Os seus pais são egípcios, mas nasceu em Montreal. Porquê situar este seu primeiro romance no Egito? É um regresso às suas raízes, e como disse em entrevistas, uma carta de amor ao Egito dos seus pais?É mesmo uma carta de amor ao Egito. Já fui ao Egito umas 15 vezes na vida, mas o Egito que descrevo é muito diferente daquele que vejo quando lá vou como turista ou para um evento familiar.Ainda tem lá família?Sim, ainda tenho família. Aliás, estive no Egito a promover o livro há umas semanas, e foi uma experiência fabulosa. Foi lançado em árabe há poucos meses, e é uma das coisas de que mais me orgulho. E sim, quis contar um pouco sobre o Egito dos meus pais. Não é a história deles, mas o pano de fundo desta história é o Egito da comunidade levantina, composta por falantes de francês que viveram no Egito, que vieram da Síria, do Líbano, da Palestina, que eram maioritariamente cristãos, e que formaram uma espécie de bolha nas grandes cidades egípcias. Queria falar um pouco sobre o Egito deles.Muitos dos elementos dessa comunidade levantina acabaram por se estabelecer no Canadá quando saíram do Egito. Essa também é parte da sua história? Na verdade, é a história de muitas pessoas desta comunidade, porque, como eram francófonos e partiram em grande número na altura das nacionalizações que ocorreram no Egipto, muitos escolheram destinos francófonos. Nessa altura, o Quebeque começava a abrir-se à imigração, pelo que muitos partiram para o Quebeque. É o caso dos meus pais. A minha mãe nasceu em Alexandria, o meu pai no Cairo, mas conheceram-se no Quebeque, onde eu nasci. Outros foram para França, Suíça e outros destinos. Portanto, esta não é a história deles, mas a de muitas pessoas.O que Não Sei de Ti é muitas vezes descrito como um livro sobre desenraizamento, escolhas difíceis e homossexualidade. Mas, para si, é um livro sobre o amor entre Tarek e Ali.Demorei muito tempo a dizê-lo. Quando o livro foi lançado, teve um grande impacto em França. E os jornalistas franceses faziam sempre perguntas muito elaboradas. Se eu queria reinventar o romance levantino? Se queria escrever uma grande saga histórica familiar, etc.? E eu não me atrevi a dizer-lhes que o que eu queria era escrever uma história de amor. Então, um dia, ganhei o prémio Femina dos Liceus, que é atribuído por alunos de 15, 16, 17 anos. E um jornalista perguntou a um deles: “Porque é que escolheu este livro, que se passa num país que não conhece, num século em que não era nascido, que se escreve no pretérito simples, que é um tempo verbal que não usamos tanto assim. Porquê este livro?” E o miúdo disse: “Porque é uma ode incrível ao amor”. E eu disse a mim mesmo: “É exatamente isto que eu queria escrever, mas nunca me atrevi a dizer isto a um jornalista”. Por isso, agora digo-o com mais facilidade. É uma história de amor. É também uma história de família, de exílio e de identidade.Sem revelar o que acontece no livro, podemos dizer que o protagonista, Tarek, prefere o exílio a enfrentar a censura da sociedade. É o fatalismo, o maktoub egípcio, que quis abordar?Tarek percebe, a dada altura, que a vida confortável que imaginamos para ele não é compatível com quem ele é, com o que sente e com a sua verdade. E o exílio torna-se a única solução possível para ele naquele momento. É uma história um pouco trágica. Acho que se pedisse à inteligência artificial para resumir o livro, ela diria: meu Deus, só acontecem coisas trágicas nele. Mas, na verdade, quando o escrevi, queria algo alegre. Queria colocar um pouco de humor. Queria colocar muita ternura também. A ternura é importante. Acredito que, em todas as formas de arte, o mais importante, o mais difícil de dominar, é a luz. E eu queria trazer luz neste livro. Não sei se a inteligência artificial o verá, mas penso que os leitores vão senti-lo.Já o disse antes, para si é importante deixar espaço ao leitor para criar um pouco a sua própria história…Acho que é importante dar essa liberdade ao leitor. Poderia descrever a Mira a chorar na cama, a ligar à melhor amiga e a dizer: “Não sabes o que se está a passar comigo, o meu marido está a trair-me, ainda por cima com um homem.” E, naquele momento, todos os leitores compreenderiam que precisam de ter empatia pela Mira porque ela está a chorar. E, além disso, ela explica porque está a chorar, por isso deveríamos compreender tudo. Mas prefiro que esta personagem passe pelo corredor da sua casa e se depare com uma fotografia do seu casamento, e simplesmente descrevo o gesto da mão a virar a fotografia para que ela não a possa ver mais. Porque significa exatamente a mesma coisa. Só que, no segundo caso, é o leitor que deve tentar interpretá-lo, perceber porque é que, neste momento da sua vida, a visão desta foto é insuportável. Gosto de dar essa liberdade ao leitor. Por vezes tenho debates nas livrarias e perguntam-me: “O Tarek era corajoso ou cobarde?” “A mãe dele era carinhosa ou má?” Eu não quero decidir, porque sei que a resposta é diferente para cada pessoa..Apesar de os protagonistas serem homens, as mulheres do seu livro são mulheres fortes. Cresceu numa família com mulheres fortes, foi nelas que se inspirou?Às vezes, brinco dizendo que a minha família é um pouco como a família real inglesa, que tem grandes rainhas e reis muito pequenos. E eu coloco-me entre os reis pequenos. Mas sim, cresci com mulheres muito fortes. E isso é algo bastante comum nas sociedades tradicionais, onde as mulheres se reapropriam na esfera privada do poder que lhes é negado na esfera pública. Eu queria dizer algo sobre estas sociedades onde, por vezes, esmagamos os homens com o peso das responsabilidades que lhes colocamos sobre os ombros por serem homens, mas podemos, ao mesmo tempo, esmagar as mulheres com o peso das responsabilidades que lhes recusamos por serem mulheres. Neste livro vemos que o pilar desta família está a cair. E quando um pilar cai numa casa, se não queremos que tudo desabe, todos devem unir-se para o recolocar no lugar. E são mulheres muito fortes que o estão a fazer. É a mãe, a irmã, a mulher, até a empregada.Falando um pouco de si, ainda trabalha no setor financeiro?Já não! Despedi-me há umas semanasPara se dedicar a 100% à literatura?Sim, estou muito interessado em continuar a promover este livro, que foi lançado em França há dois ou três anos, mas que continua a ser muito popular por lá. E as traduções começam a sair. Estou muito feliz por lançá-lo em Portugal agora. O lançamento é também esta semana no Japão. Ainda há muitas traduções a caminho. Então, sim, estou a dedicar-me a promovê-lo. E depois, claro, escrever o segundo porque esta é a minha nova realidade, acho eu.Pode contar-nos um pouco mais sobre esse segundo romance?Não, porque isso aterrorizar-me-ia de verdade [risos]. Mas sabia que queria escrever. Nunca escrevi tão pouco como desde que me tornei escritor. Durante muito tempo fiz as duas coisas a tempo inteiro: o meu trabalho na área financeira e a promoção do livro. Agora, já lá vão alguns meses que comecei a escrever de novo e acho que me está a fazer muito bem.Mas o seu sonho era ser autor-compositor.Não sou compositor! Esse é o meu problema. Se soubesse tocar piano, nunca teria escrito um romance. Não sei compor. Eu queria escrever canções. Queria ligar o rádio uma manhã e ouvir um cantor de quem gostasse a cantar uma canção que eu tinha escrito. Esse é o meu sonho. Continua a ser o meu sonho até hoje. Pode só escrever a letra…Eu acredito mesmo que, numa canção, é o texto que serve a música, e não o contrário. Já houve música composta sobre poemas, mas muitas vezes é muito mecânica. O mais natural é quando já existe música e tentamos que soe com palavras. É algo que uso no meu livro. Escrever é muito musical. Eu venho do Quebeque. Estou na confluência de duas tradições literárias. Há uma tradição literária norte-americana muito anglo-saxónica que está em alta. Com reviravoltas, revelações, etc. E uma tradição francófona e francesa por extensão, que se baseia muito mais na elegância da frase, na escolha das palavras. E acho que é uma sorte no Quebeque podermos tentar combinar as duas coisas. Gosto de ter um texto que me faça parar e ler uma frase e dizer a mim próprio: “Ei, é bonito, tem luz própria”. E, ao mesmo tempo, preciso de ritmo. O Canadá é conhecido como país de imigração, com o salad bowl a servir de contraponto ao melting pot dos EUA. Como filho de imigrantes, como vê as políticas de acolhimento do Canadá? Essas políticas permitiram que os meus pais levassem os seus sonhos, as suas experiências e os seus conhecimentos de francês, porque essa foi uma das coisas que influenciaram a escolha deles do Quebeque como local para imigrar. E estou grato por isso. Estou feliz por poder viver hoje num país que acolheu os meus pais, que os ajudou a terminar os estudos, a encontrar trabalho e, no caso do meu pai, a abrir o seu próprio negócio. É importante para mim. Depois, há sempre - e não é específico do Canadá, acontece em todo o lado - um tipo de complexo de imigrante de segunda geração que quer ter um bom emprego a todo o custo, um bom emprego no sentido que os seus pais imaginam, etc. E talvez por isso eu tenha começado como banqueiro antes de acabar na literatura.Para deixar os seus pais orgulhosos?Talvez houvesse um pouco de orgulho, e talvez também houvesse um pouco de condicionamento social. Também acontece com o meu personagem principal, que não escolhe realmente o seu trabalho, que o faz porque é o trabalho do pai, que tem uma vida muito modelada na dos pais, que tem os filhos dos amigos dos pais como amigos, que assume o mesmo lugar na comunidade que os pais.Também morou na França. Acha que as coisas são diferentes do Canadá?Os contextos são bastante diferentes. Fui imigrante de segunda geração no Quebeque e fui imigrante de primeira geração em França, uma vez que cheguei lá aos dez anos. E toda a minha vida foi passada a ir e voltar entre a França e o Quebeque. Hoje percebo que muitas das minhas referências são francesas, sobretudo na literatura, porque passei lá a minha adolescência e acredito que é o momento da vida em que muitas coisas se forjam em termos de referência. Mas sinto-me muito mais próximo da forma de ser Quebequense, nas interações humanas e na forma de ver as coisas. A cultura no Quebeque tem um papel muito importante. Não imaginam a minha felicidade, a minha incredulidade e também o meu orgulho por um livro que se passa no Egito, mas também em parte em Montreal, poder atravessar fronteiras e eu vir aqui a Portugal e falar convosco sobre o Quebeque. É algo que me enche de alegria, de orgulho. E é verdade que, num momento de política internacional um pouco difícil para o Canadá em geral, com um vizinho a sul que parece ter a ambição de nos tornar no seu 51º estado, a cultura tem um papel a desempenhar para explicar que não somos iguais. Um país não é só fronteiras que se desenham num mapa e se desafiam numa manhã. A cultura do Canadá e do Quebeque, mais especificamente, ganha mais riqueza com os contributos de todos os imigrantes?Sim, claro. Acho incrível pensar que, entre os autores que transportam a literatura Quebequense, há pessoas como Dany Laferrière, que vem do Haiti, como Kim Thúy [do Vietname]. Há pessoas que, como eu, uma geração depois, querem falar tanto sobre o país dos seus pais como sobre o país em que cresceram. E isso é algo maravilhoso. Pessoas como Kev Lambert, um autor que cresceu em Chicoutimi, no Quebeque, mas também Michel Jean ou Joséphine Bacon, que dão à palavra indígena as suas letras de nobreza na literatura. E isso é algo maravilhoso de se participar e sentir que somos aceites na diversidade, que na Francofonia a literatura do Quebeque é mais rica do que as cabanas de açúcar e os caribus.Última questão, se tivesse de escolher um cantor para a sua música que ainda não escreveu, quem seria?Se fosse em Portugal, seria a Mariza, que adoro. No mundo francófono, há muitas. Céline Dion continua a ser uma referência. Isabelle Boulet, Mylène Farmer, são cantoras que me fizeram sonhar toda a minha adolescência e que continuo a ouvir com enorme ternura e admiração. .Preconceitos contra a Igreja Católica