A música também é um código, como qualquer língua o é. É uma constatação básica, de facto, mas só incorporei esta ideia há poucos dias, depois de uma conversa com o diretor do Museu Nacional da Música, Edward Ayres de Abreu, sobre um instrumento chamado madimba, que tinha sido adquirido por um português em Angola na primeira metade da década de 70 do século passado, e que agora está exposto naquela coleção. Percebi, acima de tudo, que a fruição estética ao ouvir uma música pode ser diferente da mensagem que lhe subjaz, da mesma maneira que a intenção do compositor também pode ou não passar para o ouvinte. No meio disto tudo - numa evocação muito superficial e nada académica da teoria desenvolvida por Michel Foucault em torno do conceito de autoria -, percebi que é no cérebro de quem ouve uma música que esta acontece e onde todas as explosões de beleza ou fealdade acabam por ganhar vida. Alguém consegue ouvir uma tempestade de verão na música L’estate, de Vivaldi, apenas conhecida como Verão? Claro que sim, e até é possível perceber que o vento estival é diferente dos outros, porque a música é uma língua.A madimba é uma espécie de xilofone de matriz rural africana. São várias barrinhas de madeira, com tamanhos diferentes, perpendiculares a uma estrutura que as suporta e que são percutidas por umas baquetas. O som de cada uma delas é de rememoração fácil: seco, com vários harmónicos, sem grande vibração prolongada. É o mesmo som que associamos a um determinado esqueleto que, num filme de Walt Disney intitulado The Skeleton Dance (A Dança do Esqueleto) usa aquilo que parece um par de tíbias para tocar num outro esqueleto. Foi Edward Ayres de Abreu que me alertou para isto, e fez todo o sentido, até porque o diretor do museu estava a explicar-me por que motivo aquele instrumento estava exposto ao lado de instrumentos associados à guerra.É assim que um certo imaginário coletivo consegue ouvir ossos a bater uns nos outros, mas num exercício semiótico que ultrapassa o escopo de Walt Disney. A primeira referência de Edward Ayres de Abreu para me explicar todas as ideias que aquele instrumento transporta é uma gravura renascentista de Hans Holbein onde se vê um esqueleto a tocar xilofone, que, por sua vez, foi evocada na Danse Macabre de Camille Saint-Säes, completando um ciclo inteiro de ossos a chocalhar, quando, na verdade, tudo o que está por trás é um xilofone ou uma marimba.Como se isto não bastasse para construir toda uma simbologia à volta da madeira sólida a ser percutida com alguma subtileza, ainda há mais uma história que o diretor do Museu da Música não conteve. O Estado Novo terá encomendado uma música a Joly Braga Santos com o objetivo de evocar o passado (naquela altura, presente) colonial português que o compositor, a contragosto, terá feito. Ele terá ido mesmo a Moçambique para se inspirar para a composição, que, no final, implicou o recurso a trompas para simular o som dos elefantes e - o espanto - a uma marimba para mostrar um certo espírito de África, talvez porque aquele continente estava associado a pequenas estatuetas de madeira que eram trazidas para Portugal.Mas o xilofone, dentro de uma cultura musical portuguesa de uma certa época, ainda mostrou mais vitalidade, porém, ironicamente, associada à morte..Edward Ayres Abreu, numa derradeira história sobre aquela madimba em concreto, foi buscar a história do compositor, maestro e professor de música Ruy Coelho, nascido no final do século XIX, e que conseguiu transfigurar a morte ou qualquer essência do mal numa parte duma ópera que levou ao São Carlos.Edward Ayres de Abreu descreveu este músico como uma “figura um bocadinho sinistra”, para além de ter ficado associado ao Estado Novo. Mas vamos regressar à ópera. Tratava-se do Auto da Barca da Glória, a partir da obra de Gil Vicente, onde não faltavam as personagens que habitam o imaginário de todas as gerações que sucederam o dramaturgo quatrocentista.Naquela ópera, como em quase todos os textos de Gil Vicente, surge mais um “diabo vicentino”, interpretado por um barítono, que repete, durante uns incessantes três minutos a mesma lenga-lenga: “Injusta guerra, sempre em guerra, sempre em guerra.”Por trás do cantor, naquele momento exato, com aquela frase iterada, saído do fosso da orquestra, o som dos vários naipes de instrumentos cessa para dar lugar a outro, carregado de todo um significado, protagonizado apenas por uma marimba e uns timbales (aqueles tambores grandes e graves que imprimem sempre um ar épico nos momentos certos).