Jeferson Tenório. “O discurso da extrema-direita é muito sedutor para o jovem da periferia"
Como se sente com o sucesso dos seus livros em Portugal?
Eu tenho uma relação com Portugal já há muitos anos, antes de vir para cá como escritor. Eu estudei literatura portuguesa, formei-me como professor de literatura brasileira e portuguesa, então tenho uma relação profunda com a literatura portuguesa. O meu primeiro livro publicado aqui foi O Avesso da Pele, que tem tido uma ótima receção aqui. E agora venho lançar De onde eles vêm. É o meu quarto romance e que aparentemente também está tendo uma recepção boa e acho que tem a ver também com essa quebra de estereótipos do Brasil. Talvez a literatura consiga trazer uma imagem menos superficial do Brasil.
Como avalia o momento da literatura brasileira no mundo?
Eu penso que aconteceu uma primavera negra literária no Brasil. Isso vem acontecendo a partir dos anos de 2010, 2012, em que você tem aí um crescente aumento de publicações, de premiações, reconhecimento de autores negros e negras. Mas ainda dentro de um cenário brasileiro ainda somos poucos e raros. E dentro do cenário mundial ainda somos um grão de areia. Para um livro chegar à Europa, ser traduzido e para um autor negro ser traduzido também não é uma coisa muito fácil. Ainda faz parte de uma raridade. Mas eu acho que a gente já avançou um pouco nesse sentido.
E o que falta para avançar mais?
Eu acho que faltam políticas públicas de incentivo. Primeiro, incentivo às traduções. Incentivo à publicação também de autores negros. Incentivo à abertura de bibliotecas, de livrarias, de mais festivais. Ou seja, de um ambiente que propicie que a gente tenha mais publicações de autores. E isso é uma dificuldade internacional, é um problema, enfim, do capitalismo acaba cooptando tudo. Então, se o mercado percebe que determinado nicho dá lucro, ele vai justamente trazer. O problema disso é que a gente acaba caindo nessa ilusão da representatividade, que hoje eu vejo que é uma grande armadilha. Você pinça [escolhe] algumas pessoas representativas e trata essas pessoas como a grande voz, o grande totem de todas as outras vozes. Então, hoje em dia, eu estou preferindo pensar mais numa questão de proporcionalidade. A gente precisa ter mais vozes diferentes, pessoas negras que escrevam de formas diferentes, para aí sim a gente conseguir chegar numa complexidade. É difícil ler o O Avesso da Pele e achar que o Brasil se reduz ao Avesso da Pele. Ou vai ler o Defeito de Corda da Maria Gonçalves, ou vai ler o Tudo é Rio da Carla Madeira e achar que aquilo é o Brasil. A gente precisa de mais vozes, sejam elas brancas ou negras, para que a gente consiga ter uma complexidade do que é o Brasil.
Considera-se um destes autores?
O meu caso no Brasil é raríssimo. Não tenho dúvidas que o que aconteceu comigo não acontece com a grande parte de escritores negros no Brasil. Depois que saiu essa lista da Folha de São Paulo, dos 25 melhores livros do século, ali foi uma pequena amostra, primeiro, de uma mudança de mentalidade, de validação de autores negros. Mas a lista ainda é muito incipiente. Ainda faltam muitas vozes para entrar nessa lista. Acho que tem um longo trabalho pela frente.
Sobre De onde eles Vem, mais voltado ao público infanto-juvenil, o que te motivou?
Na verdade, eu escrevo livros de personagens. E quem me disse foi um leitor, certa vez, que me falou, ‘seus livros são de personagens, não são necessariamente de histórias ou de enredos, porque o que fica para a gente são os personagens’. Então, é o João do Beijo na Parede, é a Estela do Estela sem Deus, é o Henrique do Avesso da Pele e agora o Joaquim. O que fica para o leitor é a jornada desses personagens. E são personagens que têm em comum serem jovens e que perseguem esse ambiente intelectual, cultural. Todos eles estão inseridos, de certo modo, de forma marginalizada, mas estão inseridos ou tentam se inserir nesse lugar. O que eu quis com o De onde eles vem é dar esse outro passo, que já não é mais uma discussão sobre se tem que ter cotas ou não na universidade, mas o que eu discuto é a permanência desses alunos dentro da universidade. Essa é a discussão. E também sobre a formação de um leitor. Alguém que está se formando leitor e um leitor especializado. Já não é um leitor de primeira viagem. É um outro tipo de formação, é um livro de aprendizagem. Esse livro distorce um pouco do Avesso da Pele porque não tem uma violência explícita, mas se aproxima porque há essas micro violências que muitas vezes passam despercebidas.
Que despertar de consciência espera dos jovens com o livro?
O livro aborda muito essa desconexão que os jovens dessa geração, nascida nos anos 2000, uma geração que teve acesso a muita informação, é uma geração que já entra numa era digital, e que, por isso, acaba perdendo também essa conexão com as origens, com o passado. Não só com o seu próprio passado, mas com o passado do Brasil. Ou seja, esse discurso de volta à ditadura, de volta ao conservadorismo. Isso também é fruto dessa desconexão, desse apagamento também do passado. A jornada do Joaquim é também mostrar a complexidade desse distanciamento. Depois, esse regresso às origens, à ancestralidade, à própria religiosidade, às culturas de matriz africana. Tudo isso que, às vezes, a universidade também invisibiliza. Outra questão é que eu tenho uma preferência por escrever personagens jovens. Talvez porque eu já tenho um distanciamento desse período e consigo fazer uma avaliação melhor. Penso que não conseguiria escrever a trajetória de uma pessoa da minha idade, por exemplo, porque eu ainda estou vivendo as coisas. E o meu grande público leitor são os jovens. Acho que pelos meus livros estarem nas escolas, ser leituras obrigatórias de vestibulares, entrarem em provas de concursos, por exemplo. E a outra é porque o tipo de linguagem que eu utilizo não é uma linguagem difícil, ou que usa palavras complicadas. O enredo é relativamente linear, não afasta o leitor. São alguns elementos que fazem com que eu me aproxime mais desse público jovem do que um público mais velho.
Isso dá-lhe esperança no futuro?
Eu tenho que acreditar nisso, ou não tinha colocado mais um filho no mundo. Estou com um filho de seis meses e colocar filho neste mundo é um voto de fé na humanidade, é acreditar que as coisas vão melhorar quando os filhos estiverem adultos, então, posso dizer que sim, que há esperança.
Sobre o conservadorismo que menciona, há muito conteúdo sobre o assunto nas redes sociais. Vê uma analogia entre o crescimento dessas ideologias e o afastamento também das pessoas, dos jovens, dos livros, das origens, como você mencionou antes?
As pesquisas do ano passado mostraram que, durante as eleições municipais, grande parte desse público jovem conservador é pobre. Pobres de periferia, que assumem esse discurso conservador. E o que se dá a esse discurso? A direita, a extrema-direita, ocupa um espaço da praticidade, do prático, do pragmático, do imediato. Enquanto a esquerda vai na periferia e diz que esse jovem tem que ir para a escola e ler livros, a direita chega lá e diz para a mãe do aluno que vai deixar o seu filho rico. A gente tem alguns exemplos, como o Pablo Marçal, por exemplo, que vinha com esse discurso de dizer, ‘olha, eu vou transformar a escola que seus filhos vão estudar em uma escola para aprender essas bobagens, para ganhar dinheiro’. Esse discurso é muito sedutor para esse jovem periférico, que quer uma solução rápida. Ele não quer entrar na escola e daqui, sei lá quantos anos, a vida vai se resolver. Me parece até coerente que esses jovens tenham esse discurso por não ter uma orientação educacional, uma orientação de direitos humanos mais forte. Mas essa consciência só é possível se as condições básicas forem atendidas. Senão ele vai para o que for mais prático, mais rápido para ele. É uma avaliação difícil, mas é a realidade.
Por já ter sido professor, como vê o papel dos docentes neste cenário?
Eu acho que há um descrédito da juventude, mas também em como a sociedade vê o professor. Ou seja, os alunos são reflexos daquilo que eles escutam, daquilo que eles veem. Eu tive muitos casos de alunos que agiam daquela forma porque os pais dos alunos agiam assim. Os pais tentavam interferir na prática do professor. Ou seja, a posição do professor é tão fragilizada que a sociedade se dá o direito de interferir e dizer o que o professor tem que fazer. E é uma das poucas profissões que isso acontece. Que deixam isso acontecer, porque as instituições educacionais também estão fragilizadas. Há ali também esse processo de precarização da prática do professor na sala de aula e isso tem a ver com como a sociedade enxerga a docência e é preciso valorizar a docência, em termos salariais, de estrutura, de tempo.
No Brasil, como vê o momento político?
Eu acho que as coisas têm piorado não só no Brasil, mas no mundo todo. A gente tem visto aí uma escalada de violência, discursos de ódio, de violências contra imigrantes. Realmente a gente vive uma situação em que a gente corre o risco de ter um grande colapso mundial e ninguém escapa desse colapso. E o Brasil já apresentou este sintoma, já vem apresentando esse sintoma já há algum tempo. Agora não temos um governo que diz explicitamente que quer matar pessoas, mas, por outro lado, as pessoas continuam morrendo. As pessoas continuam pobres. Então a gente tem um governo também refém de um Parlamento bastante conservador. É um Governo que se coloca como esquerda, mas que não consegue exercer essa ideologia justamente porque fica preso com esse Congresso. E esse risco à espreita de um partido conservador voltar de novo ao poder. E é muito provável que isso aconteça nos próximos anos.
Além desse aspeto geral, como é que você está vendo o combate ao racismo no Brasil nesse momento?
Em termos teóricos, nós avançámos bastante. Temos uma gramática antirracista muito presente na universidade, nas escolas. Temos leis. Eu acho que os casos de racismo estão sendo muito mais denunciados. A gente tem as câmaras que acabam fazendo esse trabalho também de denunciar. Acho que as crianças nas escolas também estão tendo uma formação nesse sentido. Por outro lado, a discussão não chega na grande massa, não chega. Há outros elementos que chegam primeiro. O emprego, ter acesso à saúde, sobreviver. Essas questões sobre feminismo, política antirracista, isso chega só depois. A violência doméstica continua, mulheres continuam morrendo, violência policial. Todos os dias a gente tem vários casos. É uma contradição, porque eu acho que a gente está bem avançado, inclusive em relação à Europa, sobre a discussão antirracista. Mas, por outro lado, a ainda se vive uma violência todos os dias. Aqui na Europa parece que ainda estamos em um estágio em que ainda nem admitiram que o racismo existe, sendo que ele existe. Nem em Portugal, nem em outros países também da Europa. Porque no Brasil a gente não enfrenta essa discussão sobre os imigrantes. Embora a gente receba muitos imigrantes, mas não é pauta. Na verdade, é mais uma questão de acolhimento do que essa ideia de que os imigrantes estão roubando os empregos e as casas. Tem diretamente a ver com a cor da pele. Na Europa e em Portugal, a gente acrescenta a cor da pele a outras camadas. Então, uma pessoa pode ser discriminada aqui em Portugal não só pela cor da pele. A pessoa pode ser discriminada por várias coisas, ou pela língua, ou pela sua origem, pelo que ela conhece da cultura portuguesa. Me parece que o que vem primeiro é a xenofobia.
amanda.lima@dn.pt