Javier Cercas conversa com o papa Francisco no avião que os levou à Mongólia.

 
Javier Cercas conversa com o papa Francisco no avião que os levou à Mongólia.  D.R.

Preconceitos contra a Igreja Católica

A recente vinda de Javier Cercas a Lisboa para lançar a tradução portuguesa de O Louco de Deus no Fim do Mundo confirmou que é um dos autores espanhóis mais bem sucedidos em Portugal.  
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O convite do Vaticano para Javier Cercas acompanhar o papa Francisco numa viagem à Mongólia foi a razão do novo “romance” que o autor publicou este ano. O sumo pontífice iria viajar até um país budista e o editor da Libraria Editrice Vaticana, Lorenzo Fazzini, sugeriu a Javier Cercas que o acompanhasse. O país era a Mongólia, que tem apenas 1500 católicos, e acompanhar a deslocação não continha qualquer condição: “Estranhei o convite, afinal o livro nem deverá ser publicado na Mongólia, nem eu sou um crente”. Porquê eu? Era a pergunta que Cercas fez sucessivas vezes, antes, durante e depois de terminar o livro, mas as respostas poderiam ser muitas; o que não ignorava era a possibilidade de poder visitar o Vaticano sem proibições e falar com quem quisesse: “Se a Mongólia é um lugar exótico, o Vaticano ainda o é mais. E o que me ofereciam não era apenas a viagem, era o Vaticano de portas abertas. Quem é que não quer saber tudo sobre esse pequeno Estado, a Igreja Católica e falar com o papa?”

Para Javier Cercas a resposta positiva ainda demorou uns dias a ser dada ao Vaticano, pois, como se classifica logo na entrada, é ateu, anticlerical, laico militante, entre outras justificações para aceitar a proposta. No entanto, acabou por o fazer: “Eu tinha muito preconceitos sobre a Igreja Católica, o que fiz foi eliminá-los todos e chegar ao Vaticano com o olhar limpo e assim poder compreender o que representa a instituição hoje em dia. A mim, de pouco me interessava o que se diz que se passa no seu interior, o que queria era saber a verdade e poder estar dentro do Vaticano e fazer todas as perguntas: o que se diz é verdade? Quem é que manda? Quem é este senhor Francisco que governa a Igreja? Esse era o exercício que me seria autorizado e não podia deixar de o aceitar. Nunca houve um livro como este, nenhum escritor foi autorizado a entrar num lugar assim nos últimos dois mil anos de história da Igreja Católica.”

A grande pergunta a fazer a Javier Cercas era se a investigação e a escrita deste livro fizeram com que alterasse a sua opinião sobre a Igreja Católica e Deus? A resposta resume-se a uma única palavra: “Totalmente”. Isto não significa que se tenha convertido, mas sim “ter alterado a minha visão sobre a Igreja Católica, do cristianismo, do Vaticano, ou seja, de tudo o que ao assunto diz respeito”. Justifica enquanto escritor: “Cada livro é uma aventura e se uma aventura não te muda é porque não o foi. A literatura é, primeiro, um prazer, mas também uma procura de conhecimento. Mais uma vez, se o conhecimento não te muda é porque também não foi uma aquisição de conhecimento.”

Entre o que Javier Cercas alterou no seu modo de ser para escrever O Louco de Deus no Fim do Mundo foi ignorar o preconceito: “O esforço principal foi o de eliminar todos os preconceitos que tinha e ver o que estava à minha frente como se fosse a primeira vez e não o que todos os que nasceram em países de tradição católica, sejam crentes ou não, têm dentro de si.” Em seguida, o facto de ter perdido a fé aos 14 anos, “como a maioria dos europeus da minha geração, não quer dizer que não tenha inveja de quem a tem, da serenidade e da força proveniente daquilo a que chamo um superpoder, que era o caso da minha mãe, a quem muito se deve este livro, porque queria saber se ao morrer voltaria a encontrar o meu pai.”

“A fé não é algo voluntário”, resume Javier Cercas, aproveitando uma entre as várias conversas que teve com dignitários da Igreja Católica ou no Vaticano, como a com o cardeal Tolentino de Mendonça: “Dialogámos muito, é um grande poeta, e perguntei-lhe se a fé não era também uma intuição poética, e ele não discordou. Questionei o papa com a mesma pergunta e ele respondeu diferente: «Que a fé é um dom ou uma prenda». Acho que as respostas se completam, no entanto nem a intuição poética nem o dom são voluntários: ou os temos ou não. Não imagino como será voltar a recuperar a fé nem como ou se se o poderá fazer.”

Poder-se-á afirmar que a religião é a maior invenção do homem é o que se questiona. Javier Cercas hesita um pouco, mas logo responde: “A maior invenção… é complexo; creio que corresponde a uma necessidade profunda do ser humano, isso sim. Que se pode usar para o bem ou para o mal. Graças à religião temos coisas fantásticas, mas também se cometeram muitos crimes em seu nome. É como a tecnologia, depende da sua utilização”.

Ter conhecido a Igreja Católica e o Vaticano como ninguém, conversado com o papa, são situações que poderão alterar a posição do escritor perante a religião, é a pergunta que se faz a Javier Cercas: “Se me converti ao cristianismo? Não, nem pensar.” Aliás, o editor Fazzini avisou-me várias vezes: “Javier, se te converteres, não o reveles pois não irás vender livros. Revela apenas daqui a uns anos e então terás outro novo sucesso.” Falando de sucesso, a publicação deste livro teve uma coincidência estranha, a de o papa Francisco ter morrido dias antes do seu lançamento: “Há quem diga que foi uma operação de marketing, o que não poderia ser verdade. Francisco estava muito doente e foi uma coincidência. O livro está repleto de coincidências, esta foi mais uma.”

O LOUCO DE DEUS NO FIM DO MUNDO

Javier Cercas

Porto Editora

444 páginas

LANÇAMENTOS

A AMEAÇA DO FASCISMO

A publicação deste Uma Aldeia no Terceiro Reich vem numa altura muito oportuna, pois faz o relato de uma aldeia tão isolada do resto da Europa que nada de malévolo poderia acontecer no lugar, no entanto a ascensão do regime nazi veio demonstrar que todos podem ser afetados pelo mal. Entre as conclusões que se podem retirar desta narrativa é a de que é preciso lutar no tempo certo para evitar o perigo de um dirigente partidário que mente e deseja nada mais do que um regime de falsas promessas.

UMA ALDEIA NO TERCEIRO REICH

Julia Boyd e Angelika Patel

D. Quixote

395 páginas

TRAIÇÃO AO FASCISMO

O regime nazi não foi capaz de enganar tudo e todos e o autor deste thriller monta uma narrativa inteligente sobre um grupo de alemães que contestam o regime nazi e Hitler e organizam-se de forma a barrar a sua progressão. No entanto, entre os traidores há um traidor que irá provocar uma alteração nos planos. Como se refere na contracapa, “uma história que tem profunda ressonância moral com o nosso tempo”.

O CÍRCULO DOS TRAIDORES DE HITLER

Jonathan Freedland

Bertrand

430 páginas

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