Como se sente com o lançamento de Os Substitutos em Portugal?Esse livro vem depois de um hiato aqui em Portugal, em que parei de publicar, porque originalmente publiquei numa editora que se chama Cotovia, que desapareceu. Publiquei alguns livros lá, e foi muito bom, tinha uma relação muito próxima com o editor, era uma editora muito pequena e muito independente, com a qual me identificava também em relação ao catálogo, ao projeto editorial e tudo mais. Era uma hora diferente, um momento diferente da literatura, da recepção da literatura, era mais fácil, talvez o mais possível, criar uma editora que fosse mais independente, quase uma editora sem fins lucrativos, como se isso fosse possível, mas enfim, hoje, provavelmente é menos possível, embora no Brasil tenha um monte de editoras independentes novas. Mas o que aconteceu foi que essa editora acabou, e depois eu tive um livro publicado na Quetzal, que acho que provavelmente não deu muito certo, e aí passei uns anos sem nenhum livro publicado aqui, para mim é uma felicidade poder publicar aqui de novo pela Penguin. Fico muito contente por eles terem decidido publicar, é super bem cuidado, é uma editora muito boa, a edição é toda muito bem cuidada, é bonito o livro e tudo mais, estou muito contente. O mundo mudou muito desde que eu comecei a escrever para cá, tem coisas que são muito boas que aconteceram, mas tem muito mais, é um volume de publicação muito maior. É um mundo diferente, assim, e a literatura que eu faço é uma literatura que não chega a ser difícil, mas é uma literatura um pouco estranha, e isso é deliberado, é voluntário. Tem um projeto literário que é um projeto talvez de um pouco de discordância, um pouco de contrariar os consensos e não sei o quê, e isso tem um preço. Acho que eles sabem aqui, que eles publicaram, mas eles sabem que não é um livro de milhões de leitores, essa consciência está embutida. E no Brasil, como o livro foi recebido?Foi boa, porém, eu acho que também houve uma mudança em relação ao passado. Penso que mudou muito o mercado literário, o mundo literário não só em termos quantitativos de volume, mas em relação à qualitativa também. Acho que há assuntos que são mais urgentes, candentes. Eu acho que hoje é muito mais difícil do que antes você lidar com a literatura tratando de ambiguidade, sem que o livro seja uma forma assertiva de alguma coisa. Por exemplo, hoje as pessoas esperam, e eu acho que isso tem a ver com a leitura na internet, que é uma leitura muito bidimensional, você espera que o livro confirme as coisas que você já sabe ou nas quais você já acredita. Tem nichos e cada um espera da literatura e das ficções ou não ficções, uma representação de um mundo que não o contraria, quer dizer, isso é uma coisa estranha. E os livros que me interessam são justamente os livros que me contrariam e que me fazem descobrir coisas que eu ou desconheço ou que são inesperadas para mim. O meu livro trata de temas que são muito urgentes, políticos, sobretudo num arco político, porque é o arco do personagem que vai, desde a ditadura militar até hoje, com as questões identitárias, essas questões de reparação, de sexualidade, de género, de raça e tudo mais. Mas faz isso de uma forma cheia de ambiguidade, cheia de contradições. Quando parece que o livro está dizendo um negócio, quer dizer, acontece alguma coisa ali que contradiz essa certeza e que te deixa numa espécie de suspensão. E isso é mais difícil para as pessoas. Mas teve uma recepção positiva, da crítica, em alguns lugares as pessoas falaram super bem. Porém, um negócio que eu não sei direito, porque ninguém falou mal do livro, mas eu acho que há um desconforto em relação a esse objeto que você não sabe, que não é totalmente definido. .Por exemplo, hoje as pessoas esperam, e eu acho que isso tem a ver com a leitura na internet, que é uma leitura muito bidimensional, você espera que o livro confirme as coisas que você já sabe ou nas quais você já acredita.. Mas a literatura não é também para causar desconforto? Sim e é o que me interessa. Porém, hoje eu acho que é cada vez menos. A literatura é cada vez mais uma literatura de empoderamento, por exemplo. Uma literatura confortável, em todos os níveis, é uma literatura da confirmação. E tem a ver muito com a leitura na internet. Ao longo do tempo, sem perceber, começamos a ter uma relação com o mundo que é uma relação que não admite contradição, que não admite desconforto. O próprio algoritmo proporciona isso. Você fica naquela bolha e ele te entrega só aquilo que você quer pensar, não te entrega nenhum pensamento diferente. E é um suicídio, porque na verdade, intelectualmente, é um empobrecimento incrível, você passa a ver um mundo que é um mundo bidimensional. Essa é uma questão política que me interessa muito. E agora com a coisa da inteligência artificial, é muito interessante, porque se o ser humano abre mão das contradições e do real, do que é insuportável, do que é, de fato, o outro, que é aquilo que você não quer ver, se é que há uma guerra ali entre a inteligência artificial e o ser humano, ela está perdida, porque a única chance que você tem é entender que tem um desconhecido, que tem um mistério no mundo, que tem alguma coisa que te escapa. Porque a gente vai morrer, a morte é uma delas.Sobre um dos assuntos centrais do livro, que é a ditadura, como é que você analisa a ótica da ditadura hoje no Brasil diante de tantos acontecimentos recentes na nossa história política? O que é mais impressionante no negócio da ditadura é que, por exemplo, eu nasci em 1960, então, eu passei a infância inteira na ditadura e, depois, na pós-ditadura e com a Constituinte e tudo mais, você teve uma ideia de aquilo ali era um mundo passado, que aquilo não existia. E, talvez, por eu não ter contato com pessoas que eram, são pró-ditadura e tudo mais, eu achei que aquilo, para mim, foi uma surpresa, uma surpresa total, quando eu comecei a ver as primeiras manifestações, antes da eleição do Bolsonaro, de pessoas dizendo, volta, ditadura ou militares, por favor. Foi uma surpresa incrível, porque eu me lembro que eu estava numa feira, num festival na Argentina e os argentinos me perguntavam, o que está acontecendo? Vocês não enterraram essa porcaria? Mas para mim foi uma surpresa que mostra a minha ingenuidade política, histórica e tudo mais. Eu não tinha entendido nada, porque isso estava aí, estava meio camuflado, submerso por um verniz de democracia e por um esforço de democracia incrível, mesmo agora, que, por mais que haja um monte de problemas, você pode discutir a coisa do Alexandre de Moraes, mas é incrível, porque, de fato, esse cara salvou o Brasil. Mas, em relação ao livro, é curioso que, também, isso no Brasil se manifestou desse jeito, mas é uma onda mundial, e isso é muito assustador. Essa onda do que foi chamado de pós-verdade, um mundo que tem uma rede de sentido que regula o mundo, de repente, esses caras começam a minar essa rede de sentido, inverter, distorcer. E as palavras passam a dizer o oposto do que elas significam. E isso foi muito importante para esse livro, porque era uma espécie de um lodaçal semântico. De repente, defender a democracia significa defender a ditadura. Defender a liberdade de expressão significa defender a censura, é um cenário de pântano e dar um passo atrás, porque nesse pântano eu não tenho saída, eu não tenho como reagir politicamente, intelectualmente É um lugar que está feito para fazer você se perder, ficar totalmente desacorçoado, totalmente impotente. É ver um pouco a origem dessa inversão numa situação que é muito pontual, que é de um pai e de um filho, em que o pai que deveria representar a lei passa a representar o crime e que obriga a criança que está com o pai a representar a lei. A substituição começa aí. Isso tem a ver com uma inversão que parece que era como se fosse um ovo da serpente ali. O reflexo da ditadura, essa ferida não foi curada. E essa relação entre um pai e um filho, que tem a ver com a minha relação com meu pai, biográfica, mas que é um pouco a origem dessa coisa e da destruição, da autodestruição, da coisa do cara que vai colonizar a Amazónia para destruir e um sentido heróico nisso..E as palavras passam a dizer o oposto do que elas significam. E isso foi muito importante para esse livro, porque era uma espécie de um lodaçal semântico. De repente, defender a democracia significa defender a ditadura. Defender a liberdade de expressão significa defender a censura. O livro foi sendo escrito desde 2017 e passou por muitos momentos da política brasileira, isso foi incorporado no texto?Sim, foi modificando e o meu próprio jeito de escrever parece que é tudo calculadinho, que é como se eu tivesse uma ideia a priori e que o livro é uma ilustração de uma tese. Mas não é. E sempre é assim, é como se eu tivesse uma preguiça intelectual, uma incapacidade de pensar as coisas de verdade, como se tivesse um cansaço ali. E isso aí é como uma ajuda, é como se no texto as coisas acabam se esclarecendo. É um prazer o texto, porque eu chego a frases como se inconscientemente chegasse a resolução de problemas, mesmo que só em palavras. E ao longo do tempo, o livro também foi se modificando por causa dos acontecimentos da realidade brasileira ou do mundo e tudo mais. Eu sou muito poroso, deixo as coisas entrarem.Pode dizer qual é o tema do próximo livro?Tem uma questão identitária muito forte, não uma minha, não uma defesa do identitarismo, mas uma problematização dessa questão. Um drama interno identitário que tem a ver com essas ambiguidades, que é o que mais me interessa, esses personagens que são muito contraditórios. São esses personagens que tentando fazer uma coisa, acreditando que estão fazendo uma coisa, estão fazendo outra. amanda.lima@dn.pt.Jeferson Tenório. “O discurso da extrema-direita é muito sedutor para o jovem da periferia".Marcelo Rubens Paiva: “Acho que o 'timing' de 'Ainda estou aqui' foi fruto do movimento bolsonarista”