que incluiu um abutre a comer-lhe repetidamente o fígado, que, no caso dos seres imortais, implica uma dor que não termina. Prometeu amava os humanos e a vida, e foi assim que Mary Shelley em 1818 deu vida a um monstro criado por um cientista suíço chamado Victor Frankenstein, que, pouco depois da sua terrível criação, abraçou o arrependimento e recusou repetir a façanha, deixando a criatura entregue à solidão, por ser única.O romance epistolar de Mary Shelley habita o imaginário coletivo e já teve inúmeras adaptações cinematográficas e histórias paralelas, fiéis ou não à intenção original da autora.Agora, Alice Azevedo - que garante ter tentado “ser fiel aos temas e à estrutura” do livro de Shelley, até porque o “ama” - propõe algo que diz não ter criado, tendo em conta que radica também no texto da professora norte-americana Susan Stryker intitulado My Words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix, ou seja, As Minhas Palavras para Victor Frankenstein sobre a aldeia de Chamonix. O documento inclui ainda um subtítulo que levanta mais a cortina da intenção desta peça: Performing Transgender Rage, ou, em português, Representando a Raiva Transgénero.Alice Azevedo descreve Susan Stryker como “uma das principais vozes do pensamento trans dos últimos 30 anos”. Por este motivo, adota o texto referido por conter uma apropriação da “figura da criatura que fala ao seu criador para explorar a ideia de uma transexualidade que fala aos seus criadores”.E é daqui que parte a peça, numa imersão cénica que orbita entre um século XIX reimaginado, uma metáfora pueril da ideia de cirurgia e um manifesto sobre o corpo de uma mulher transexual, que várias vezes é retratada como um monstro.Questionada sobre se o objetivo era chocar, Alice Azevedo, que também é mulher transexual, admite que gostaria “de acreditar que muita gente ficaria chocada ao ouvir comparar mulheres trans a figuras monstruosas”. No entanto, a realidade, explica a encenadora, mostra que “muita gente não se chocaria”. .“Acho que essa carga de monstruosidade, seja sobre pessoas trans, seja sobre outras categorias sociais de pessoas, é uma carga que é imposta, que é criada, são narrativas que são disseminadas e alimentadas. Do nosso lado, resta-nos tentar fugir a elas, normalmente sem grande escapatória, ou enfrentá-las cara a cara”, argumenta.Tal como no texto original de Mary Shelley, onde o monstro várias vezes assume essa qualidade bestial, chegando a matar o irmão mais novo de Victor, também o texto de Susan Stryker mostra como “pessoas historicamente marginalizadas se reapropriaram de palavras que em tempos serviram para as humilhar, para as apequenar, para as prender”. É por este motivo que esta peça é um manifesto poderoso, que, segundo Alice Azevedo, funciona melhor do que pedir licença para entrar, “porque isso coloca o poder do outro lado, onde ele já está de qualquer maneira”. “Acho que durante muitos anos me esqueci disso, e este espetáculo é a minha forma de me tentar lembrar a mim mesma. O gesto de dizer: se sou uma monstra, então vou ser uma monstra”, afirma.Assim, descreve Alice Azevedo, Prometo-me Moderna surge como “esse gesto de aceitar o lugar para onde” as pessoas trans são “renegadas e construir algo nele para que ele deixe de ser um lugar de renegação”. Depois, continua a atriz, talvez esse lugar se transforme num “lar habitado e cheio de vida. Acho que é a alternativa mais potente e a mais viável para a exclusão”, remata.E é por ter uma preocupação com a “transfobia crescente na comunicação social e em discursos disseminados nas redes sociais” que Alice Azevedo decidiu trazer ao público este espetáculo que, explica, está a ser pensado desde 2021, quando trabalhava sobre outra metáfora que incluía “monstruosidade”.“Temo que as metáforas de monstruosidade sejam um terreno fértil para artistas queer que fazem trabalhos sobre questões queer”, adverte a atriz, que não garante que hoje, tal como está previsto, o espetáculo aconteça, tendo em conta as sua palavras finais: “Viva a greve geral!”No entanto, Prometo-me Moderna pode ser vista no São Luiz até 21 de dezembro..Atriz transexual nomeada para os Emmy.Morreu o ator Almeno Gonçalves. Tinha 66 anos.Diogo Infante: "Não sinto uma presença forte do D.Maria II no meio teatral. Há projetos mais interessantes"