Sonâmbulos
Joe Biden prestou ontem juramento à Constituição dos Estados Unidos da América. Um dia antes, o seu nomeado para secretário de Estado era ouvido no Senado e reafirmava a política de Donald Trump em relação à China, denunciando os campos de concentração em Xinjiang como "genocídio".
Dois dias antes, o líder da oposição a Vladimir Putin era preso no aeroporto ao regressar a Moscovo, depois de recuperar de uma tentativa de assassinato. Três dias antes, a CDU alemã escolhia o sucessor de Angela Merkel, Armin Laschet, russófilo e amigo de Pequim.
Duas semanas antes, sem qualquer coordenação com a futura administração Biden, a União Europeia assinava um acordo de investimento com Xi Jinping, cujos detalhes finais foram negociados à porta fechada por Merkel e Emmanuel Macron. Politicamente, o documento ainda terá de passar pelo Parlamento Europeu, que promete luta no que aos direitos humanos diz respeito. Em matéria de subsídios, ofereceram-se condições mais favoráveis à China do que as acordadas com o Reino Unido para o Brexit.
De uma forma ou de outra, nenhum destes acontecimentos é indiferente para Portugal, por mais residual que o poderio estratégico do país seja. Foi, portanto, notável como a geopolítica permaneceu ausente da campanha presidencial, resumindo-se a uma troca de bolas de neve entre "a Coreia do Norte!" para aqui e "o Bolsonaro!" para ali.
Com dois eurodeputados experientes (Marisa Matias e João Ferreira), uma diplomata (Ana Gomes) e um incumbente como Marcelo Rebelo de Sousa na corrida, não se entende como é que a eleição para a chefia do Estado permaneceu órfã de discussão sobre a política externa portuguesa. Até a pandemia, que é a mais óbvia das urgências nacionais, se trata, no fim de contas, de uma problemática global.
Havia, além disso, muito que debater acerca do papel de Portugal no mundo nos últimos cinco anos e para a próxima meia década. Qual o posicionamento português perante uma ordem internacional em evidente mudança? Qual o contributo que as Necessidades pretendem dar na reforma do multilateralismo que se avizinha? Quais os objetivos de um país fundador da NATO, membro da União Europeia, aliado de longa data da Grã-Bretanha e parceiro-pivô da China até, por exemplo, 2030? Como é que um Presidente da República, na ótica de cada candidato, deve agir na gestão desses equilíbrios de poder?
Estas são questões de relevância indesmentível. E que ficaram igualmente por responder na campanha eleitoral que ainda decorre.
Durante o primeiro mandato de Marcelo, a política externa portuguesa mexeu, e não foi pouco. O mundo mudou-a e ela mudou com o mundo. António Costa não interrompeu a abertura à China que marcou o executivo PSD-CDS (2011-2015). Antes pelo contrário, aprofundou-a. Defendeu a iniciativa Belt and Road como "absolutamente central" e criticou o "protecionismo" comunitário contra possíveis investimentos chineses.
O seu ministro dos Negócios Estrangeiros nunca o escondeu, deixando-o diversas vezes explícito em intervenções públicas. O governo do Partido Socialista apostou num reforçar de relações com Pequim, Deli e Moscovo, chegando a receber o ministro dos Negócios russo escassos meses após subscrever a declaração europeia que deu o regime de Putin como responsável pelo atentado contra Sergei Skripal.
O meu caro leitor ouviu algum candidato à Presidência falar sobre isto?
Eu também não.
Colunista